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O corpo como arte

"Por que as pessoas choram ao me ver dançando?” O questionamento feito há alguns anos pela protagonista que parece voar no vídeo O Giro da Bailarina causou inquietação na professora de balé Keyla Ferrari. A pequena dançarina tinha apenas 10 anos, conforme ela mesma narra no documentário, mas pela perspicácia, insistia em suas interpretações: “Eles choram porque acham bonito o que faço? Ou é por pena”? Sem resposta, a bailarina Keyla, que decidiu abrir mão de seus próprios giros para ensinar pessoas que ela mesma queria ver extrapolar os limites de uma cadeira de rodas, carregou durante anos as perguntas de sua aluna até que decidiu respondê-las numa pesquisa de mestrado. No trabalho, no qual estudou a relação do dançarino com deficiência e seu público, por meio de entrevistas, ela descobriu que os dançarinos com deficiência física motora vivenciam seus corpos como uma obra de arte, partindo de suas características físicas diferenciadas e nas relações com a cadeira de rodas encontrando uma identidade própria de movimentos nas coreografias interpretadas. Em outras palavras, sentem-se artistas mais do que alguém que parece estar superando limitações. “Eles querem ser vistos como artistas em cena e não gostariam que a deficiência fosse enxergada antes da arte”, revela.

Silêncio, sussurros, emoções manifestadas por meio de sorrisos ou lágrimas. Do palco, os artistas podem vivenciar diversas reações e apreciações em diferentes ambientes culturais, de acordo com as entrevistas. Sentimentos provocados em espectadores que geralmente chegam ao local do espetáculo com sua própria história de vida, valores e cultura preestabelecidos, na opinião da professora. Keyla observou durante o estudo que existe cumplicidade e relação afetiva desenvolvidas entre espectadores e dançarinos em cadeira de rodas, que se constrói por meio do diálogo verbal ou não-verbal, reforçando assim ações seguras nas atuações artísticas e um autoconceito positivo dos artistas dançarinos. Ela percebe que, ao levar uma coreografia de dança em cadeira de rodas para um espetáculo aberto ao público, o dançarino está sujeito a receber elogios e críticas como qualquer outro artista. Cada dançarino, porém, busca dentro de si a forma de internalizar e lidar com estas apreciações, que, conforme observado e refletido no estudo, na maioria dos casos, são positivas e reforçam a identidade social do artista. “Perguntei como eles viam o público para investigar a questão do autoconceito e da identidade social e percebi que a identidade de dançarino acaba se transformando de acordo com a relação entre os participantes, com ou sem deficiência, e da relação com o público”, acrescenta Keyla.

Conforme a magia do espetáculo, o personagem, a música, o artista incorpora uma identidade de papel de artista, na opinião da bailarina. Deixando, naquele momento, de ser visto somente como uma pessoa com limitação física motora, mas sim como alguém que faz algo mais, acrescenta. Keyla declara que, inevitavelmente, após o espetáculo, alguns espectadores querem se aproximar dos artistas, mas, para sua surpresa, dado o envolvimento do artista com a dança, com o palco, eles são aclamados não pela superação, mas pela qualidade artística que acabaram de apresentar. “Isso é gratificante para quem tenta desmistificar a atuação do dançarino em cadeira de rodas. O que mais queremos é que eles sejam vistos como artistas”, alegra-se Keyla.

Autoconfiança, autonomia, relacionamentos interpessoais, habilidades motoras e autoestima estão entre as conquistas que convergem entre si. Uma das entrevistadas, do Grupo Giro de Niterói, segundo Keyla, é clara: “As pessoas acham que porque temos deficiência qualquer coisa vale. Então, você levanta o bracinho e está todo mundo aplaudindo por causa de seu esforço. Mas não é isso que eu quero. Eu quero realmente passar aos espectadores que sou ser humano igual a eles e posso fazer coisas bonitas. Também quero mostrar que me preocupo com a qualidade de meus movimentos e passar uma boa mensagem, não passar uma coisa triste”.

Ao refletir sobre o dançarino em cadeira de rodas no contexto do espetáculo, Keyla observou que a dança, como arte visível do corpo e do movimento, expõe as possibilidades, os limites, a emoção, a força e a fragilidade de cada dançarino. O trabalho no Centro de Dança Integrado (Cedai), criado por Keyla, que reúne num mesmo tablado e num mesmo palco artistas com ou sem deficiência, também ofereceu respostas muito importantes para a investigação de Keyla. No Cedai, a criança com deficiência física motora dança com a mãe e a irmã, que é bailarina. No mesmo contexto, pessoas com Síndrome de Down dançam com a cadeirante e dançam com bailarino profissional, segundo a pesquisadora.

Durante processo de criação e interação entre os alunos, realizado por meio de aulas, ensaios e espetáculos, ela observou que foram reveladas novas identidades individuais e coletivas. Em entrevistas realizadas com alguns artistas-alunos, ela constatou que, ao decidirem dançar individualmente ou com outros parceiros, normalmente livres de seus comportamentos e atitudes do espaço privado e cotidiano, eles estabelecem novas formas de ser, estar e interagir com o outro, independentemente de como seja este outro socialmente definido, sendo deficiente ou não.

Na busca da qualidade artística, os artistas são levados a lutar para que a deficiência não sobressaia à arte e à beleza de seus corpos em movimento, segundo Keyla. “No palco, a cadeira de rodas está em função dos dançarinos, são eles que controlam a cadeira, não mais aceitando o estigma de incompetência por usar este artefato para se locomover. A cadeira de rodas transforma-se em um elemento cênico”, relata Keyla.

Para ela, dançar, nas mais diferentes formas expressadas ou manifestadas, traz consigo significados que podem ser identificados somente pelas partes envolvidas e na maioria das vezes possibilitam muitas leituras como sendo também uma forma de gritar pela liberdade por meio da expressão do corpo, viver, sentir cada momento da música, dos corpos que se entrelaçam, da descoberta do individual e do coletivo como um só corpo, dos giros, dos aplausos, do realizar e se fazer sujeito nas vivências e na identidade do papel de artista pela subjetividade presente no contexto da dança e da deficiência.

“A dança transcende os limites do espaço privado e da intimidade do dançarino para o espaço público e da sociabilidade”, diz a pesquisadora ao explicar que a dança como meio da autoexpressão possui uma amplitude de significados para a pessoa com deficiência. Com a criação do Cedai, Keyla pôde tirá-los da entidade para trabalhar em nível artístico. Ela reforça que como eles já têm a entidade para reabilitação, vão conhecer o outro lado. “Assim, eles têm a possibilidade de uma profissão, oportunidade de sair, fazer espetáculos fora, ganhar com seu trabalho e de conviver com todo mundo sem ser necessariamente num ambiente institucional”, acrescenta.

E foi girando o mundo em busca de respostas para sua pequena protagonista que Keyla conseguiu oferecer um trabalho novo no campo das investigações em dança sobre rodas. O voo circular de uma dançarina londrina, em uma viagem à Inglaterra, fez reconhecer que ela também poderia realizar um sonho antigo de dar asas à realidade de muitas outras pessoas. Ainda que desistisse de dançar pelos padrões predeterminados do balé (corpo perfeito, peso ideal, ensaios rígidos, a busca pelo belo), ela reconhece a beleza da dança quando o artista ultrapassa todos os limites sociais e do corpo, com ou sem deficiência. Até porque limitação é uma palavra que pode se aplicar a qualquer ser humano, independentemente de suas condições físicas. Por isso fez do Cedai um ponto de cultura estadual como “se fosse brincadeira de rodas”, pois a roda tem a função de unir corpos, como no livro e no vídeo O Giro da Bailarina.



 
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