Jornal
da Unicamp – Em nota para esta segunda edição de
Teatro do Sacramento, o senhor diz que a preguiça o impediu
de realizar modificações no livro para torná-lo mais palatável
e urbano. De fato, não é uma leitura fácil...
Alcir Pécora – Já me disseram que o livro é tão
denso que ficamos andando em cima dele, sem conseguir entrar
(risos). Deixei de fazer modificações não por preguiça exatamente,
mas é verdade que nunca tive interesse em fazê-las. Considero
o livro bem acabado do jeito que saiu; não que seja perfeito,
mas é totalmente representativo do estudo que pude fazer
durante os dez anos que me tomou. A forma do livro está
comprometida com a minha tentativa de organizar esses dez
anos em que percorri um caminho todo errático, disposto
a enfrentar polêmicas e dilemas, a ponto de abandonar uma
tese praticamente pronta para recomeçar por novo ângulo.
Daí a dificuldade de tornar o livro mais palatável para
o leitor ou mesmo de lançar mão do que produzi posteriormente
para deixá-lo mais redondo. Estou mais interessado em que
o livro se mantenha fiel à sua construção. O resultado da
pesquisa apresenta flutuações de percepção, mas não acho
ruim.
JU – O senhor afirma que a obra de Vieira é mal conhecida.
Pensando nos leitores em geral, o que é essencial conhecer
sobre sua produção?
Alcir Pécora – O que acho essencial, de fato, são os sermões.
Fala-se muito dos sermões, mas pouquíssimos são lidos –
da Sexagésima, de Santo Antonio aos Peixes, do Mandato,
talvez o da Epifania, e uns poucos mais. Vieira tem mais
de 200 sermões editados por ele, uma obra imensa que está
muito longe de ser verdadeiramente conhecida, analisada
e discutida, sobretudo no Brasil, onde os estudos coloniais
na área da literatura são deixados de lado. Muito diferentemente
do que acontece na América espanhola, onde esses estudos
são tidos como fundamentais.
JU – O senhor também fala que a obra de Vieira
é alvo de distorções. Quais são as mais comuns? E por que
elas ocorrem?
Alcir Pécora – Não digo que sejam distorções exatamente,
pois todo leitor costuma trazer a obra para um contexto
próprio, que não é necessariamente aquele em que o autor
escreveu. E o leitor tem direito a esse tipo de deformação.
Entretanto, no caso de Vieira, há dois aspectos, entre vários
outros, que a meu ver reduzem muito a sua obra. Um deles
é a tentativa de ler um autor do século 17 sob o ponto de
vista de uma literatura nacional que só seria formulada
nos séculos seguintes – é a chamada leitura teleológica,
que tem gerado um empobrecimento grave de suas possibilidades
de significação.
Por exemplo: há quem procure perceber em Vieira elementos
que apontem para um Brasil independente, quando estamos
falando de um jesuíta, para quem a idéia de nacionalidade
brasileira (a par da portuguesa) não fazia nenhum sentido
– e acho que a repudiaria completamente se fosse pensada,
coisa que não foi. Em sua época, nem havia o Brasil como
entendemos hoje, sequer a mesma unidade territorial, já
que eram dois estados, o Brasil e o Grão-Pará. Vieira viveu
nos dois, mas sentindo-os sempre como parte do império português.
Enfim, a leitura teleológica nacionalista produz um anacronismo
que impede a percepção do que há de importante na obra.
JU – E qual é o segundo aspecto que empobrece a
leitura da obra de Vieira?
Alcir Pécora – É a imagem de um homem contraditório. Vieira
atuou fortemente em muitas áreas. Foi pregador nas missões
da Companhia de Jesus, de D. João IV, da rainha Cristina
da Suécia, tendo sido convidado mesmo a se tornar pregador
do papa. Foi teólogo e missionário. Também deixou escritos
considerados proféticos, mas que mais eram interpretações
casuísticas de profecias. Em dez anos trabalhando na frente
diplomática do governo de D. João IV, ainda produziu vários
pareceres e papéis políticos. Envolveu-se em todo tipo de
polêmica de Estado no seu período. Sustentou forte oposição
à Inquisição e participou de todo o debate sobre a questão
do judaísmo no século 17. Escreveu poesia, foi um grande
correspondente etc.
Diante desta trajetória, é mais fácil dizer que Vieira
tinha fases distintas ou atividades contraditórias entre
si, quando suas atuações, a meu ver, eram absolutamente
articuladas. Fala-se na contradição, por exemplo, entre
ser político e também pregador ou missionário. Entretanto,
pensa-se nisso com nossa visão contemporânea de que o religioso
é um homem voltado para si mesmo – dentro do lugar comum
da religião como questão de foro íntimo – e que o político,
ao contrário, é cínico ou falso ao falar de religião. É
uma visão estranha ao catolicismo tridentino, e especialmente
à Companhia de Jesus. Acreditava-se então que a vida cristã
demandava uma forma de política igualmente cristã. Portanto,
unir as duas atividades era uma necessidade, sob risco de
se incorrer na separação maquiavélica entre conduta religiosa
e prática política.
JU – Ainda assim, Vieira foi mesmo uma figura controversa,
ora considerado o “Apóstolo”, ora o “Judas do Brasil”.
Alcir Pécora – Ele é controverso porque suas posições nunca
foram as mais aceitas ou partilhadas. Pelo contrário, tinha
certo gosto em afrontar o lugar comum, o que para um político
é péssimo, já que o melhor político estabelece vocabulários
que permitam a negociação entre o lugar comum da gente com
poder. Vieira tinha um discurso muito inventivo e produzia
fórmulas consideradas excêntricas no ambiente político contemporâneo.
Por isso, produziu sempre com mais facilidade oposição que
aliança. Acho que até gostava disso. É particular em Vieira
esse gosto pelo confronto, pela tensão política.
JU – Daí, o fato de a produção discursiva de Vieira
revelar muito dos acontecimentos do seu tempo?
Alcir Pécora – Praticamente não há tema do século 17 com
o qual Vieira não tenha se envolvido. Além dos sermões,
dos escritos ditos proféticos e dos textos de chancelaria,
sua correspondência também é enorme: perto de 800 cartas
estão recuperadas na íntegra e certamente outras serão descobertas.
Existem poemas latinos, alguns em duelo com Gregório de
Matos. Parte da obra é escrita em latim e ainda inédita.
JU – O senhor analisa a retórica e a estética relativas
aos sermões e as relaciona com o peso da mensagem teológica.
Como esses elementos são articulados na obra de Vieira?
Alcir Pécora – Acho que o conceito de estética não se aplica
aos sermões, e sim o de retórica. Isso por que a estética
é um conceito que se formula a partir do século 18, quando
se pensa na autonomia do artístico ou do literário. No caso
de Vieira, há uma articulação entre o que é letrado, o que
é da religião e o que é da política. Esses universos não
são disciplinas estanques e separadas como nos séculos 19
ou 20. Participam necessariamente do universo intelectual.
E a integração entre esses saberes é postulado e tematizado
pela retórica, não pela estética.
JU – O que são as alegorias sacramentais e como
elas concorrem para o que o senhor chama de “magnífico teatro
discursivo”?
Alcir Pécora – As alegorias sacramentais são o tema fundamental
do livro. Procuro mostrar que a integração entre as várias
atuações de Vieira – como teólogo, pregador, missionário,
político, diplomata, profeta – tem como eixo uma idéia da
linguagem como sacramento. Esta guardaria potencialmente
um poder semelhante ao da consagração eucarística, quando
o sacerdote diz “este é o meu corpo, este é o meu sangue”
e faz com que, do ponto de vista católico, Deus ali se manifeste
nas formas do pão e do vinho.
A tese central do livro é que, no caso de Vieira, há uma
crença análoga em relação à palavra. É como se o pregador,
na construção do seu discurso, produzisse a presença divina
e ela, por um processo de conversão verdadeiramente místico,
agisse sobre as almas das pessoas, corrigindo-as individualmente
– ou, em se tratando de pessoas ligadas ao governo, influindo
na formulação de políticas de Estado. É isso que orienta
o conjunto da sua obra. Palavra, poder e mística são concepções
totalmente articuladas nos sermões de Vieira.
JU – Pode falar, grosso modo, sobre os temas abordados
em Teatro do Sacramento?
Alcir Pécora – O livro acompanha as analogias construídas
pelos sermões com o sacramento eucarístico, em várias dimensões.
Primeiramente estuda aquelas relativas à idéia de natureza,
tomando-a como efeito de Deus, de modo que tudo o que existe
ainda manifesta este ato criador original. Os sermões desenham
constantemente essa natureza em que não vemos apenas acidentes,
mas também o ato necessário de origem, de fundação divina,
que o mantém providencialmente orientado para seu fim original.
O segundo ponto estudado examina a própria concepção do
mistério eucarístico ressaltada nos sermões. Neles, a idéia
da comunhão está associada não só a uma ligação vertical
do cristão com Deus, mas a uma ligação do conjunto dos homens
entre si através de Deus. Trata-se de uma afirmação da comunidade
dos homens, inclusive comunidade política, por meio da presença
divina. O fundamento primeiro do Estado é o amor entre os
homens. Ressalto que é preciso cuidado para entender a palavra
amor nesse contexto: ela é ao mesmo tempo plena de identidade
mística e de adesão política às finalidades do Estado cristão.
Nada especialmente romântico.
No último capítulo trato do Vice-Cristo (ou Príncipe Encoberto),
uma figura que Vieira aproveita de diversas tradições místicas
e a reorienta na direção de suas convicções jesuíticas.
Trata-se, portanto, de compreender a sua visão histórica,
a qual necessariamente inclui a idéia de que também o futuro
já era parte dela e podia ser lido, identificado, explicado.
Nessa história do futuro, haveria o surgimento de um príncipe
português, cuja ação inspirada conduziria a um tempo de
reunificação da monarquia universal cristã. Lembremos que
Vieira viveu o tempo quente das guerras de religião, bem
como o das novas descobertas, com a revelação de povos no
Oriente e Ocidente sem nenhum conhecimento do Deus católico.
Ninguém mais ardentemente do que a Companhia de Jesus, e
seus soldados, alguns extraordinários como Vieira, formulou
uma política de reunificação da Igreja na Europa e de conversão
de novos gentios, com incursões na China, Japão, Índia etc.