ÁLVARO KASSAB

engenheiro mecânico Secundino Soares Filho, um dos maiores especialistas em energia elétrica do país, não tem dúvidas: a falta de investimento e as trapalhadas do governo foram duas das principais causas que alimentaram a crise que atinge o setor. Professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da Unicamp, Secundino desenvolve com sua equipe softwares para otimização e gerenciamento da produção de hidroelétricas. Na entrevista que segue, o engenheiro diz que o sistema é projetado para o desperdício, isenta São Pedro ao provar que as vazões registradas em Itaipu foram acima da média nos últimos anos, e prega a criação de cargas interruptíveis para os grandes consumidores.

P- Por que o país chegou nesse estágio de déficit energético?
Secundino Soares Filho - Não há dúvidas de que foi devido à falta de investimentos em novas usinas e em novas linhas de produção, sobretudo em novas usinas. As razões para essa falta de investimento é que precisam ser analisadas com mais profundidade. Acredito em uma conjunção de fatores. O governo resolveu, simultaneamente, privatizar o setor elétrico e reestruturá-lo. Trabalhava de uma maneira e mudou tudo – acabou com o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, criou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico). Enfim, remodelou o setor e privatizou as estatais. Duas coisas feitas ao mesmo tempo e mal implementadas. Houve muito atraso. A privatização do setor elétrico já era para ter terminado e, entretanto, só foi executada em nível das distribuidoras, as que primeiro recebem o dinheiro do usuário.

P - Quais foram os efeitos imediatos dessa política?
R - Quando a privatização se encaminhava para a geração, que era o objetivo maior da reestruturação, todo mundo no Estado estava acomodado. Não havia estímulo para buscar maior eficiência. A privatização tinha por finalidade criar um ambiente competitivo na área da geração. E, para isso, era preciso dividir as empresas, muito grandes em sua maioria. A Cesp, por exemplo, foi quebrada em três; Furnas deveria passar pelo mesmo processo, já que nenhuma empresa de geração podia ter mais que 20% do mercado. A reestruturação parou no meio. Furnas não conseguiu ser privatizada, a oposição em vários setores tornou-se muito grande. O processo foi mal executado; não diria que o modelo estava errado, mesmo porque nem chegou a ser testado.

P - No campo da geração, dá para quantificar o montante privatizado?
R - Cerca de 20%. São três empresas: a Gerasul (antiga Eletrosul), a Cesp/Tietê e a Cesp/Paranapanema. Os 80% restantes continuam nas mãos de estatais que estão cheias de dinheiro no cofre e não investem porque constavam do programa de privatização.

P - O processo foi paralisado?
R - Exatamente. As estatais de geração pararam de expandir porque estavam na fila da privatização, que não andou. A única que privatizou mesmo foi a Cesp, que agora também adiou a terceira parcela do leilão Cesp/Paraná. Nesse caso, acho que a culpa pode ser atribuída às autoridades da área – o ministro de Minas e Energia e representantes da Aneel. E, no meio dessa confusão, fomos pegos pela crise energética. É complicado saber para onde vai caminhar o processo. Ficar no meio do caminho, como estamos agora, é a pior das situações.

P - Os críticos das privatizações denunciam que as empresas demitiram muito e investiram pouco. O senhor concorda?
R - As empresas de geração foram as únicas que investiram. A Duck, por exemplo, que comprou a Paranapanema, está construindo três termelétricas; a Gerasul já aumentou sua capacidade de geração, e acredito que a Cesp/Tietê esteja fazendo o mesmo. O problema não está nas empresas privatizadas, mas nas estatais, para as quais novas obras não fazem muito sentido. Quem vai querer comprar uma empresa que está se comprometendo com dívidas de longo prazo? Ninguém investe em usinas à venda. Mas não se pode demorar seis anos para vendê-las.

P - Poderia precisar quando surgiu a crise?
R - Ela veio lentamente. Num sistema hidráulico como o nosso, o que se faz é calcular qual a disponibilidade de uma usina na situação mais crítica de chuvas. O período de maio de 1952 a novembro de 1956 registrou a pior seqüência de vazões do histórico. Então, em cada nova usina, calcula-se o que ela pode produzir num período tão seco como aquele. Chamamos esta capacidade de ‘energia firme’. O planejamento previa ainda que a energia firme do sistema deveria atender o crescimento da demanda. Para isso, novas usinas deveriam ser construídas. Logo, a gente sempre trabalhou sem depender de São Pedro. Não vou dizer sem depender para sempre, porque pode vir uma seca pior que a de 52. Mas era este o critério de planejamento: suportar pelo menos a seca mais crítica do histórico. Ocorre que, paulatinamente, quando os investimentos de geração foram sendo atrasados e postergados, a demanda ultrapassou a oferta de energia firme. A partir desse momento, ficamos dependendo da chuva. E choveu. Choveu bem em 97 e 98; em 99 e 2000 também choveu razoavelmente no Sudeste, acima da média. Mas como a falta de investimento foi maior do que a chuva que caiu, não houve solução.

P - Era necessário, então, um mínimo de investimentos?
R - Com os investimentos necessários, para continuar no critério antigo de aumentar a energia firme à medida do crescimento da demanda, não teríamos problemas. O sistema sobreviveu bem dessa forma, desde 1960 até hoje. O que houve foi desperdício de energia por falta de um planejamento mais equilibrado.

P - Como essa energia era desperdiçada?
R - Como o planejamento do sistema é feito para esse período crítico, ele está sempre com sobras, pois normalmente as condições hidrológicas são mais favoráveis do que em situações mais críticas. Sempre denunciamos que não havia – e nunca houve – a preocupação de dar uma utilidade econômica para essa energia, que chamamos de secundária. É aquela que vem acima da energia firme, quando as condições hidrológicas são favoráveis. Essa energia secundária foi vertida no sistema brasileiro. E a gente sempre apontou o contra-senso de desperdiçá-la e não de aproveitá-la.

P - Qual seria, nesse caso, o mecanismo a ser utilizado?
R - A alternativa mais adequada seria criar cargas interruptíveis. Os grandes consumidores teriam uma garantia de fornecimento mais baixa que a dos consumidores usuais, mas com uma tarifa também menor. Durante cinco anos de vida útil de um empreendimento – uma produtora de alumínio, por exemplo –, a energia custaria metade do preço, porém com energia disponível em 70% ou 80% do período. Ou seja: por quatro anos, se forneceria energia mais barata; por um ano, não se forneceria nada. Com isso, o país formaria um mercado secundário. E, numa crise como a atual, simplesmente suspenderia o fornecimento para esses grandes consumidores, sob respaldo de contrato. Não adianta só cortar 20%.

P - Esse procedimento não agravaria o quadro de desemprego?
R– Setenta por cento do preço do alumínio corresponde a energia elétrica. Portanto, a empresa pode até manter o pessoal, que é um custo menor, compensando-o com a tarifa de eletricidade mais barata.

P - Esse modelo é adotado em outros países?
R– Um exemplo é a Hidro Quebec, no Canadá. É interessante que as empresas de alumínio do Maranhão tenham recebido incentivos tarifários, sem a contrapartida da garantia. Pagam menos pela energia e precisam fazer como nós: economizar 20%. Sendo uma eletricidade mais barata, ela deveria ser interruptível. Na hora do contrato, esse aspecto não mereceu atenção. A energia hidráulica que criaria um mercado secundário não é nada desprezível. Temos mais ou menos 45 mil megawatts (MW) de energia firme no sistema brasileiro e, em média, 10.000 MW de energia que é vertida.

P - O senhor poderia explicar melhor a energia vertida?
R– É uma água que sai pelo ladrão, quando poderia passar pela turbina e produzir energia elétrica. Se não existe mercado e o reservatório está muito cheio, ela passa pelo vertedouro e segue rio abaixo. Perde-se a chance de, naquela usina, produzir eletricidade. Na usina de baixo, se verter, perde-se mais um pouquinho. Então, todas as usinas que estão vertendo num determinado momento e que tinham capacidade de turbinar, desperdiçam megawatts. Isso tem sido comum no sistema brasileiro. Trata-se de um sistema projetado para o desperdício.

P - Mesmo em épocas de seca?
R - Em época de seca, evidentemente os reservatórios estão tão baixos que não se verte nenhum deles. Pode-se verter eventualmente, como agora em Itaipu. Mas, por falta de linha de transmissão, não se pode trazer a energia para a região carente, que é a Sudeste.

P - Seria mais uma das conseqüências da falta de investimento no setor?
R - Sim. Pelo menos 60% dos investimentos em energia elétrica são em geração; cerca de 20% a 25% em transmissão; e o resto, em distribuição. Faltou muito na geração e faltou também na transmissão. Tanto que estamos vertendo no Norte, em Tucuruí, e no Sul, em Itaipu, mas não conseguimos trazer essa energia para a região em crise. As linhas de transmissão amenizariam o racionamento, apesar de insuficientes para evitá-lo.

P - A opção por termelétricas como fonte de energia é objeto de polêmica. Como o senhor vê isso?
R - A termelétrica é uma alternativa, mas não a ideal. O ideal seria continuarmos com a expansão hidroelétrica, de maneira que, com a energia firme das hidráulicas, nossa demanda pudesse ser atendida – com o porém de formarmos um mercado para a energia secundária. Vejo como saída mais econômica a criação no setor industrial de processos que trabalhassem tanto com a eletricidade como com outro combustível. Uma padaria, por exemplo, pode ter um forno elétrico e um a gás: com a energia hidráulica disponível, seu preço no atacado vai ficar barato; porém, se a situação nas hidráulicas for difícil, pode-se desligar o forno elétrico e acionar o movido a gás. Isso deveria ser feito em todos os processos industriais onde houvesse possibilidade. Outros países adotam o modelo. Na década de 80, quando havia energia sobrando, o governo incentivou a chamada eletrotermia – substituição de processos que usavam óleo combustível e gás no setor industrial, por eletricidade.

P - E o que aconteceu depois?
R - O governo não foi inteligente. Deixou de financiar as indústrias para que mantivessem os equipamentos operacionais antigos. Agora seria o momento de aproveitá-los. É importante que o país tenha essa flexibilidade. A alternativa da termelétrica também permite essa complementação, mas ela também precisa ser flexível. E, pelo jeito, os contratos de fornecimento do gás não prevêem o desligamento quando for necessário; o combustível dela vai estar pago e a usina vai operar de qualquer jeito. Se for para construir termelétrica visando firmar energia secundária, que ela seja efetivamente flexível. Mas não é a solução ideal porque, quando se produz eletricidade para uma termelétrica, aproveita-se só 30% da energia primária que existe no combustível.

P - Por que é tão dispendioso?
R - Por causa do processo de transformação do calor em eletricidade, há uma perda muito grande, da ordem de 70%. Na transmissão dessa eletricidade, perde-se mais uns 10%. Depois, acaba-se usando outra vez a eletricidade para aquecer a água, fazer um forno, ou seja, para produzir calor. Por isso, acho preferível que a complementação seja feita no processo industrial, lá no calor; na fonte, diretamente, em vez de se produzir eletricidade para, depois, usar a energia no processo final.

P - Isso é factível no cenário de hoje?
R - Perfeitamente factível, desde que o governo crie incentivos para que os industriais mantenham equipamentos nas duas fontes de energia. O problema é que isso não se faz de uma hora para outra. É necessário definir um plano agora, para daqui a cinco anos, talvez, obter resultados.

Continua...

 


© 1994-2000 Universidade Estadual de Campinas
Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP
E-mail:
webmaster@unicamp.br