Wilmar Rocha D´Angelis entra célere no corredor do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). “Se ligarem do Acre, estou por aqui”, diz à colega de trabalho antes de abrir a sua sala. As distâncias entre os destinos do professor medem-se em escala continental: Rondônia, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina... De um armário, D’Angelis tira a coleção de cinco números da revista Liames, único periódico sul-americano especializado em línguas ameríndias. O sugestivo nome, quase uma licença poética, é a abreviatura de Línguas Indígenas Americanas. Reúne artigos de pesquisadores de todo o mundo. O docente põe sobre a mesa logo depois uma cartilha produzida por índios pertencentes a um subgrupo guarani do litoral paulista. Os textos curtos, algo densos, evocam em sua maioria a natureza e o cotidiano da aldeia.
Especialistas
formados
no IEL estão
ganhando a
estrada e as comunidades
As duas publicações sintetizam as linhas adotadas pelos professores Lucy Seki, Wilmar Rocha D´Angelis e Angel Corbera Mori, especialistas que colocam a Unicamp na vanguarda do estudo de línguas indígenas no país. A saber, são três as vertentes principais de atuação: a descritivista (sistema morfológico, gramática, sintaxe etc), a de pesquisa de teorias lingüísticas e a educação escolar indígena. As atividades estão a léguas da visão idílica que se tem no mundo dos brancos. É coisa séria. A fusão de aspectos morfossintáticos com a extensão se presta – não só, como veremos – a preservar as línguas estudadas. Atualmente, o departamento está às voltas com cerca de duas dezenas delas.
Os pesquisadores guardam suas preferências, mas elas se completam. D’Angelis revela que, apesar das ênfases, os três interagem com as linhas dos demais. Além dos três docentes, o IEL abriga dois professores de Lingüística Aplicada especialistas em ensino indígena e outros nomes da Lingüística Teórica (Sintaxe, Fonologia e Sociolingüística) que eventualmente também orientam teses em língua indígena. Prova disso é o grande número de especialistas formados no IEL que ganharam a estrada e hoje atuam em órgãos públicos, universidades, ONGs e comunidades. Entre mestres e doutores em lingüística, a Unicamp colocou na praça dezenas de especialistas em língua indígena.
D’Angelis, por exemplo, é um lingüista experimentado. Sua formação teórica transforma-se em ferramenta quando ele atua na formação de professores indígenas e em programas de educação bilíngüe. Trata-se de um caso típico em que a teoria científica auxilia na construção de propostas e de metodologias para aquilo que se convencionou chamar de “trabalho de campo”. O fato de a pesquisa não ficar circunscrita ao âmbito acadêmico contribui sobremaneira para a sobrevivência de línguas ameaçadas ou fadadas ao desaparecimento. O docente faz questão de ressaltar a importância do instrumental científico, mas não esconde a satisfação em ter orientandos e ex-alunos desenvolvendo trabalhos em aldeias, sobretudo na formação de professores índios. Atualmente, por exemplo, três alunas sob sua órbita estão em aldeias kaingang do norte do Paraná e do Rio do Grande do Sul.
Ademais, lembra o docente, o registro, a descrição e a análise de línguas indígenas fornecem o substrato que sustenta o leque de ações nas comunidades. Não raro, adverte, muitas aldeias não têm escola porque os professores estão inseguros ou porque o material de apoio é inadequado. D’Angelis exemplifica: atualmente, produz um manual de alfabetização de cerca de 50 páginas para aldeias kaingang do Sul. O texto de instrução, com aulas passo a passo, leva em conta a cultura e o contexto histórico da comunidade. Esse cuidado, pondera o especialista, faz com que a cartilha deixe de ser apenas um instrumento de partilha para transformar-se num mecanismo cujo poder de reprodutibilidade é imenso. Sua conseqüência mais imediata – e visível – é a adesão de outras aldeias ao programa de alfabetização.
Esse trabalho desenvolvido nas aldeias do Sul do país é representativo da importância e do pioneirismo da Unicamp no que diz respeito à formação de pesquisadores de línguas indígenas e, por tabela, na lingüística brasileira. Feitas as contas, D’Angelis põe nos dedos de uma mão o número de instituições que investem nessa linha de atuação: Universidade de Brasília (UNB), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Museu Nacional do Rio de Janeiro e Museu Goeldi (Belém), sendo que os dois últimos formam pesquisadores mas não titulam. Algumas outras universidades desenvolvem atividades bissextas. O IEL, além de titular e formar especialistas, fornece condições de pesquisa e investe na promoção de eventos. De 1977 a março de 2006 foram produzidas 49 dissertações de mestrado e 34 teses de doutorado sobre o tema. Não por acaso o próprio D’Angelis orientou, na Unicamp, o primeiro indígena brasileiro a obter o título de mestre em lingüística. O xokleng Nanblá Gakran voltou para sua terra na região de Blumenau, onde hoje dá aula na aldeia e na cidade.
Constatada a carência de centros de formação, D’Angelis faz um comentário sobre sua agenda. Falta dia, falta hora. Em breve o professor voa para o Acre. Em setembro, o destino é o Amazonas, de onde retornou em maio. O mesmo Amazonas que concentra mais da metade das etnias indígenas do país e que não tem sequer uma instituição que invista na preservação desse patrimônio lingüístico. Situação semelhante ocorre em Mato Grosso. Nada a reclamar – afinal, para um pesquisador da área, como é o caso do docente da Unicamp, os dias passados na aldeia são “os melhores do ano”. A emenda, porém, vem na cola. “Mas não deixa de ser uma loucura”. A tradução: falta gente qualificada para atender a demanda.
Mais contas – Na análise desapaixonada de D’Angelis, as línguas indígenas sofrem um preocupante processo de erosão. O professor lança mão da metáfora esportiva para simplificar as coisas: hoje, o jogo está empatado em muitos lugares nos quais os lingüistas perdiam de goleada. Há cerca de 35 anos não existia sequer um professor índio no Brasil. De uma década para cá, o número de indígenas que foram para a frente da lousa cresceu exponencialmente por uma série de razões. Direitos saíram do papel, a universidade atentou para a importância da formação, e lideranças de etnias descobriram que a preservação da língua muitas vezes significa a sobrevivência da própria espécie. D’Angelis conta que recentemente, em Rondônia, deu curso de formação em uma sala que tinha 40 professores que representavam sete línguas diferentes.
Mas e a erosão? A resposta passa pelo paradoxismo. Se é inegável que cresce a população indígena, as 180 línguas faladas no país por cerca de 200 povos nunca estiveram tão ameaçadas. Desse total, 110 idiomas – mais que a metade, portanto – são falados por menos de 500 pessoas. A ameaçá-los, a pressão da língua majoritária e o crescimento econômico. Uma coisa puxa a outra. Quanto mais os indicadores da economia ficam robustos, mais nefasta é a influência do que vem a reboque. O professor do IEL não é um purista. Sabe, porém, que a equação ganha contornos insolúveis em razão das características predatórias do que é sinônimo, no Brasil, de crescimento. O sustentável não dá a cara nas comunidades indefesas. Terra arrasada é a expressão mais adequada para a barbárie. Não há nada de telúrico na constatação, muito embora florestas inteiras – e as aldeias abrigadas por elas – esfumacem da noite para o dia.
D’Angelis vai colocando os exemplos na mesa. A soja atravessou o rio Amazonas e brotou no norte do Estado homônimo, devastando santuários naturais e chegando a populações quase intocadas. Não veio sozinha. Trouxe junto o maquinário pesado, a luz elétrica, o botequim, o aventureiro, as doenças, a bateria solar... e a novela das 8 (um cacique gaúcho batizou sua neta com o nome de personagem global). O homem avança na borda da mata, sua onipresença paira sobre tudo. A devastação muda de lugar, mas seu efeito do Xingu ao Chuí é muitas vezes o mesmo: além de fazer desaparecer o povo, leva junto a língua.
Pirataria – D’Angelis, seus colegas de academia e lideranças indígenas vêm buscando novas maneiras de enfrentar essa realidade. Uma idéia do docente do IEL ganhou corpo e se materializou. O docente da Unicamp vê nas ondas do rádio um auxílio poderoso na luta pela preservação do patrimônio lingüístico. Experiências bem-sucedidas de transmissões de programas apenas em línguas indígenas já estão sendo feitas em comunidades no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso. Floresce também a implementação do inédito curso de Licenciaturas Específicas para a Etnia Kaingang, do qual na Unicamp D’Angelis é o único representante.
No Departamento de Lingüística do IEL, o esforço não é menor. D’Angelis volta a ressaltar o trabalho científico desenvolvido por seus colegas. Sabe que a extensão materializa estudos que consomem anos de rigor e investigação. Na outra ponta, condensam um patrimônio que não raro é alvo da rapinagem de pesquisadores estrangeiros. Não são poucos, relata o docente, que sob a chancela do novidadeiro na bagagem – a “teoria do momento” – permanecem alguns meses ou semestres em universidades brasileiras. Estabelecidos, apropriam-se de trabalhos lingüísticos desenvolvidos no país. Alguns chegam a “higienizar” os dados – como demonstrou o próprio D’Angelis em sua tese de doutoramento. Um desses especialistas chegou a afirmar que os brasileiros deveriam apenas descrever as línguas, porque das teorias os estrangeiros cuidariam. Qual o antídoto para a pirataria lingüística e para a visão colonialista? Os pesquisadores do IEL prescrevem a receita. E passam para frente.