“A escola sempre trabalhou com a idéia de que essa relação é construída por experiências de natureza cognitiva, mas os dados que levantamos mostram que a relação sujeito-mediador-objeto é também marcadamente afetiva”, diz o psicólogo Sérgio Antonio da Silva Leite, organizador do livro. Repleta de depoimentos, a obra reúne artigos de pós-graduandas da Faculdade de Educação da Unicamp, além de trabalhos de iniciação científica de alunas do curso de Pedagogia, todas orientandas do professor Sérgio Leite. “O fato de um aluno gostar ou odiar matemática, por exemplo, pode estar ligado à maneira como o professor, na qualidade de mediador, construiu a relação do estudante com o objeto de estudo”, acrescenta.
Tendo como referencial teórico a perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, preconizada pelo psicólogo e educador russo Lev Vygotsky (1896-1934), a pesquisa revelou que fatores emocionais influem diretamente no aspecto cognitivo. “Tradicionalmente, a aprendizagem escolar era interpretada como um processo de transmissão de conhecimento, no qual quem sabe ensina a quem não sabe”, observa Sérgio Leite. Nessa condição, segundo ele, o aluno era visto como um sujeito passivo, cabendo ao professor o controle das condições. “É o tipo de ensino que Paulo Freire denunciava como ‘bancário’”. Atualmente, porém, as concepções são bem diferentes. “Entende-se que a aprendizagem ocorre a partir da relação entre o sujeito e os diversos objetos de conhecimento, sendo, no entanto, tal relação sempre mediada por um agente cultural”, explica. “O aluno passa a ser considerado como sujeito ativo e o professor visto como principal mediador em sala de aula”.
As pesquisas realizadas pela Unicamp revelaram que o afeto, apesar de ser um aspecto subjetivo na relação professor-aluno, pode ser objeto de pesquisa. “Quando falamos em mediação estamos falando de ações muito concretas, presentes na sala de aula”, observa Sérgio Leite. O psicólogo refere-se a diferentes formas de manifestação da afetividade: as práticas pedagógicas, as posturas e os conteúdos verbais do professor. “São linguagens que podem ser interpretadas e portanto repercutem positiva ou negativamente no aluno. Quase sempre, aquilo que o estudante vivencia afetivamente de forma positiva facilita o desenvolvimento cognitivo”, afirma.
Sérgio Leite chama a atenção, porém, para a necessidade de a palavra “afeto” não ser mal interpretada. Avesso a teorias ingênuas, em geral pouco fundamentadas, ele faz questão de afirmar que professor afetuoso não é o mesmo que professor “bonzinho”. Do ponto de vista das práticas pedagógicas, a dimensão afetiva, segundo ele, transparece na organização da aula, na metodologia adotada e no planejamento das atividades. “Isso tem um efeito enorme na auto-estima porque o aluno percebe que o professor está interessado no seu sucesso”. Já as aulas mal planejadas, afirma, levam o aluno ao fracasso e, por conseqüência, à baixa auto-estima.
Em relação às posturas e conteúdos verbais, destaca-se a linguagem adotada (verbal e não-verbal). “As pesquisas revelaram a importância de o professor dar feedback ao aluno”, diz Sérgio Leite. Outros dois aspectos também impressionam positivamente os estudantes, facilitando sua relação com o objeto de estudo. Um deles é a segurança do professor em relação ao tema abordado, ou seja, o conhecimento que ele demonstra sobre o conteúdo. . “Isso gera confiança e o aluno se envolve na relação pedagógica sem medo”. O outro fator é a relação que o professor mantém com o tema estudado. “Se o professor demonstrar paixão pelo seu objeto de ensino, acaba contagiando o aluno”.
Pontos intrigantes Os artigos foram escritos por Cristina Martins Tassoni, Daniela Cavani Falcin, Ariane Roberta Tagliaferro, Samantha Kager, Flávia Regina de Barros, Fabiana Aurora Colombo, Ellen Cristina Baptistella Grota, Juliana Simões Zink de Souza, Lílian Montibeller Silva e Maria Cristina Rosolen Moretto Pellison. As pesquisas envolveram alunos da pré-escola e do ensino fundamental e médio. “Ao problematizarem situações cotidianas em sala de aula e ao privilegiarem nas análises as experiências relatadas de alunos e professores, os textos apresentados levantam intrigantes pontos de discussão”, escreve a professora da Faculdade de Educação Ana Luiza Bustamante Smolka, que assina o prefácio do livro.
De fato, todo o trabalho está fundamentado nas experiências vivenciadas em sala de aula. Cristina Tassoni, por exemplo, realizou sua pesquisa em três classes de uma escola da rede particular de ensino, envolvendo alunos de 6 anos em média. No estudo, identificou que a interpretação que os alunos fazem do comportamento dos professores em situações de ensino-aprendizagem é de natureza afetiva. A análise dos dados se deu pelo levantamento de categorias, a partir dos comentários dos alunos feitos ao assistirem a cenas videogravadas de inúmeras interações ocorridas em sala de aula, num procedimento denominado autoscopia.
“As crianças comentavam sobre os comportamentos da professora, os quais eram permeados por sentimentos”, afirma a autora do artigo. “Falavam do que gostavam no comportamento dela e indicavam pistas sobre quando esses comportamentos influenciavam o desempenho e a aprendizagem”, completa. Os comentários dos alunos foram organizados em dois conjuntos de categorias: posturas e conteúdos verbais.
No conjunto “posturas”, os aspectos mais valorizados foram as subcategorias “proximidade” (referindo-se à presença física do professor) e “receptividade” (referindo-se a uma postura em que o professor volta-se fisicamente aos alunos para atendê-los e ouvi-los). “Os relatos dos alunos sugerem que ambas foram interpretadas como uma forma de ensinar, ajudar, assim como tranqüilizar e criar vínculos permeados de sentimentos de cumplicidade”, destaca Cristina. No conjunto “conteúdos verbais”, o que mais se evidenciou foram as verbalizações dos professores que encorajavam os alunos a avançarem na execução das atividades, bem como as que apontavam caminhos para possíveis soluções diante de dúvidas e dificuldades.
Dados semelhantes foram apresentados por Fabiana Aurora Colombo, que estudou uma classe de alfabetização, porém com metodologia diferenciada, centrada na observação e análise de relações previamente gravadas abordagem conhecida como microgenética. Os dados foram organizados em dois núcleos temáticos: verbais e não-verbais. Os resultados sugerem que as interações em sala de aula são constituídas por um conjunto complexo de variadas formas de atuação que se estabelecem entre as partes envolvidas. Uma maneira de agir está intimamente relacionada à atuação anterior e determina o comportamento seguinte. “O que se diz, como se diz, em que momento e por que, afeta profundamente as relações professor-aluno”, afirma Fabiana.
Os inesquecíveis As pesquisas também demonstraram que alguns professores ficam para sempre na memória dos alunos. “Isso ocorre não apenas porque o professor é uma pessoa ‘simpática’, mas sobretudo porque sua aula é organizada e sua postura demonstra interesse pelo sucesso do aluno”, diz Daniela Cavani Falcin, que entrevistou estudantes do ensino médio. Esse interesse, segundo depoimento dos alunos, é evidenciado desde a forma como o professor organiza o espaço físico da sala de aula até a maneira como desperta o interesse para o tema estudado. “Quando o professor explicita aos alunos a relação entre os conteúdos escolares e o seu cotidiano, aumentam as chances de interação saudável com o objeto de conhecimento”, explica.
Seguindo a mesma metodologia, Ariane Roberta Tagliaferro focalizou o trabalho de um professor de Língua Portuguesa que marcou várias gerações num pequeno município do interior de São Paulo. O “professor inesquecível” surge nos relatos como alguém “muito envolvido” com o objeto de estudo e que “dava espaço” para o aluno dizer o que estava sentindo. Várias pessoas com aversão aos livros apaixonaram-se pelo hábito da leitura após as aulas do referido professor. “Fui pegando cada vez mais gosto pela leitura e, conforme eu lia, sentia o cheiro, imaginava cenas concretas, sorria, chorava, enfim, eu saia do mundo real e entrava no livro”, relata uma das pessoas entrevistadas.
Apesar de a pesquisa revelar dados concretos sobre a importância do aspecto emocional no processo cognitivo, o coordenador do trabalho diz que o objetivo não é oferecer subsídios para a formulação de uma nova corrente, do tipo “pedagogia do afeto”. “Esse tipo de pensamento em relação à afetividade acaba banalizando o conceito e dando a idéia de que isso é mágico”, pondera. Para Sérgio Leite, seria um grande perigo transformar a questão afetiva num projeto pedagógico isolado. “Não se trata de uma revolução, mas de reconhecer cientificamente a importância desse aspecto em qualquer processo de aprendizagem”.
SERVIÇO
Afetividade e práticas pedagógicas
Sérgio Antônio da Silva Leite (org.)
Editora Casa do Psicólogo
ISBN 85-7396-449-4
Páginas: 311
Preço: R$ 40