Na Suíça não se vê gente vivendo embaixo de viadutos ou nas calçadas. O artista plástico Christian Pierre Kasper chegou ao Brasil em 1997, mas não atentou apenas para aspecto trágico das construções dos moradores de rua. Na monografia para obtenção do diploma da Escola Superior de Arte Visual de Genebra – “A força das coisas” –, ele tratava da impossibilidade de separar a técnica da cultura e já indagava sobre uma possível apropriação dos artefatos por meio do desvio de função, pensando, sobretudo, no uso artístico das tecnologias. Quando seu interesse foi deslocado para o design e a arquitetura, a questão do “habitar” tornou-se o novo contexto para pensar a relação com “as coisas”, em particular o papel do ambiente doméstico nos processos de subjetivação.

Ao observar aquelas construções precárias nas idas e vindas entre Campinas e São Paulo, pela janela do Cometa, Kasper deu-se conta de que a bricolagem é um componente do “habitar”. Os moradores de rua, não tendo acesso aos meios comuns para criar e manter uma casa, inventam outros modos de habitar através da bricolagem. “Na língua francesa, a acepção mais usual da palavra bricolage designa as pequenas obras que o habitante faz ele mesmo a fim de manter ou melhorar sua casa. O termo francês traz um sentindo que vai um pouco além dos pequenos trabalhos domésticos, que é a idéia de técnica improvisada, adaptada às circunstâncias”, explica.

No intuito de investigar de perto como os moradores de rua produziam seus inventos, Christian Kasper ingressou no curso de pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Tendo sido a monografia em Genebra aceita com o mérito de mestrado, a tese intitulada “Habitar a rua” – orientada pelo professor Laymert Garcia dos Santos e apresentada em 20 de junho – valeu o doutoramento em Ciências Sociais.

Como no mestrado, Kasper somou novo mérito, o de questionar e aprofundar o conceito sobre habitat. “Para nós, o habitat está ligado a casa, a moradia em termos de funções. O ser humano seria, antes de tudo, portador de necessidades corporais, tais como sono, alimentação, preservação da temperatura corporal, etc. A moradia supriria essas necessidades, reunindo em um só espaço os equipamentos adequados para a sua satisfação. O desafio era mostrar ir além tanto da visão funcional do habitat quanto da sua identificação com a forma-casa e mostrar que é possível habitar sem uma casa”, justifica.

Estudar a cultura material dos moradores de rua de São Paulo era o plano principal do artista suíço. Observando, por exemplo, que do fundo de uma garrafa PET eles produzem uma tigela e de sua parte superior, um funil – e que a PET de guaraná Antártica possui a curvatura propícia para uma colher. Descrevendo, do ponto de vista arquitetônico, como se constrói malocas sustentadas em pilastras, debaixo de carroças, em um, dois, três ou quatro muros. Apontando a faca como ferramenta indispensável na bricolagem e para ataque e defesa pessoal. Ou mostrando como se faz fogões de uma ou duas bocas usando latas de óleo de 20 litros, aproveitando as latas menores para o cozimento porque a panela velha que faz comida boa é roubada por causa do alumínio.

Kasper, no entanto, mergulhou mais fundo em sua pesquisa. “Minha abordagem da população de rua se diferencia das pesquisas habituais porque o enfoque está na cultura material, segundo uma perspectiva tecnológica: a tecnologia vista como um conjunto dos meios, materiais e cognitivos, que tornam possível a persistência de uma forma de vida. O objeto da pesquisa não é um determinado segmento social, mas, antes, uma determinada forma de inserção no espaço urbano”, esclarece.

Andanças – O pesquisador estima que caminhou cerca de 1.000 quilômetros por São Paulo, cobrindo o chamado centro expandido e elegendo como pontos ricos em observação a região da Luz, o Mercado Municipal, Parque Dom Pedro, baixada do Glicério, o Minhocão. “Um detalhe que observei é que quase todos os moradores de rua têm uma vassoura. Varrem o chão. A varredura pouco tem a ver com um hábito remanescente da casa que não se tem mais. É fundamentalmente marcação e a criação de um território. Só depois vêm as funções: um canto para dormir, cozinhar, guardar pertences”.

Um ponto que Kasper freqüentava obrigatoriamente era a “Ilha dos caixotes”, um fragmento do Parque Dom Pedro recortado por uma alça de acesso ao viaduto 25 de março. Foram vinte meses de convívio com 12 a 15 moradores que vivem dos caixotes recolhidos no Mercado e nos restaurantes da área central. Caixote é consertado e renegociado; caixote serve de sustentação do abrigo, vira cama, armário, banco, mesa, combustível de fogão e da fogueira que em noite fria aquece tanto quanto roda de pinga. De caixote Kasper viu construído um berço: “Uma hora depois, o pai estava com o bebê no colo, os caixotes tinham evaporado”.

A “Ilha” também permitiu uma visão etnográfica da população de rua. Gente que prefere viver ao relento, porque em albergues é expulsa às 7 da manhã e não pode reservar seu canto; gente que foge da família para beber livremente; gente que vai e volta porque não consegue pagar o quarto de cortiço; gente que freqüenta o local a negócios; gente jovem das redondezas que se esconde para consumir drogas. “Um detalhe que me surpreendeu foi a longevidade da relação dos casais”, ressalta o pesquisador.

Tecnologia – Christian Kasper ocupa boa parte da tese com a descrição da tecnologia empregada pelos moradores de rua, que se baseia na transformação do lixo. Como o lixo reciclável, que rende até R$ 20,00 por duas horas e meia de trabalho e que de certa forma vincula o morador de rua ao mercado, visto que há cotações para o peso do alumínio e outros metais, papelão, papel branco, plástico; e o lixo recuperado para fazer outras coisas para ele mesmo.

Habitar a rua, porém, não se resume a garantir os meios de sobrevivência. “Não se pode falar do espaço ocupado pelos moradores de rua sem tratar do esforço que é feito para aniquilá-los. Além das medidas propriamente policiais, como a destruição periódica de seu habitat e confisco de seus pertences pelo ‘rapa’, eles são mantidos longe de certos lugares”, observa Christian Kasper. Entre as estratégias estão o espalhamento de óleo queimado no chão, a instalação de sprinklers regando o espaço coberto por marquises, a ocupação de vãos de viadutos por canteiros, a substituição de planos horizontais por planos inclinados.

No último capítulo, “Extermínio”, Kasper recorreu a uma leitura sociológica para mostrar como se cria uma categoria de pessoas descartáveis, sem funcionalidade na economia e sem perspectiva de reinserção no mercado. “Na realidade, são consideradas ‘matáveis’. Morrem moradores de rua todos os dias e a mídia só faz barulho em chacinas, que permanecem impunes”, constata. Como contraponto, entre os capítulos, o autor inseriu crônicas sobre figuras singulares que encontrou nas ruas. “São indivíduos que escaparam, cada um à sua maneira, tanto da identidade de ‘trabalhador’ quanto do buraco negro da ‘subjetividade de mendigo’, e edificaram por um tempo aquilo que Félix Gattari chamou de território existencial”.

HOMEM ANTIBOMBA

Foi caminhando ao longo de uma dessas avenidas gigantescas que atravessam São Paulo – a Radial Leste – que me encontrei com Luciano. Percebi primeiro, ao longe, uma silhueta que me chamou a atenção por seu modo estranho de se movimentar. Uma figura na beira da pista, que parecia bastante atarefada, porém com gestos lentos e inabituais. Foi quando cheguei mais perto que sua roupa apareceu por si mesma: com uma fita na cabeça segurando um osso na vertical de sua testa, o corpo revestido por saquinhos de plástico, remetendo quase que a uma espécie de traje espacial. Perguntei a respeito de seu estranho equipamento. Disse-me que era feito para viajar: proteção antibombas, pois esperava a nave que iria levá-lo para os Estados Unidos. Além de seu aspecto, o traje de Luciano constitui uma espécie de aparelhagem corporal. Para ele, que o apresenta como um equipamento de sobrevivência, num mundo onde as explosões ameaçam, e para quem o observa, produtor de uma postura e de movimentos singulares. A posição de sua cabeça, em particular, se deve a um colar, feito de papelão e de plástico, que a mantém erguida, um pouco à maneira de um colar anatômico, produzindo um olhar voltado para o horizonte. Os diversos pesos pendurados ao seu corpo dão a seus movimentos a lentidão dos gestos de um astronauta. Os saquinhos pendurados em seus braços e suas pernas estão recheados com cartelas da Mega Sena.

MALOCA DE BENTO E MARY

Vemos que esse tipo de abrigo é basicamente uma cama coberta, um gênero de cama de dossel. As variações a partir do tipo descrito começam, então, com o tipo de colchão: de solteiro ou de casal. No primeiro caso, apenas duas colunas, uma na cabeceira, outra no pé, sustentam o teto. Nos abrigos feitos a partir de um colchão de casal, coloca-se uma coluna em cada canto. O fechamento das laterais também é variável; numa época em que os ratos se mostraram especialmente agressivos, Mary fechou, com painéis de compensado, todas as laterais do abrigo.

TRANSPORTE FUNDAMENTAL

O transporte de materiais tem uma importância fundamental para a vida nas ruas. O principal recurso dos moradores de rua, o lixo, apresenta uma relação valor/peso muito baixa, o que obriga a trabalhar com grandes quantidades. A maioria daqueles que vivem do lixo usa algum tipo de carroça. [Ela também é usada como abrigo]. Em fevereiro de 2004, uma carroça em bom estado era vendida por R$ 70,00; em meados de 2005, ou seja, cerca de um ano e meio depois, o preço já tinha passado para R$ 150,00, o que indica uma valorização muito acima da taxa de inflação.

BACALHAU AO FOGÃO DE LATA

A ilustração apresenta as duas formas mais comuns (a e b). O modelo de duas bocas (c) foi visto no viaduto do Glicério (28-06-2005), e parece ser uma invenção isolada. Não efetuei observações sistemáticas sobre a alimentação e o preparo das refeições. O exemplo mais notável que eu pude observar era de um grupo morando sob o viaduto Diário Popular, perto do Mercado Municipal. Este era fonte de grande variedade de alimentos, aproveitada com talento pelo cozinheiro do bando, que preparava uns 4-5 pratos diferentes todos os dias; experimentei, em uma de minhas visitas, um bacalhau com mandioca de sua confecção, que era delicioso.