Guerreiras
intelectuais
Biografia
da anarquista Luce Fabbri, escrita por
Margareth Rago, é o roteiro de uma bela amizade
CARLOS
LEME PEREIRA
tentadora
a idéia de resumir tudo como o encontro de
duas mulheres libertárias. Porém,
a biografia da anarquista italiana Luce Fabbri, escrita
por Margareth Rago, historiadora do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, propõe
tantas sutilezas selvagens, que é preferível
começar de outro modo. Entre a história
e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo
(Editora Unesp) é a simbiose entre duas guerreiras
intelectuais, gerada a partir tanto de suas afinidades
ideológicas, quanto do embate honesto de visões
de mundo que, invariavelmente, materializam diferenças
entre uma personagem que pontuou com sua militância
quase a totalidade do atormentado século 20 e uma
autora que se municia, a cada obra, de novos saberes,
imprescindíveis ao esforço de tecer o humanismo
que dê esperanças ao ainda enigmático
terceiro milênio.
Como
um brinde extra, o livro é o roteiro de uma bela
amizade. Cimentada ao longo de meia década de entrevistas
densas, mas intercaladas por bate-papos informais, muitas
vezes nos bares do centro boêmio de Montevidéu,
ao som do tango que se toca no Uruguai, país que
acolheu Luce Fabbri e outros socialistas libertários,
em fuga do fascismo que rugia na Europa. E o qual, com
o tempo, ela adotou, na condição de imigrante.
Ou inxilada, neologismo que inventou.
E,
obviamente, em se tratando de Margareth Rago, é
mais um trabalho perpassado pela questão do gênero.
Foi justamente a opção por esse campo de
atuação que lhe propiciou o contato com
Luce, já octogenária, aqui mesmo no Brasil,
país que visitou pouquíssimas vezes. A
minha questão com a Luce foi a seguinte: em 1992,
eu estava esboçando um trabalho com mulheres anarquistas
e queria achar alguém que tivesse uma história
impactante, lembra Margareth. Foi justamente
quando, em agosto daquele ano, o professor de Política
Edson Passetti, um colega da PUC-São Paulo, me
convidou para participar do congresso Outros 500. Pensamento
libertário internacional, no Tuca. Quando descobri
que aquela senhora delicada e erudita, no meio do público,
era uma lenda viva do anarquismo internacional, meu primeiro
impulso foi ir até ela e pedir desculpas, pois
afinal quem deveria estar à mesa era ela e não
eu.
Em
seguida, me dei conta de que eu estava sendo presenteada
pelos céus e me ofereci para escrever a biografia
dela. Uns dois anos depois, obtive financiamento da Faep
da Unicamp, Fapesp e CNPq, o que me possibilitou as viagens
ao Uruguai, para a pesquisa e, principalmente, conhecer
a maravilhosa história de vida da Luce, continua.
Além
da casa/biblioteca da veterana libertária, a autora
teve como QG, em sua estadia em Montevidéu,
a Comunidad del Sur, experiência autogestionária
iniciada em 1955 e que até hoje é apontada
como uma demonstração cabal de que o anarquismo
pode dar certo. Reunindo libertários
de várias nacionalidades, formações
cultural e profissional e de faixas etárias, uma
das atividades produtivas da comunidade são uma
gráfica e editora que divulgam obras ligadas ao
pensamento anarquista e que, inclusive, publicarão
a versão em espanhol de Entre a história
e a liberdade.
Luce morreu no ano passado, sem ver o livro de Margareth
totalmente concluído (saiu em abril de 2001, sendo
que em Campinas, o lançamento foi há 15
dias, na Editora Saraiva). Ela se foi logo após
completar 92 anos. Fazia aniversário em 25 de agosto
e desde que a conheci, compareci a todos. No último,
lúcida como sempre, ela pegou minhas mãos,
num gesto de despedida, e disse que já podia partir,
pois achava que tinha feito tudo o tinha para fazer,
conta a historiadora, comovida.
No
colo de Malatesta Entre esse tudo que
foi feito, o livro traz a trajetória de uma
mulher de sólida formação acadêmica.
Nascida em Roma, em 1908, estudou na Universidade de Bolonha
e, no Uruguai, lecionou Literatura Italiana na Universidade
da República, até ser cassada durante a
ditadura militar. Publicou obras de filosofia política,
educação, crítica literária,
história e poesia. Mas ela levava toda essa
erudição para o meio operário, sua
casa era o espaço da militância, da luta
libertária, ressalta Margareth.
Também
é retratada a personagem que atravessou duas guerras
mundiais intercaladas pelo fascismo e que, já na
velhice, chegou a amargar os efeitos das ditaduras militares
do Cone Sul. As perseguições políticas,
no entanto, nunca intimidaram Luce. Afinal, seu pai, Luigi
Fabbri, foi amigo e colaborador do famoso anarquista italiano
Enrico Malatesta, com quem ela chegou a conviver quando
menina.
Eu achava que meu objetivo era não só
dar a conhecer essa pessoa, mas fazer um história
do anarquismo de dentro. Eu já tinha escrito Do
cabaré ao lar, um livro que deu muito certo, mas
lidava com o tema circunscrito ao início do século
no Brasil. Eu queria pensar de uma maneira mais ampla,
explica a pesquisadora. Pensar como as mulheres
defenderam a liberdade, como a enunciaram, pois sabia
que isso foi muito além da questão do sufrágio.
As anarquistas questionaram o casamento, as formas de
amor, o prazer, a sexualidade.
Pequenas
múmias Margareth confessa que, quando
o assunto focado nas entrevistas era o feminismo, Luce
resistia um bocado: É que, apesar do conservadorismo
da época, ela teve a sorte de ter sido criada num
ambiente libertário. Gabava-se de nunca ter sido
enfaixada como as pequenas múmias egípcias,
numa referência a um costume europeu de antigamente,
baseado na crendice de que os bebês eram tão
frágeis que, sem as faixas de contenção
do corpo, poderiam quebrar-se como bonecas.
Mesmo a sua adesão ao anarquismo não foi
imposta no âmbito familiar, apesar de todo o ativismo
do pai. Ele dizia a mim e a meus irmãos que
fizéssemos nossas escolhas por nós mesmos,
de forma consciente e responsável, depôs
Luce a Margareth.
A
historiadora prossegue: Além disso, Luce
era de uma geração de mulheres esquerdistas
para quem o feminismo era bandeira da burguesia. Foi a
minha geração que estabeleceu a ponte possível
entre as duas frentes de luta, nos anos 70. Luce
discordava um pouco da visão que Margareth tinha
dela. Dizia que eu dava muita importância
ao fato de ela ser mulher, que o que importava era a humanidade
como um todo. Não se dizia feminista, mas lutou
pelo divórcio, pregou o amor livre. Imagine então
se fosse feminista!, diverte-se a biógrafa.
Eu
insistia, argumentando que as mulheres sofreram condicionamentos
culturais que as colocam num mundo no qual elas estão
sempre chegando onde os homens já estão
bem à vontade. Por isso, temos que ter mais garra
e isso acaba por nos prover de um memória e percepção
do mundo diferentes, diz Margareth. Mas, sob aquela
casca de turrona, Luce, nos últimos tempos, dava
mostras de que as mulheres realmente podem dar uma contribuição
diferenciada da dos homens para a construção
de um mundo mais igualitário, frisa a autora.
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