ÁLVARO
KASSAB
romancista
Milton Hatoum é filho de uma pátria sem
fronteiras. Caso coubesse demarcação, os
limites ultrapassariam o imponderável, ficariam
circunscritos à linha imaginária da fantasia:
seu território faria divisa com aldeias remotas,
montanhas nevadas, portos, rios, florestas, igarapés...Seja
na Manaus da infância e da adolescência, desfigurada
pela ação predatória da Zona Franca,
seja no Líbano de seus ancestrais, país
castigado por sucessivos conflitos. Não por acaso,
uma confluência que desemboca em pontos diferentes
na causa, mas comuns na motivação militarista.
No caso dos manauaras, por obra da ditadura; na terra
dos avós, um palimpsesto de culturas,
segundo ele, por conta dos impérios e dos conflitos
religiosos.
Hatoum,
49 anos, foi benevolente com sua memória, esquadrinhada
nos pormenores de um nomadismo atávico nascido
e criado em Manaus, morou em Brasília, cursou arquitetura
(FAU/USP) em São Paulo, fez mestrado em literatura
em Paris, depois de passar por Madri e Barcelona. Voltou
à cidade natal, onde é professor de literatura
francesa na Universidade Federal do Amazonas. O substrato
desta trajetória resultou em dois livros aclamados
pela crítica e traduzidos em países da Europa
e nos Estados Unidos: Relato de um certo Oriente (1989,
Prêmio Jabuti) e Dois irmãos (2000), ambos
publicados pela Companhia das Letras. O escritor esteve
na Unicamp no último 27 de abril, participando
do projeto Leituras Literárias, promovido pelo
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).
Nas
obras, Hatoum joga todos os dados no tabuleiro da profusão
de imagens e sensações caudalosas que marcaram
sua vida. Transforma-se no mercador da bela prosa poética,
no mascate cuja embarcação permanece atracada
no cruzamento de culturas tão díspares quanto
coexistentes. De sua mala saem vozes da tradição
oral milenar oriental, cânticos de tribos perdidas
no paraíso perdido, sons emitidos por curumins
na selva, falas de judeus marroquinos estabelecidos na
província. De suas histórias brotam os conflitos
da família árabe, as lendas amazônicas,
irrompem os cablocos. O escritor funde carneiro e arara,
tanga e túnica, cedro e jacareúba, narguilé
e tabaco de corda, tucum e jasmim, cunhantãs e
matriarcas, mediterrânico e amazônico. Hatoum
espalha um punhado de zatar no Rio Negro.
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A
pátria sem fronteiras
VIDA
E FICÇÃO
Estou cercado de amigos, e os amigos sempre ajudam no
caso da literatura. Eu tentei muito, durante mais de 10
anos, sobretudo na década de 70, quando morei em
São Paulo e na Espanha. Tentei escrever um romance
político, mas não deu certo. Não
era um romance, não era ficção. Estava
mais para crônica, era uma coisa que está
muito em moda, que hoje chamaria de jornalismo adaptado.
Precisei de muito tempo para publicar algo. Depois eu
fui pensando na questão da imigração,
na minha vida: saí de Manaus com 15 anos de idade,
sozinho, para Brasília. Não podia voltar,
você sabe que não volta. Brasília
foi um horror, fiquei dois anos naquela cidade detestável,
nunca mais voltei. Depois fui para São Paulo, Rio,
Barcelona, Paris, Madri.
Aí me perguntei: que diabo de vida é essa?,
preciso parar em algum lugar, não posso ser esse
nômade. Aí me dei conta que meu pai e meu
avô também fizeram isso. Meu avô foi
para Marselha, Itália, Recife...Pensei de novo:
estou repetindo isso. Quando morreu meu avô contador
de histórias, decidi que iria contar uma história
para que essas vozes contassem o que vivi. Aí percebi
que tinha uma diferença, não era a crônica
política dos anos 70. Aquela era forte ideologicamente,
mas na minha vida o que contava mais eram a infância
e adolescência. Fui armando a trama do meu primeiro
livro, Relato de um certo Oriente, publicado em 1989.
Antes do meu segundo livro, também dei muita cabeçada.
De 1992 a 1997 eu escrevia todos os dias, das 10 da noite
às 3 da madrugada. Passei 5 anos escrevendo e descobri
que não era romance depois que acabei. Escrevi
aquilo, 600 páginas, com tanta exigência,
mostrei aos amigos, e não comoveu ninguém...
Estava com um monte de problemas.
A minha vida foi degringolando, meu pai morreu, me separei,
o romance não deu certo....Pensei: eu tenho que
ir embora da cidade, sair daqui. Foi quando comecei a
escrever Dois irmãos, quando nada deu certo, quando
eu precisei exorcizar essa pinimba. Aí comecei
a escrever, inspirado num romance do Machado de Assis,
Esaú e Jacó, que eu tinha lido há
muito tempo. A história é fantástica;
tem até uma frase do Esaú e Jacó
que usei textualmente, só mudei uma vírgula.
Aí eu pensei: preciso escrever um pequeno salmo
do Relato de um certo Oriente, que é um drama familiar
circunscrito à casa em Manaus, preciso pensar um
pouco no Brasil, a minha experiência em São
Paulo, esse arquiteto frustrado o arquiteto da
memória começou a falar. Aí pensei
na trama dos gêmeos como um conflito entre o Sul
e o Sudeste representantes de uma parte da elite
e o Norte, Manaus. E aí foi a mesma trabalheira,
fiz várias versões, sete ao todo, mudei
muito. Quis dar um pouco de densidade às personagens
secundárias, coloquei algumas que apareciam no
Relato. Pensei também muito no Euclides da Cunha:
ele percebeu o que estava acontecendo com a Amazônia.
É isso: a experiência conta muito e o leitor
percebe. Claro que a linguagem não reflete essa
segmentação da experiência, acho difícil.
O
MUNDO EM TRÂNSITO
Essa voz dos imigrantes, o imaginário dos imigrantes,
durante a minha infância, foi uma experiência
importante. Porque eles, ao mesmo tempo em que fantasiavam,
também contextualizavam muito. Então, por
exemplo, quando meu avô libanês contava história,
ele falava do comércio, da vida ribeirinha, dos
rios, da floresta, dos povoados, dos índios, dos
caboclos, enfim, de como que isso se relacionava com Manaus.
Quer dizer, falava dessa vida entre Manaus e o interior,
da história dele. Falava desse mundo em trânsito,
entre a cidade e a floresta, com suas peculiaridades culturais
e econômicas.
O
REGATÃO
O pai da minha mãe era regatão (vendedor
que percorre os rios de barco). Ele começou como
mascateiro em Manaus, depois ele foi regatão por
um tempo, depois voltou para Manaus e ficou lá.
Já meu avô paterno é curioso, é
outra história. Por que ele foi de Beirute para
o Acre, morou em Rio Branco, onde ficou alguns anos e,
depois, voltou para Beirute. Meu pai nasceu em Beirute,
quando meu avô voltou. E meu pai cresceu ouvindo
histórias do pai dele sobre o Amazonas, sobre o
Acre. Então ele já não veio mais
como imigrante em busca da fortuna. Ele veio também
um pouco pela curiosidade de conhecer essa região.
Meu pai era um homem que tinha uma certa instrução,
ele trabalhava num ministério lá em Beirute,
era um homem que tinha um pouco de posse. Então
não era um imigrante clássico, muito pobre,
como era meu avô materno, que era um homem das montanhas,
do sul do Líbano, muito rude, que veio do mundo
muito primitivo, da aldeia.
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