O
PEIXE DE GALIB
O
homem que deixara a clientela do restaurante manauara
com água na boca já era um exímio
cozinheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia
nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e
Jabal Laqlouq, montanhas onde a neve brilhava sob a intensidade
do azul. A beleza misteriosa, bíblica, dos cedros
milenares nas ondulações brancas, às
vezes douradas pelo sol invernal ela fazia uma
pausa, e os olhos, úmidos, roçavam o rosto
de Halim. E quando visitava uma casa à beira-mar,
Galib levava seu peixe preferido, o sultan ibrahim, que
temperava com uma mistura de ervas cujo segredo nunca
revelou. No restaurante manauara ele preparava temperos
fortes com a pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as
com tucupi e jambu e regava o peixe com esse molho. Havia
outros condimentos, hortelã e zatar, talvez.
Trecho
de Dois irmãos
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FAMÍLIA
CLÂNICA
Há um lado fundamental na minha obra que é
a experiência, ponto de partida para o que vem depois,
a linguagem. Sem essa experiência, dos dramas familiares,
no meu caso, não haveria romance. Acho que foi
também no caso de Raduam Nassar (Lavora Arcaica,
Um copo de cólera). Por que uma família
do mundo mediterrâneo, não só do mundo
árabe, mas também do sul da Itália,
do norte da África, é uma família
clânica, é um clã. E isso gera certos
conflitos, e certos sentimentos fortes. E quando não
geram, a gente finge que gera. Certamente não se
trata de uma invenção da história
da minha família, apenas. A gente pega histórias
de toda a parte, do que a gente ouve, do que a gente observa.
E Lavoura Arcaica também tem esse mundo do incesto,
de dramas fortes. E o romance, como gênero, trata
da família de alguma forma. Trata de dramas humanos
que partem de um drama particular para tentar alcançar
o geral, o universal.
AS
MULHERES
No meu primeiro romance, Relato de um certo Oriente, imaginei
uma narradora. Por que são sempre os homens que
partem na literatura? Por que não uma mulher, que
parte e volta para contar a sua história, o seu
passado? Por outro lado, a dependência da mãe,
como aparece no livro, é fruto de uma fraqueza
do filho. Nenhuma mãe devoradora, por mais edipiana
que seja, se realiza se o filho não for cúmplice
dessa posse doentia.
Algumas
mulheres estão na minha infância, outras
na minha adolescência, outras ainda no meu casamento...
Algumas foram imaginadas e inventadas, outras estão
na literatura. Por exemplo: devo muito a construção
das personagens a Flaubert. O escritor tem concepção
da personagem alguns começam a escrever
a partir do nada, mas como eu tenho o pé no século
19, sou flaubertiano até debaixo dágua,
até debaixo do Rio Negro. Flaubert foi uma coisa
interessante. Quando eu tinha 13, 14 anos, minha mãe,
também filha de imigrantes libaneses, queria que
eu aprendesse inglês, francês, alemão,
latim, tudo...Passei a ter aulas de francês com
uma senhora de 80 anos, esposa do vice-cônsul da
França em Manaus. Quando entrava na casa dela,
parecia que eu mudava de tempo. Era uma atmosfera da França
colonial- aquela coisa, o mapa de Paris, do Norte da África.
Ela
era filha de um militar que tinha servido no Líbano.
A partir de um certo momento, ela começou a traduzir
um continho do Flaubert maravilhoso Um Coração
Simples (Felicidade). Nunca mais fui o mesmo. Pensei comigo,
quando comecei a escrever Relato de um certo Oriente:
essa empregada da minha obra pode ser a Felicidade, a
empregada construída pelo escritor francês,
claro que mesclada com as minhas experiências da
infância. Então, essa personagem tem muito
a ver com a minha experiência de vida e da literatura.
E é claro que essas matriarcas, essas mulheres
fortes, têm a ver, talvez, com a figura da mãe
na família árabe e com algumas mães
judias. Depois, numa viagem ao Líbano, constatei
que as mulheres são muito fortes.
ENTRE
DOIS MUNDOS
Minha aproximação com a literatura francesa
tem uma ligação, e por um elo histórico
também. Costumo contextualizar tudo. Por exemplo,
a família da avó materna é cristã
maronita, ela estudou em colégios de freiras em
Beirute. Então a formação da cultura
francesa estava muito presente nela. Por outro lado, os
homens da minha família meu pai e meu avô
eram muçulmanos.
Aconteceu
um caso raro, inclusive passional, de uma união
entre cristãos e muçulmanos, que eu exploro
um pouco nos dois romances. Na medida que isso poderia
ser conflituoso, mas não foi. Não foi porque
eles viveram juntos, se gostavam, eu presenciei tudo isso.
Por outro lado, há também uma questão
política, por que os maronitas libaneses se acham
afrancesados, se acham quase ocidentais, ao passo que
o Líbano é um país árabe,
de língua e cultura árabes, entre muitas
outras. Então, vamos dizer, isso criou conflitos
no próprio Líbano. Como atestaram vária
guerras, inclusive a guerra civil (1975-90), agravada
pela invasão israelense. É preciso contextualizar
tudo. E eu vivi entre esses dois mundos. Meu pai, por
exemplo, que era muçulmano, viveu no Líbano
colonial, sob mandato francês. Conheceu pessoas
do mandato francês, ele falava de militares, de
políticos. Meu pai tinha uma consciência
política, era muito mais arabizado do que minha
avó, por exemplo.
A MISTURA
A questão palestina vem desde a fundação
do estado de Israel, e isso teve repercussão em
todo o mundo árabe, em todo o Oriente Médio.
Quer dizer: estão aí as conseqüências
de tudo isso. Mas vamos dizer que meu pai e meu avô
não se envergonhavam de assumir a condição
de árabes do Líbano. O Líbano é
uma país árabe, mas é preciso salientar
que passou por camadas e camadas de cultura do oriente
e do ocidente, que, vamos dizer, moldaram esse país
tão pequeno e tão complexo na sua constituição,
na formação cultural e religiosa. No Líbano
há milhares de descendentes de armênios,
sírios, egípcios, famílias européias.
Desde as Cruzadas é um mundo muito misturado. O
Oriente Médio precisa entender o seguinte: lá
eles são misturados, eles não podem viver
separados.
POLÍTICA
Não militei em partido nenhum. Militei no movimento
estudantil, mas nunca entrei em partido e nem em facção,
nem pretendo. Isso é uma intuição
minha: acho que um intelectual, um escritor tem que ser
independente. Acho que ele não deve militar num
partido nem defender uma religião, nem defender
o estado, nem uma corporação, nem uma empresa,
nem o governo. O que faz do intelectual um ser íntegro
é a sua independência de pensamento. E o
compromisso com a verdade e a justiça, que são
valores universais.
ALTER EGO
O Laval (personagem de Dois irmãos, poeta e professor)
é a síntese de muitas pessoas que conheci.
Porque geralmente uma personagem não é baseada
numa pessoa só. Há uma dose de invenção
aí e, vamos dizer, de artifícios. Há
uma vivência também pessoal, mesclada no
meio disso, de pessoas que conheci em Manaus e em outros
lugares, que confluíram para esse poeta aí,
o professor de francês. Porque toda a personagem
é uma construção complexa que vem
de vários lados. O Laval tem a frustração
do poeta que não fui. Eu queria ser poeta, e eu
não tenho menor vocação para a poesia,
porque é outro ritmo. Tentei, ainda tento, rabisco
alguns poemas inéditos, mas não sei se aquilo
é poesia. A prosa tem outro andamento, tem uma
outra estruturação, outro ritmo, outra linguagem.
Eu procuro ser um poeta lateral e mitigado na minha prosa.
RESSONÂNCIAS
Em Dois irmãos, uma das perspectivas do romance
é estabelecer um diálogo entre a decadência
da família, dos dramas familiares, e a decadência
da cidade. E isso tendo como reflexo também o que
acontece no sul, no sudeste. Então no início
a cidade é a cidade que eu conhecia, a cidade mais
ou menos civilizada, pacata, belíssima, até
os anos 60, e depois, com o advento da Zona Franca, Manaus
tornou-se uma cidade industrializada, com uma periferia
urbana miserável, com uma violência urbana
parecida com a de qualquer metrópole brasileira,
onde as tensões sociais são enormes e eu
quis explorar um pouco isso. Quer dizer, fazer a decadência
da cidade ser uma ressonância da decadência
da família, dessa casa familiar que desmorona e
que se transforma em ruínas, que é ilustrada
pelo poema do Drummond que está na epígrafe.
A
CIVILIZAÇÃO
A tradição indígena é muito
forte em Manaus, não adianta. E isso criou um choque
muito grande. A Zona Franca foi uma violência para
a cidade. Para os valores culturais, para os hábitos,
para os costumes, para o espaço urbano. Também
para a relação da cidade com a floresta,
porque antes a natureza pertencia à cidade. Depois,
aboliram a floresta da cidade, destruíram muitas
coisas. Além do que, a televisão- da forma
mais estúpida e vulgar, como é a televisão
brasileira de um modo geral-, também contribuiu
para a mudança desses hábitos. Manaus começa
a imitar o sul, quando na verdade nós temos ali
valores e uma tradição da cultura popular
indígena que são muito fortes. E a pior
coisa dessa colonização interna, que foi
imposta pelo governo militar com a Zona Franca, é
o fato de os amazonenses se sentirem diminuídos
pela pujança do sudeste. Mas se a gente olhar com
mais cuidado, muitas vezes a barbárie não
está no norte, mas está aqui, no sudeste.
O grau de civilização de uma cidade como
São Paulo é totalmente questionável
para mim. Para mim a cidade civilizada hoje é Belém
do Pará, que soube preservar a sua cultura, sua
arquitetura e sua alma.
LITERATURA
ÁRABE
Para ser sincero, a literatura árabe entrou de
certo modo na minha vida por causa dos orientalistas,
escritores franceses, europeus de um modo geral, que eram
fascinados pelo oriente. Alguns tão fascinados
que incorporaram o oriente ao seu projeto estético,
como o Flaubert. Outros foram influenciados mesmo pela
França colonial, pelo Império. Mas há
uma diferença ideológica importante: Lamartine
é muito diferente de Flaubert. Então, essa
literatura orientalista assinada pelos europeus há
muito tempo foi importantes. Dos textos orientais, o que
mais me influenciou foi As Mil e uma Noites. Bom, mas
foi um texto que influenciou Deus e o mundo, não?
Proust, Borges... Mas da literatura mesmo de língua
árabe foi muito pouco a influência. Conheço
muito mais a literatura ocidental, embora reconheça
que existam grandes escritores na literatura árabe.
Já os narradores da minha infância, estes
sim árabes e judeus marroquinos ,
me influenciaram muito com suas histórias. Não
tinha criança que não ouvisse. Manaus não
tinha televisão até 1969. Minha infância
não teve televisão, o que já me desintoxicou
para o resto da vida.
A DISSIPAÇÃO DO REAL
Escolheria Paris para escrever. Relatos de um certo Oriente
foi escrito num lugar horrível lá em Manaus.
Havia acabado de chegar de Paris e tive que alugar às
pressas um lugar quase sórdido, numa baixada, foi
horroroso. Foi escrito à mão, na base da
perserverança, naquele calor, sem ar condicionado,
o suor pingando no papel. O segundo livro também
foi escrito num quartinho de empregada do tamanho de uma
mesa que transformei num escritório. O melhor lugar
para escrever é aquele que esteja distante do seu
objeto, do seu mundo não interessa que seja
um palácio ou uma palafita. O real tem que se dissipar,
para entrar por outra porta como mentira verossími.
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