Nos dias 6 e 7 junho, representantes quilombolas estiveram na Unicamp buscando adesões para fortalecer o Comitê da Campanha contra as Barragens do Rio Ribeira de Iguape. Para tanto, mediaram um seminário e grupos de trabalho junto à comunidade universitária, com o objetivo de qualificar o debate acerca do tema e ampliar uma articulação institucional que já existe entre a Universidade e as Associações dos Quilombos. A Unicamp mantém atividades de extensão por meio do Programa Comunidades Quilombolas, o que já motivou uma viagem do Jornal da Unicamp ao Vale do Ribeira para registrar projetos de gestão agroindustrial, cursos de capacitação e atividades de resgate cultural monitorados por professores e alunos (edição 233).
“A proposta desse encontro é trazer para dentro da universidade os problemas vividos pelas comunidades quilombolas, como titulação de terras, educação e as barragens. Muitos alunos não têm contato com esses problemas, mas eles serão os técnicos de amanhã e precisam saber como a população local é afetada depois que tem sua terra inundada”, anunciou André Luís de Morais, da Associação Quilombo de André Lopes, que mediou o seminário. Segundo ele, os quilombolas querem atrair parceiros na luta pela preservação do que existe no Vale do Ribeira e contra o modelo energético brasileiro. “Existem outras formas de gerar riqueza e energia”.
Integrando a mesa, o antropólogo Guilherme dos Santos Barbosa convidou o público a visitar o Ribeira para tomar consciência da importância da luta dos quilombos. “Como dizia Luiz Gonzaga em uma de suas músicas, ‘tem que coisa que para o cristão ver, tem que andar a pé’. Nosso conhecimento se baseia em apertar teclas e o acelerador do carro. A participação virtual não resolve, é necessária a presença física”, pondera. Barbosa percorre o Brasil desde os anos 1960 estudando os quilombos e outros aspectos da cultura negra, como o candomblé e a capoeira. “O quilombo é uma página épica da história do Brasil”, declara.
Ignorado por instituições como a USP quando anunciou a existência de quilombos, o professor Guilherme Barbosa acabou convidado a divulgar seu trabalho internacionalmente pela Universidade de Viena e hoje atua na Subcomissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra. Influenciou diretamente o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Constituinte em 1987, para a inclusão do artigo 68 na Constituição, assegurando aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade das terras que ocupam.
Por encomenda da Igreja Católica, Barbosa também produziu o primeiro dossiê sobre demarcação de terras de negros no Brasil, entre 1989 e 1991, justamente no Vale do Ribeira. Ele informa que a questão dos quilombos foi introduzida na ONU em 1993, repercutindo desde então em mais de 150 países. “Se a construção das barragens vem sendo sustada há 20 anos, isso não seria possível sem pressão das Nações Unidas. É preciso haver uma conjugação de forças nacionais e internacionais. Por isso convoco todos vocês a visitarem o Vale do Ribeira para conhecer os projetos do ISA [Instituto Socioambiental], nos quais acreditei e que abracei”.
A beleza O administrador de empresas Nilto Ignácio Tatto, que coordena pelo ISA projetos de geração de renda, educação e cultura no Vale do Ribeira, lembra que a região guarda a maior área contínua da Mata Atlântica 21% do que restou dela e por isso foi declarada como patrimônio natural da humanidade pela Unesco em 1999. “São 2 milhões hectares de floresta, 150 mil de restinga, 17 mil de manguezai e mais de 270 cavernas cadastradas. Ali vivem 68 espécies ameaçadas de extinção, como o monocarvoeiro, a onça-pintada, o veado campeiro e o papagaio-de-cara-roxa, e 40 espécies endêmicas (só encontradas na região), como o beija-flor rajado e o mico-leão-da-cara-preta. A região tem um complexo de 24 unidades de conservação somando mais de 1,4 milhão de hectares”, informa.
Na opinião de Nilto Tatto, toda essa riqueza ambiental subsiste graças às comunidades tradicionais do Vale do Ribeira, onde estão 12 aldeias guaranis, mais de 80 comunidades caiçaras, centenas de comunidades de agricultura familiar e mais de 60 comunidades remanescentes de quilombos. O Alto Ribeira tem forte presença de pequenos agricultores, o Médio Ribeira concentra a maior parte das comunidades quilombolas e o Baixo Ribeira abriga as comunidades de pescadores e as aldeias indígenas, com importante cultivo de banana e chá.
Nilto Tatto adverte, porém, para o contraponto à riqueza de diversidade na região, que possui um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os menores do Brasil. “Quem defende a barragem de Tijuco Alto trabalha com o discurso de que a hidrelétrica vai trazer desenvolvimento e gerar empregos. Mas sabemos que este modelo tradicional de construção de barragens só concentrou riqueza, gerou pobreza e expulsou a população de pequenos agricultores e das comunidades tradicionais para os centros urbanos”, denuncia. O coordenador do ISA defende o investimento maior em atividades sustentáveis do ponto de vista social e ambiental, como o turismo, o manejo agroflorestal e a maricultura.
Os impactos O fato de que a barragem de Tijuco Alto seria construída na divisa de São Paulo com o Paraná suscitou o impasse que se arrasta há quase 20 anos. A CBA, que iniciou o processo de licenciamento ambiental concomitantemente aos dois Estados em 1989, viu anuladas as duas licenças em 1994, mediante ação civil pública argüindo que o Ribeira de Iguape era um rio federal e atribuindo ao Ibama a competência exclusiva para a autorização. A empresa retomou em 1997 as negociações para o processo de licenciamento junto ao Ibama, mas teve o estudo de impacto ambiental (EIA/Rima) indeferido em 2003. Contratada outra empresa para elaborar novo estudo, ele foi entregue em outubro do ano passado, reavivando a ameaça.
De acordo com Nilto Tatto, entre os impactos apontados pelo estudo estão a inundação de duas grutas e o assoreamento às margens do lago que será criado. Ocorre que nos 11 mil hectares a serem cobertos pela água estão 46% de terras aptas para agricultura e 35% para pastagem. Tatto observa, também, que o estudo se restringe a Tijuco Alto, sem considerar qual será o impacto nas comunidades que dependem da pesca e do extrativismo marinho no estuário onde se localizam Iguape e Cananéia. “Outro aspecto é a mudança do próprio pH da água na região alagada, que tinha várias minas de extração de chumbo. Há muitos resíduos, que com o tempo podem descer o rio”, afirma.
O impacto socioeconômico também será grande, na avaliação de Nilto Tatto. O passível social previsto no EIA/Rima é de 689 famílias afetadas, mas o coordenador argumenta que muitas já venderam suas propriedades nesses anos todos em que se cogitou sobre a barragem. “Outro aspecto não considerado é dos investimentos em políticas públicas. Por que um prefeito vai construir uma escola, um posto de saúde ou asfaltar uma rua se aquela comunidade vai ser alagada?”.
As usinas e consumo da CBA
O professor Oswaldo Sevá, do Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp, vem testemunhando o sofrimento da população expulsa pela construção de barragens há muitos anos. Acha que o movimento das comunidades do Vale do Ribeira está sendo vitorioso por resistir à hidrelétrica de Tijuco Alto por quase duas décadas. “Em outros lugares do país, as barragens são construídas quatro ou cinco anos depois do anúncio. As pessoas ameaçadas por barragens são pelo menos dezenas de milhares, talvez centenas de milhares. Sem falar nas pessoas já atingidas, que chegam à casa do milhão”, afirma.
Ressalvando que conhece o Vale do Ribeira apenas como viajante e não como pesquisador, Oswaldo Sevá muniu-se de dados do Sipot (Sistema de Informações do Potencial Hidrográfico Brasileiro) para tentar oferecer uma visão de conjunto do que está acontecendo naquela bacia. Num levantamento preliminar e por isso contendo incongruências a serem corrigidas, o professor informa que a Companhia Brasileira de Alumínio já construiu 8 ou 9 barreiras na bacia hidrográfica, sete delas no rio Juquiá, afluente do Ribeira de Iguape.
“Somadas, essas usinas geram cerca de 270.000 quilowatts, energia que segue por linhas de transmissão até a fundição da CBA na cidade que se chama justamente Alumínio, na região de Sorocaba. Num cálculo rasteiro, as usinas do Vale do Ribeira são suficientes para abastecer uma fundição de 90 mil toneladas anuais de alumínio. Como a sua fundição produz 230 mil toneladas, a CBA precisa captar a maior parte da energia que consome de outras fontes”, observa. Não seria por acaso, portanto, que a empresa tem inventariadas um total de 25 usinas na bacia do Ribeira.