| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 327 - 12 a 25 de junho de 2006
Leia nesta edição
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Artigo: Walter Belik
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Química das sensações
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Ribeira de Iguape
 

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ARTIGO

As várias dimensões da fome

WALTER BELIK

Walter Belik (Fotos: Antoninho Perri)A recente divulgação dos dados da PNAD 2004 trouxe novamente a discussão sobre alguns conceitos de políticas sociais que encontramos freqüentemente nas publicações e que normalmente são tratados com pouco cuidado. Na realidade, alguns desses conceitos são pouco conhecidos, o que leva o público em geral a confundi-los ou, às vezes, tratá-los como sinônimos. Esse é o caso dos conceitos de pobreza, fome, desnutrição e segurança alimentar. Observa-se por exemplo, que muito embora haja uma grande incidência de desnutridos entre os mais pobres, nem sempre as famílias de baixa renda abrigam pessoas desnutridas, a despeito de que essas famílias possam estar vivendo em situação de insegurança alimentar.

As informações contidas na PNAD 2004 mostraram um quadro exato da situação de renda, posse de bens e ocupação das famílias e dos indivíduos em todo o Brasil. Observa-se por esse levantamento que o número de brasileiros considerados pobres está acima do marco dos 50 milhões de indivíduos, ainda que esse indicador sofra uma pequena variação em função das várias definições da linha da pobreza utilizadas pelos pesquisadores.

Os dados demonstram também que ocorreu uma consistente queda na desigualdade de rendas desde 2001. O principal fator que explica a redução na desigualdade de renda no período foi o Bolsa-Familia, respondendo por 22% dessa diminuição, segundo pesquisadores do IPEA. Como se observa, o instrumento “transferência de renda” quando aplicado de forma massiva, porém focalizada, é bastante eficiente para combater a pobreza. Mas, o que podemos afirmar quando a questão é combater a fome?

A fome se confunde com a pobreza. A fome é a manifestação mais crítica da pobreza e causa problemas graves de desnutrição, com impactos nos índices de mortalidade infantil, na longevidade e na aquisição de doenças crônicas por parte da população. Ao se combater a pobreza por meio de programas de transferência de rendas uma parte do caminho já estaria percorrido mas talvez o melhor atalho para reduzir o número de famintos poderia ser a busca de instrumentos de política que incidam diretamente sobre as questões de segurança alimentar.

A segurança alimentar é o conceito utilizado pela FAO e pressupõe três dimensões fundamentais: uma quantidade de alimentos suficiente para suprir o mínimo recomendado para cada país; a qualidade e a salubridade da alimentação; e, finalmente, a garantia de acesso digno a esses alimentos.

Na falta de maiores informações sobre o assunto no nosso país, o IBGE divulgou no ano passado algumas tabelas da POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares com base em dados de 2002-2003, com dados sobre a situação alimentar do brasileiro. As estimativas mostraram que a população brasileira com mais de 20 anos incluía quase 3,8 milhões de pessoas com déficit de peso e outras 38,8 milhões com excesso de peso, das quais, 10,5 milhões eram consideradas obesas. Essa informação foi obtida através de levantamento do IMC – Índice de Massa Corpórea dos adultos residentes nos domicílios pesquisados.

A mesma publicação apresentou alguns cruzamentos entre renda e consumo de alimentos proporcionando uma nova dimensão para a questão fome, aproximando o problema daquilo que denominamos de segurança alimentar. O levantamento constatava que brasileiros com renda familiar inferior a 1 salário mínimo por mês não consumiam sequer 1.900 Kcal diárias - portanto estavam abaixo do limite inferior recomendado pela FAO e OMS para levar uma vida saudável. Ou seja, esse total alçava ao número de 77 milhões de cidadãos, o que representava praticamente o dobro do total de obesos. Esse enorme contingente não disporia de uma quantidade adequada de alimentos em casa, sem contar a questão da qualidade da sua dieta, outra dimensão fundamental da segurança alimentar.

A mesma pesquisa mostrava também que 46,6% das famílias entrevistadas afirmaram ter dificuldade em obter alimentos suficientes, sendo que para 13,8% delas, a dificuldade era freqüente. Os dados da PNAD 2004 vieram a confirmar esses problemas com a alimentação. A partir de uma escala de segurança alimentar desenvolvida pela Universidade de Cornell, utilizada pela Unicamp em pesquisas isoladas, e aplicada em vários paises do mundo, o IBGE detectou a percepção do brasileiro em relação à sua capacidade de consumo de alimentos.

Os resultados da pesquisa mostraram que 72,1 milhões de brasileiros viviam em situação de insegurança alimentar, sendo que para 49,5 milhões esse risco era considerado moderado ou grave. Quando comparada à renda per capita mensal dos indivíduos observava-se que 59,2 milhões de pessoas (32,6% da população), que alcançaram o nível da escala que os colocava em situação de insegurança alimentar, tinham rendimentos inferiores a 1 salário mínimo. Entre essas pessoas, cuja renda per capita era inferior a 1 salário mínimo, 34,7 milhões (19,1% da população) atingiram uma pontuação que as colocava em situação de insegurança moderada ou grave.

Um programa de apoio específico à segurança alimentar, como por exemplo a merenda escolar servida às crianças e jovens da rede pública, pode mudar o quadro de insegurança – independentemente do nível de renda da família. Em 2004, segundo o IBGE, 97,3% das crianças que freqüentavam creches públicas recebiam a merenda ou outra refeição gratuitamente. As proporções para os níveis de pré-escola, ensino fundamental e ensino médio eram, respectivamente: 92,3%; 83,6% e 56,5%. Com isso, não é por acaso que os níveis de insegurança alimentar moderada e grave para aqueles jovens menores de 18 anos que freqüentavam escolas ou creches era de 25,8% contra 32,8% dos mesmos níveis de insegurança alimentar observados na mesma população que não freqüentava escolas ou creches. A diferença está na merenda escolar servida gratuitamente. A importância da merenda fica mais clara quando analisamos os dados dos domiciliados nas áreas urbanas. Nesse caso as proporções para a mesma população eram 23,4% contra 31,1% o que denota o efeito da maior eficiência e freqüência da refeição servida nas escolas urbanas sobre a percepção de segurança alimentar desses indivíduos.

Esses dados demonstram as várias dimensões envolvidas no desenho e planejamento das políticas sociais. Não existem formulas salvadoras e nem programas mágicos, que de um instante ao outro possam dar conta de todas as dimensões envolvidas nas questões ligadas à pobreza e ao desenvolvimento de uma nação. O mais importante é que haja coordenação de esforços e um aprendizado contínuo com a própria sociedade pois o objetivo último de toda política social é o resgate da cidadania e da dignidade.

Walter Belik é professor livre docente do Instituto de Economia da Unicamp e membro do Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

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