Tramas palacianas decidem sucessão de Zeferino
Ao vetar os
dois primeiros nomes da lista, governador escolhe quem não tinha
pretensão ao cargo:
o dentista Plínio
Alves de Moraes.
EUSTÁQUIO GOMES
NUMA LONGA ENTREVISTA que concedeu ao jornal O Estado de S. Paulo um mês antes de deixar o cargo, Zeferino deu a entender que ainda não pensara nos nomes que gostaria de ver na lista a ser encaminhada ao Palácio dos Bandeirantes, mas não se recusou a enumerar as qualidades que imaginava encontrar em seu sucessor:
Primeiro, vivência universitária, experiência da rotina da universidade, para que não venha a fazer dela uma entidade isolada mas sim um estabelecimento que participa de um contexto, de um sistema de educação; segundo, visão angular de 360 graus, em que nenhuma esfera tenha predominância ou ênfase sobre outras; terceiro, habilidade e capacidade para distinguir não somente o certo do errado mas também o certo do certo: entre duas proposições corretas, cabe ao reitor saber qual é a mais adequada.*
Judiciosamente, e sem comprometer-se com pré-candidaturas – na verdade, ninguém se anunciara ainda como tal, pois ferir a suscetibilidade do reitor era o pior caminho para vir a merecer sua unção –, Zeferino optou por deixar que as ondas se chocassem para depois analisar a espuma. Dos nomes que freqüentavam as listas murmuradas pelos gramados do campus, o mais cotado era o do vice-reitor Paulo Gomes Romeo, seu lugar-tenente havia quase três décadas, homem de absoluta confiança do chefe, a “corda” que sempre soubera se ajustar aos desígnios da “caçamba”. Depois vinha o do coordenador geral das Faculdades, Rogério Cézar de Cerqueira Leite, cujo prestígio era evidente entre os membros do Conselho Diretor e até mesmo em alguns círculos do Palácio, mas que – dizia-se – não gozava da estima daquele que daria a palavra final na questão, o governador Paulo Egydio Martins. Seu par simétrico na coordenadoria geral dos Institutos, o físico Sérgio Porto, também era dado como nome certo. Mais abaixo, flutuando numa zona de probabilidades não desprezíveis, estavam o diretor do Instituto de Biologia, Walter August Hadler, que portava a distinção de ter sido o primeiro docente contratado da Universidade; o dentista Plínio Alves de Moraes, ex-diretor da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, cujo principal trunfo (considerado insuficiente) era ter sido colega de infância de Zeferino; André Tosello, o diretor e organizador da Faculdade de Engenharia de Alimentos e criador do Instituto de Tecnologia de Alimentos, o ITAL, ligado à Secretaria da Agricultura do Estado, um dos epígonos da área agro-alimentar na América Latina. Embora com menor intensidade, outros nomes também eram lembrados: José Aristodemo Pinotti, diretor da Faculdade de Ciências Médicas, tinha peso nos cursos biomédicos mas não eleitores em número suficiente no Conselho, onde Zeferino controlava cada voto; o físico Nelson de Jesus Parada, que na época ocupava a direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, era o único – avaliava o Correio Popular – capaz de juntar as pontas das unidades de pesquisa de São José dos Campos e Campinas, dos laboratórios da USP e da Unicamp, já que havia trabalhado em todas essas praças. Afora estes, vez por outra alguém sussurrava um nome julgado em condições de correr por fora, como o economista Wilson Cano, o dentista José Merzel, o físico José Ellis Ripper, o lingüista Carlos Franchi e o engenheiro Maurício Prates, uma das lideranças emergentes a partir de 1977, depois de ser consagrado numa eleição interna – oficiosa, é verdade – para diretor de sua unidade, a Faculdade de Engenharia.
Para os que privavam da intimidade do reitor, como a secretária geral Arlinda Rocha Camargo, a predileção do Zeferino parecia pender ora para seu coordenador geral, Paulo Gomes Romeo, ora para um nome que não constava de lista alguma, o economista João Manuel Cardoso de Mello. A João, Zeferino perguntou um dia à queima-roupa se queria “ser reitor”. Isto não significava de modo algum que ele estava lhe oferecendo o cargo: Zeferino gostava de auscultar as ambições alheias para depois, paternalmente, recomendar prudência e ditar o ritmo histórico que devia caber a cada um. Por sorte João respondeu que “absolutamente não queria ser reitor”, mas tinha, isto sim, a obrigação de alertá-lo para as sérias restrições que o governador fazia ao nome de Romeo, considerado no Palácio “o pior dos laudistas” [partidários do ex-governador Laudo Natel, antecessor de Paulo Egydio Martins no governo paulista e seu adversário político]. Dizia saber disso por fontes seguras. Ambiguamente Zeferino respondeu que estava disposto a “quebrar resistências” fosse qual fosse a situação. E iniciou uma sondagem para ver até que ponto iria a tolerância do Palácio. Numa conversa com o secretário de Planejamento Jorge Wilheim, mandou um balão de ensaio ao governador:
— Diga a sua excelência que vão ficar na lista o Tosello, o Rogério e o Paulo Gomes Romeo. O reitor deve ser o Paulo.
Murillo Marques estava presente quando, dias depois, Wilheim voltou do gabinete de Paulo Egydio com um veto informal a Romeo e um obstat com o qual Zeferino não contava: os militares não haviam digerido a série de vinte artigos que Cerqueira Leite publicara na Folha de S. Paulo, anos antes, contra o acordo nuclear Brasil-Alemanha. Nesses textos, Cerqueira qualificava de megalômano o programa do governo (previa-se a instalação de oito reatores, embora somente dois tenham sido ativados nos 25 anos seguintes), seu distanciamento da realidade do país, que contava com opções hidrelétricas muito mais baratas, e o alijamento da comunidade científica da negociação do acordo.** A frase com que o governador descartou o nome de Cerqueira (“Não tenho condição política de escolhê-lo, mesmo que encabece a lista”), levou Murillo a alertar o chefe:
— Olha, se a lista for mesmo essa, tudo indica que vão escolher o Tosello.
Isso fez Zeferino titubear. Gostava de Tosello, mas a estima que mantinha por ele não era de primeiro grau. Merzel, dias depois de ouvir do reitor que “todos deveriam votar em Cerqueira Leite”, soube que a bola da vez poderia ser o amigo comum de ambos, o piracicabano Plínio Alves de Moraes. Plínio não tinha qualquer pretensão ao cargo e até sentiu-se incomodado quando as especulações voltaram-se para ele. Recusou-se a acreditar nelas até mesmo quando Zeferino, precavido, cuidou de apresentá-lo ao governador durante a inauguração de um prédio no campus. Era um homem de afabilidade simples que tinha o hábito de fazer comparações agrárias com situações administrativas e até acadêmicas. “Isto é como tirar berne de vaca”, disse uma vez ao considerar o problema do jubilamento de alunos. Um de seus assuntos prediletos era a criação de curiós que mantinha em sua fazenda e outro era a novela das oito, cujos episódios costumava acompanhar religiosamente. Por essas e outras, não deu maior importância quando ouviu de Antonino, seu motorista, numa tarde em que faziam o percurso São Paulo–Campinas, que ele seria o reitor:
— Quem disse uma barbaridade dessa, rapaz?
O comentário viera do chofer do ex-governador Abreu Sodré, amigo e conselheiro de Paulo Egydio, e freqüentador assíduo do palácio. Tudo indicava que Zeferino tinha mesmo um plano B para o caso de Rogério e Romeo serem desconsiderados no jogo, como de fato seriam. Plínio só se convenceu de que era peça importante no tabuleiro quando o deputado Nabi Abi Chedid, líder do governo na Assembléia Legislativa, convidou-o para uma reunião em São Paulo sob o argumento de que era preciso reforçar sua candidatura. A empresa de transporte de Nabi, a Ensatur, fazia o frete de funcionários da Unicamp da casa para o trabalho e vice-versa mediante um contrato que vinha se renovando ano após ano sem competidor à vista. Plínio, alegando não ser candidato a nada, chegou a recusar a oferta de ajuda que lhe estava sendo oferecida:
— Não posso aceitar, tenho uma filha doente. Além disso, não estou bem situado nesse processo.
Era um argumento que não se encaixava na trama. Mal sabia ele que, em paralelo, Nabi tentava persuadir a Casa Civil a defender o nome de Cerqueira, que entretanto sofria a oposição peremptória do governo federal através do general Moraes Rego, que nessa altura saltara do comando da guarnição de Campinas para a chefia do gabinete militar da Presidência. Pinotti, cujas chances naquela altura eram mínimas, convenceu-se da “equação Plínio” quando um dos interlocutores de Zeferino junto ao comando do II Exército, o prefeito biônico de Paulínia José Antônio Maranho, assegurou-lhe que “a decisão já estava tomada” e que Plínio não só entraria na lista como seria escolhido. Pinotti reagiu espantado:
— Mas, Zé, como é possível?
— Você vai ver que ele é a melhor solução no momento.
Fosse como fosse, Zeferino não criou facilidades para o governador. Ao reunir o Conselho em 10 de abril, orientou para que os votos fossem distribuídos majoritariamente entre Rogério e Romeo, reservando o terceiro lugar para Plínio. Num conselho que na época tinha apenas 29 membros, Rogério foi eleito no primeiro escrutínio por uma margem apertada contra Romeo: 15 votos a 14. Plínio recebeu seis votos, o que fazia crer que estava fora da parada.*** Mesmo assim, ao receber a lista, Paulo Egydio não vacilou nem por um dia: escolheu imediatamente o terceiro colocado e telefonou ao reitor para comunicar seu veredito. Zeferino encarregou Romeo de dar a notícia a Plínio, que nesse dia se achava em visita ao campus de Limeira, distante 58 quilômetros de Campinas. Plínio não quis acreditar quando ouviu a voz pastosa de Romeo:
— Venha para cá imediatamente.
A seu filho Bento, disse ao desligar o telefone:
— Estão gozando comigo.
Em Campinas, acreditou finalmente em sua unção quando se viu cercado por um séquito de prosélitos de Cerqueira e de Romeo, já que ele próprio não contava com praticamente nenhum.
— Ora essa, disse. Cheguei trotando num pangaré e saio montado num gualixo.
No dia 17 Plínio já era reitor. Em seu curto discurso de posse, redigido horas antes da cerimônia, ele falou da “surpresa de ser colocado neste posto de extrema responsabilidade sem o ter pleiteado, sem o ter desejado, sem mesmo algum dia ter sonhado com ele”. Declarando-se “cheio de humildade e desejo de acertar”, rejeitou qualquer pretensão de rivalizar com “o brilho ofuscante da personalidade” de seu antecessor. Mas tampouco derramou-se em elogios ao mandarim. Limitou-se a se colocar no papel de seu continuador:
Um de meus desejos mais veementes é manter a Unicamp como uma equipe coesa, em que todos os olhos e todos os esforços estejam concentrados em atingir o mesmo alvo. Sinto que grande parte do sucesso desta casa se deve ao fato de não haver aqui compartimentos estanques, mas um só corpo e um só espírito devotados ao mesmo sacerdócio. (...) Não desejo nem posso me alongar sobre qualquer dos inúmeros aspectos da personalidade de meu antecessor. (...) O que não posso deixar de exprimir é uma esperança: a esperança de que a marca daquele que já foi chamado com razão de “semeador de universidades” não se apague, nem se desvaneça, por um instante sequer, na vida desta casa.
O discurso de despedida de Zeferino, de nove páginas manuscritas, surpreendeu por uma referência que fez ao perigo representado por “forças internas” que, na sua ausência, talvez pretendessem conturbar o ambiente da Unicamp.
A Universidade Estadual de Campinas está solidamente constituída, de tal sorte que nenhuma força externa pode destruí-la, nenhuma. Cuidado, porém, com as forças internas da mediocridade, da inveja e da ambição desmedida, porque a mediocridade e a inveja se unem com uma solidariedade impressionante, invejável, para combater o talento. (...) Meu caro e magnífico reitor Plínio Alves de Moraes: que Deus o abençoe e o ajude a carregar o pesado encargo que ora lhe transfiro.
Referia-se talvez obscuramente ao clamor que vinha das unidades pelo voto direto e com freqüência até mesmo pelo voto paritário. Ou via ainda os fantasmas de antigos inimigos já defenestrados, mas que sempre podiam sonhar com uma vendeta no vácuo de sua ausência? Seja como for, ao menos em um ponto o alerta fazia sentido: seria realmente pesado o fardo que Plínio carregaria nos quatro anos seguintes. Um daqueles diretores emergentes, o engenheiro Maurício Prates, resumiu em uma frase a via-crúcis que se iniciava para o novo reitor:
— Plínio recebeu um abacaxi de ouro.
* O Estado de S. Paulo, 18/3/1978.
** Mais de duas décadas depois, o discurso de Cerqueira Leite sobre o acordo nuclear não tinha se alterado: “Não houve, na história do Brasil, pílula mais dourada que a do acordo nuclear com a Alemanha. O quilowattnuclear elétrico instalado custaria US$ 350, bem menos que o hidrelétrico ou o termelétrico. Se Angra 2 tivesse funcionado (ou quando funcionar), o quilowatt custaria (ou custará) pelo menos 15 vezes mais. O Brasil estaria se desenvolvendo e alcançando a autonomia tecnológica e energética, com uma usina de enriquecimento de combustível nuclear, uma de reprocessamento e uma fábrica de equipamento. A tecnologia de enriquecimento de urânio era conceitualmente inviável, a usina de reprocessamento foi vetada e a fábrica de equipamentos pesados, sucateada. A comunidade científica do setor nuclear foi alienada e apenas recentemente se recuperou. O país já gastou mais de US$ 10 bilhões e não produziu um grama de combustível nuclear. Após 15 anos, não foi gerado nem um quilowatt-hora. E, tecnicamente, estamos no mesmo estágio de desenvolvimento do dia em que o ‘acordo’ foi firmado.” (Folha de S. Paulo, 5/5/1999).
*** A lista sêxtupla incluiu ainda os nomes do médico José Aristodemo Pinotti e dos físicos João Alberto Meyer e Sérgio Porto.
Plínio assume; Zeferino desce as
escadas da reitoria
Novo reitor foge à influência do mandarim, mas enfrenta
pressão das unidades por eleição direta de diretores.
PARA SURPRESA GERAL e sobretudo de Zeferino, Plínio, tão logo assumiu, deu mostras de pretender fugir à tutela do mandarim. Contrariando toda expectativa, o novo reitor aspirava a não desempenhar o papel de títere nas mãos do titã que se instalara apenas um teto abaixo de sua sala. No dia seguinte à transmissão do cargo, Zeferino passou a manhã trabalhando em seu escritório de presidente do conselho de curadores da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp, a Funcamp. À hora do almoço subiu a escadaria do gabinete, em companhia de Arlinda, para fazer companhia a Plínio. A docilidade de Plínio, que ele conhecia desde a infância, Zeferino talvez imaginasse que duraria para sempre, com almoços regados a bons conselhos e conversas bem humoradas. Durou pouco mais de uma semana. Camargo, que só continuava chefe de gabinete porque Zeferino fizera gestões nesse sentido (Plínio teria gostado de renovar também esse cargo), foi encarregado da espinhosa missão de levar ao ex-chefe a notícia de que, por razões que lhe escapavam, ele seguia sendo bem-vindo aos almoços do reitor, mas não Arlinda Rocha Camargo, sua fiel auxiliar. O motivo implícito era que, continuando Arlinda no cargo de secretária geral, parecia impróprio que ela freqüentasse diariamente a mesa do reitor e, pior, se desse a liberdade de fazer observações sobre a maneira como o reitor deveria agir em tais ou quais circunstâncias.
— Bom, se ela não pode ir, eu também não vou, disse um Zeferino constrangido e magoado.
Essa atitude do novo reitor dividiu águas e separou sentimentos. Se sua esperança de influir sobre Plínio continuou viva por algum tempo ainda, não demorou a se desvanecer. Plínio quase destituiu Camargo quando soube que ele, em horas mortas, descia ao térreo para consultar Zeferino sobre o encaminhamento de certos processos. E chegou mesmo o dia em que pediu pessoalmente ao ex-reitor que se abstivesse de freqüentar o Conselho, ainda que na condição de observador, pois sua presença ali deslocava o eixo das atenções para os arrazoados intermináveis que ele fazia, deixando ao presidente da mesa o papel de acólito. Profundamente amargurado, Zeferino aquiesceu e a partir daí adotou uma postura lacônica, quando não crítica, em relação a seu ungido.
— Sou de opinião que os candidatos a reitor deveriam passar por um curso, talvez a cargo do MEC, comentou com o jornalista Roberto Godoy. Aos que não estão à altura dela, a universidade rapidamente pode se transformar de mãe em madrasta.
O estilo Plínio desde o início apresentou um problema: sua simplicidade trabalhava contra ele. Pior, opositores e aliados fomentavam um rico anedotário a seu respeito que ainda hoje é lembrado. A partir da segunda metade de seu mandato, o objetivo era claramente desmoralizá-lo. Nem tudo o que dele se dizia era verdade, mas contava-se por exemplo que durante um congresso de lingüística realizado em 1979 ele distraiu os convidados com histórias picantes sobre “as amantes da universidade” – o que soou como uma alusão à fama donjuanesca de Zeferino. Uma vez teria deixado o embaixador francês esperando até que terminasse a novela das seis (o que talvez tenha sido um merecido castigo para o embaixador, que se atrasara uma hora). Tais histórias eram reforçadas por seu costume de distribuir goiabas de sua chácara em reuniões do Conselho, retirando-as de uma maletinha. Em outra ocasião distribuiu canivetes aos conselheiros. E não era raro que presenteasse uns e outros com curiós, peixes do rio Piracicaba e rolos de fumo.
Mesmo imerso numa atmosfera de folclore, o Plínio daqueles primeiros tempos parecia decidido a voar com as próprias asas.Até mesmo o experimentado Cerqueira Leite teve sua cabeça posta a prêmio quando desceu ao bunker fundacional de Zeferino para se queixar de que Plínio estava prestes a desmontar um ambicioso programa de engenharia genética e biologia molecular – seria o primeiro do país – que ambos tinham arquitetado com pesquisadores da USP e de universidades americanas e alemãs. O programa seria instalado num centro a ser criado dentro do campus e já contava com uma verba de 15 milhões de dólares. Mas Plínio recuou diante do aparecimento de resistências internas à instalação de um centro dessa natureza fora da órbita do Instituto de Biologia. Os geneticistas contratados se dispersaram e o programa fez água. Vinte anos depois, Cerqueira ainda acusava Plínio de ter atrasado em uma década o desenvolvimento da biologia molecular no Brasil.
Para quem tinha anunciado o projeto de só se dedicar a “coisas sossegadas”, como escrever suas memórias e praticar seu esporte favorito, a equitação, no sítio que possuía em Cotia, Zeferino mantinha uma rotina bem animada. Os hábitos morigerados que adotou eram praticados estritamente dentro do campus, como por exemplo andar 1.500 metros antes do jantar e outro tanto depois, sempre movimentando as pontas dos dedos das mãos. Em junho foi homenageado com um jantar de mil talheres na Sociedade Hípica de Campinas, o clube mais badalado de Campinas. Num comentário posterior da Folha da Tarde destinado a incensar Zeferino, um redator anônimo aproveitou para abespinhar Plínio:
Podia-se notar nas conversas que a surpresa da nomeação do quase desconhecido Plínio Moraes para substituir Zeferino ainda não parece totalmente absorvida. Os mais descontentes falam em desânimo, em angústia. Os laboratórios, dizem, não abrigam mais a mesma euforia dos tempos de Zeferino, um reitor ágil, criativo. O novo reitor, um médico de Piracicaba que teria alcançado mais sucesso com os seus negócios de fazendeiro, é chamado de caipira. Conta-se no campus que o próprio físico César Lattes apareceu para cumprimentá-lo, no dia da posse, com um imenso chapéu de palha na cabeça.*
O jantar foi uma demonstração do poder latente de Zeferino e uma prova da força política que ainda lhe era atribuída. Semanas mais tarde, o governador nomeado pelos militares para o quadriênio 1979-1982, Paulo Salim Maluf, o convidaria (e ele recusaria) para a pasta da Educação. E movido talvez pela necessidade de retaliar Plínio, passou a defender a idéia de um sistema universitário único no Estado, em que uma “superuniversidade” encamparia as três instituições de ensino superior públicas existentes – a USP, a Unicamp e a Unesp – e outras que porventura viessem a existir, cujos reitores não seriam mais que chanceleres subordinados a um “super-reitor”. Chegou a esboçar um projeto nesse sentido, que não decolou porque nunca foi levado a sério pelo governo.
Despojado de seu mandarinato, Zeferino tornou-se ácido em relação a aspectos da estrutura acadêmica que antes, para ele, serviam à perfeição a seus propósitos, inclusive os do marketing institucional. Disparou contra “o encastelamento da universidade” e “o irrealismo” dos cursos de pós-graduação — “úteros de prostitutas que recebem mas não concebem, tal a desvinculação existente entre a maioria de seus resultados práticos e os problemas mais graves e imediatos da realidade nacional”. Estas e outras idéias surpreendentes num homem do sistema – como seu ataque à reserva de mercado tão cara aos militares nacionalistas na década de 70 – Zeferino as expôs com desenvoltura e até uma certa exacerbação, no programa de entrevistas Vox Populi, da TV Cultura, que o sabatinou em dezembro de 1978.
Em paralelo a essas dissonâncias, transcorria um fenômeno endógeno à Unicamp que tanto Zeferino como Plínio perceberam tarde demais para exercer qualquer controle sobre ele. Ecoando o clamor democratizante da sociedade, as unidades de ensino vinham sistematicamente apresentando listas tríplices ao reitor, resultantes de consultas internas junto a professores, funcionários e alunos para a indicação de seus diretores. Como essas consultas eram organizadas pelos colegiados das unidades, na prática correspondiam a uma institucionalização branca das assembléias populares que tanto dissabor causavam a Zeferino desde o fenômeno das comissões paritárias que prosperou na Faculdade de Medicina no final da década de 60. O recurso das listas foi introduzido pela primeira vez na Faculdade de Engenharia, onde, inesperadamente, e contra o costume, apresentaram-se dois candidatos à sucessão de Manoel Sobral, os professores Maurício Prates e Rege Scarabucci. Uma assembléia convocada com o pretexto de “gerenciar” o fim do mandato de Sobral acabou derivando para o movimento de consulta que, com regras estabelecidas no calor do entusiasmo, elegeu Prates. Zeferino, a seis meses do fim de seu mandato, fez vistas grossas ao “democratismo” dos engenheiros e deixou para Plínio o ônus da escolha. Prates foi escolhido sem que Plínio se desse conta de que, ao legitimar essa primeira lista, fortalecia as seguintes. Autorizava uma prática que a partir de 1980 seria adotada pelas demais unidades, permitindo que ascendessem ao Conselho, com direito a voz e voto, diretores que representavam segmentos não necessariamente alinhados com o poder central. Além disso, no afã de escolher nomes que tinham pouca ou nenhuma ligação com Zeferino, Plínio, sem saber, cavava a própria cova. (E.G.)
* Folha da Tarde, 8/7/1978.
Continua na próxima edição.