Pesquisadores do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Unicamp conseguiram descrever pela primeira vez em humanos uma nova mutação no gene GATA-1, que codifica as proteínas GATA-1 e GATA-1S. Ao interagir com o DNA, estas proteínas contribuem para determinar a diferenciação e produção das células que compõem o sangue (hemácias, leucócitos e plaquetas), num processo chamado hematopoese. O trabalho ganhou destaque na edição on line de junho da revista Nature Genetics, uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo.
O estudo da Unicamp demonstra, pela primeira vez, a necessidade da produção das proteínas GATA-1 e GATA-1S, em sua forma integral, para a formação normal do sangue. Antes da publicação do artigo, não eram conhecidas as conseqüências de mutações hereditárias capazes de impedir a expressão da proteína GATA-1 (restando apenas a GATA-1S).
“Esperamos que nosso estudo contribua para elucidar o mecanismo de diferenciação das diversas células do sangue a partir de uma célula precursora comum”, diz o hematologista e coordenador geral da Unicamp Fernando Ferreira Costa, que lidera a equipe. “Isso é relevante porque, no futuro, a possibilidade de aumentar ou reduzir a produção de um determinado tipo celular na terapêutica de alguma doença dependerá da contribuição de pesquisas dessa natureza”, completa.
Intitulado “Mutação hereditária gera a produção apenas da isoforma de menor tamanho do GATA-1 e está associada a eritropoese deficiente”, o trabalho teve como ponto de partida a tese de doutorado da bióloga Luciana Hollanda, que atua no Hemocentro e é orientada por Fernando F. Costa. Devido à sua complexidade, o trabalho tornou-se multidisciplinar, evoluindo para a participação de um grupo de pesquisa na Faculdade de Ciências Médicas (FCM), integrado por Carmem Lima, Anderson Cunha, Dulcineia Albuquerque, Margareth Ozelo, Sara Saad, José Vassallo e por Paulo Joazeiro, do Instituto de Biologia (IB). A nova mutação, identificada como 332G-C, foi detectada em sete membros de uma mesma família do interior de São Paulo.
O gene GATA-1 é constituído por regiões codificantes (exons) e não codificantes (introns). São ao todo seis exons, distribuídos numa sequência horizontal, como numa fita. Cada um deles é intercalado por um intron. Destes seis exons, cinco (do exon-2 ao exon-6) codificam a proteína. A mutação identificada nos pacientes que foram objeto da pesquisa ocorreu no exon-2. Todos apresentaram anemia macrocítica.
Num indivíduo normal, o gene GATA-1 codifica duas expressões ou isoformas da proteína: a GATA-1, de maior peso molecular, e a GATA-1S, de menor peso molecular. A mutação no exon-2, como nesse caso, impede a síntese da proteína de maior peso molecular, a GATA-1, restando apenas a de menor peso molecular, a GATA-1S.
Síndrome de Down A pesquisa desenvolvida pelo Hemocentro revelou dois novos aspectos relacionados à mutação no gene GATA-1. O primeiro diz respeito à associação entre mutações no exon-2 e doenças do sangue em portadores de Síndrome de Down (SD). A SD é uma doença genética caracterizada pela trissomia do cromossomo 21.
Antes de o Hemocentro publicar sua pesquisa, sabia-se que indivíduos com leucemias megacarioblásticas agudas (AMKL) ou com doença mieloproliferativas transitórias (TMD), e que eram portadores de Síndrome de Down, sempre apresentavam mutações no exon-2 do GATA-1, resultando na produção unicamente da proteína GATA-1S. Essa mutação, nestes casos, não são herdadas, mas adquiridas durante a gestação.
Não havia, até então, indícios de que estas mutações no exon-2 em indivíduos normais pudessem resultar em doenças do sangue herdadas. Essa interpretação chegou a ganhar força em 2002, depois que pesquisadores da Harvard Medical Schol publicaram artigo na Nature Genetics, relatando experiências com camundongos transgênicos.
O estudo publicado pelos pesquisadores de Harvard sugeria que a inibição da proteína de maior peso molecular, a GATA-1, em indivíduos sem Síndrome de Down, não seria suficiente para determinar anormalidades permanentes no sangue. Segundo ele, a proteína de menor peso molecular, a GATA-1S, se encarregaria do processo de diferenciação e produção das células sanguíneas, propiciando uma condição de normalidade ao indivíduo.
O estudo desenvolvido pelo Hemocentro demonstrou, porém, que alterações no exon-2 em indivíduos sem Síndrome de Down, resultando na inibição da proteína GATA-1 e permanência da GATA-1S, podem resultar em doenças do sangue. Nos pacientes estudados, a principal alteração detectada foi anemia, embora em alguns casos também tenha sido identificada a redução de neutrofilos (célula do sistema de defesa) e alterações funcionais de plaquetas (células importantes no processo de coagulação do sangue).
Segunda novidade Esta constatação resultou na segunda novidade revelada pelo trabalho da Unicamp. A associação entre mutações hereditárias no gene GATA-1 e anemia e plaquetopenia já havia sido descrita quando a alteração ocorre no exon-4, mas o estudo do Hemocentro mostra, pela primeira vez, que a anemia também pode ocorrer quando a mutação ocorre no exon-2.
Em seu artigo, os pesquisadores da Unicamp levantam a hipótese de que os efeitos de GATA-1S em humanos podem ser diferentes daqueles observados em camundongos. O trabalho sugere que os resultados obtidos pelos pesquisadores de Harvard possivelmente decorreriam do fato de os animais gerados em laboratório apresentarem níveis da proteína GATA-1S acima do normal.
“Nossos dados revelam que, de modo geral, a expressão da GATA-1S em níveis normais ou abaixo do normal, em humanos, propicia a ocorrência da doença”, explica Fernando Costa. Além disso, segundo o pesquisador, este é o primeiro estudo para indicar a presença da doença em conseqüência de uma mutação herdada no exon-2 e na ausência de outros fatores, como Síndrome de Down.