O mandarim se
recolhe,
Plínio vacila
e a dissidência toma corpo
Magnânimo, Plínio assina a contratação do anistiado Paulo Freire, que dois anos
depois seria símbolo
do movimento de resistência
EUSTÁQUIO GOMES
EM MAIO DE 1978, apenas um mês após o início de seu “exílio” nos baixos da Reitoria, Zeferino tomou conhecimento de que oito dos doze diretores da casa discordavam da chapa que ele havia apresentado para a composição da diretoria da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp, a Funcamp. Discrepavam sobretudo do método utilizado, uma vez que a convocação por escrito trazia a chapa já pronta, integrada por nomes da exclusiva confiança de Zeferino.1 A palavra “desaforo” chegou a ser pronunciada por mais de um diretor. Durante a reunião, o lingüista Carlos Franchi levantou a questão objetivamente: os diretores ali pactados preferiam que outros nomes fossem incluídos na chapa.2 Acostumado ao respeito irrestrito ao antigo chefe, o procurador geral Pérsio Furquim Rebouças estremeceu ao ouvir isso.
— Mas o que querem?, protestou.
Zeferino, hábil, compreendeu o que se passava. Disse a Pérsio:
— Deixa. Deixa eles se divertirem um pouco.
E concedeu quinze minutos para que o assunto fosse debatido. Em um quarto de hora os discordantes montaram uma nova chapa que cavalheirescamente mantinha Zeferino na presidência do Conselho Curador mas excluía nomes como o do vice-reitor Paulo Gomes Romeo e o do onipresente diretor de administração Zuhair Warwar, antes indispensáveis em qualquer composição do gênero. A aquiescência de Zeferino deixou perplexos a uns e outros, soando como um sinal de que sua combatividade havia baixado alguns furos.
Da mesma maneira ele se manteve em silêncio quando a recém-criada Associação de Docentes da Unicamp, a Adunicamp, decretou greve salarial numa assembléia conturbada que resultou na renúncia de seu presidente, o filósofo Rubem Alves. Alves era o primeiro presidente eleito da entidade e aquela ficaria como a primeira greve de professores na Unicamp. Alegando que ainda havia margem para negociação, Alves lutou contra a greve até o último minuto, mas foi voto vencido em sucessivas assembléias comandadas por seu combativo vice-presidente, o matemático José Vitório Zago.
A greve de 1978 não resultou em ganho algum para os trabalhadores da Unicamp, mas serviu para sedimentar o papel dos diretores dissidentes e pavimentou o caminho da grande greve deflagrada em maio de 1979 contra o recém-nomeado governador Paulo Maluf. A aversão que a comunidade acadêmica de São Paulo devotou a Maluf foi plenamente correspondida pelo governador, que demonstraria, dali por diante, um desprezo glacial por pleitos docentes de qualquer natureza. Os professores exigiam 70% de reajuste salarial mais um modesto abono de 2.000 cruzeiros — o cerne da pauta de reivindicações daquele ano. Mas nessa altura a Adunicamp já estava preparada para terçar armas com o governo, inclusive contábeis: seu presidente era agora um economista recém-chegado do Chile, Paulo Renato Souza, e a seu lado, agindo para demolir os contra-argumentos do Estado, o ex-exilado José Serra, recém-vindo de Universidade de Cornell. O movimento radicalizou, Maluf não cedeu (ao final, concedeu apenas o abono de 2.000 cruzeiros e ignorou o índice de reajuste) e as universidades pararam por quase três meses, comprometendo seriamente o semestre letivo.
Ficou célebre o dia em que Maluf, desembarcando na estação ferroviária de Campinas às 7 horas da manhã para mais uma ronda de seu chamado “governo itinerante”, encontrou um pelotão de 300 docentes da Unicamp perfilados em fila dupla desde o saguão da estação até a cabeceira da avenida Andrade Neves — um verdadeiro corredor polonês que o governador percorreu sob vaias, impropérios e uma chuva torrencial. Comportando-se como se estivesse sendo ovacionado, Maluf sorria e distribuía tchauzinhos à esquerda e à direita. Houve uma cena hilariante quando um dos professores descolou a tarja preta que trazia no braço e, na tentativa galhofeira de passá-la ao braço do governador, conseguiu apenas aderi-la à mão que acenava e dava tchauzinhos, o que Maluf fez durante algum tempo, saudando o público que o vaiava com a tarja esvoaçante.3
Plínio, espremido entre o clamor da comunidade interna e a obediência que devia ao governo, que por ele tampouco demonstrava qualquer consideração, entrou em processo de paralisia administrativa. Colunas de processos atulhavam as salas ou dormiam, em grandes amarrados, nos escuros armários de mogno da Reitoria. Um desses processos era o que solicitava a contratação do educador Paulo Freire, autor de um método de alfabetização de adultos conhecido mundialmente, e que se achava exilado desde 1964. Interessada em incorporá-lo a seus quadros, a Faculdade de Educação queria o mesmo tratamento que tivera o Instituto de Economia ao trazer de volta ao Brasil os economistas José Serra e Paulo Renato Souza, bem como o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas ao recambiar do Chile o historiador Marco Aurélio Garcia. Mas, como no caso de Serra dois anos antes, o trâmite não andava. Para trazê-lo foi necessário promover uma assembléia no pátio da Reitoria. Camargo, o chefe de gabinete, traduziu todo o receio reinante naqueles começos da anistia ao perguntar ao diretor da faculdade, o filósofo Eduardo Chaves: “Mas não se trata de um comunista?”. Foi preciso uma conspirata de Chaves e de uma funcionária da Secretaria Geral, Ana Maria Tebar, para que se encontrasse o processo de Freire na montanha de amarrados que jazia na sala de Camargo. O repatriamento do educador deve alguma coisa à ousadia dessa funcionária, que naquele dia levou sorrateiramente o processo à sala do reitor, abriu-o diante dele e perguntou-lhe se não queria entrar para a história. Plínio alegou falta de verba para a contratação.
— Mas a verba existe, eu já levantei, disse Ana. Estamos entrando em tempos de anistia e o senhor deve estar adiante da história.
Plínio, num assomo repentino, empinou a caneta:
— Está bem, vou autorizar.
E realmente o fez, nem de longe imaginando que dois anos mais tarde, Paulo Freire, ainda que sem o desejar, seria usado por seus oponentes (isto é, quase todo mundo) como símbolo de resistência no momento mais crítico de sua gestão, os seis meses finais.
1 A chapa proposta por Zeferino seria integrada pelo diretor administrativo Zuhair Warwar, pelo coordenador geral Paulo Gomes Romeo e pelo diretor do Instituto de Matemática Ubiratan D’Ambrósio, além do próprio Zeferino como presidente do Conselho de Curadores. A chapa que prevaleceu foi a seguinte: Carlos Franchi, diretor-presidente; Ubiratan D’Ambrósio, vice-presidente; e Maurício Prates, diretor executivo. Zeferino foi efetivamente eleito presidente do Conselho de Curadores.
2 Os diretores considerados dissidentes eram os seguintes: Aécio Pereira Chagas, do Instituto de Química; André Villalobos, do Instituto de Filosofia de Ciências Humanas; Ayda Ignez Arruda, do Instituto de Matemática; Carlos Argüello, do Instituto de Física; Carlos Franchi, do Instituto de Estudos da Linguagem; Eduardo Chaves, da Faculdade de Educação; Maurício Prates, da Faculdade de Engenharia; Yaro Burian, do Instituto de Artes.
3 Depoimento de João Frederico da Costa Azevedo Meyer, o Joni, in Adunicamp 25 anos, Editora da Unicamp, 2002.
Sob o vazio
regimental
choca-se o ovo
da serpente
NMorre Sérgio Porto,
troca de coordenadores
gera crise e reitor refugia-se
em um hotel da cidade
APESAR DA PESADA atmosfera de crise, não se pode dizer que, no primeiro quadriênio pós-Zeferino, a universidade tenha interrompido ou mesmo diminuído seu fluxo de produção acadêmica. Foi na gestão Plínio que se instalou o Instituto de Artes e, a partir da contratação de Amílcar Herrera, importante especialista argentino em geologia econômica, à época auto-exilado em Sussex, inicia-se a implantação do Instituto de Geociências. Em fevereiro de 1979, Sérgio Porto e sua equipe anunciam o “domínio” de um novo processo para obtenção de água pesada, elemento-chave para o desenvolvimento de um projetado, mas não completado, programa de fusão nuclear. Em várias unidades avançam pesquisas na área de energias alternativas, como a do gás metano para uso doméstico e industrial, do aproveitamento de resíduos agrícolas e o uso rural de biogás, do hidrogênio e da biomassa como substitutos do petróleo, além de projetos no campo do controle biológico de pragas. O Instituto de Física experimenta avanços na microeletrônica e no desenvolvimento de circuitos integrados, e ali também se demonstrou que, com tecnologia própria, o laser brasileiro podia ser usado na desobstrução de artérias e na transmissão de sons e imagens a longa distância. Um inédito programa de cooperação é iniciado com a Telebrás para o desenvolvimento dos primeiros componentes digitais para o nascente sistema de telecomunicações do país. Na Medicina, a pediatra Sílvia Brandalise dá os primeiros passos nas pesquisas que lhe permitiriam, anos mais tarde, chegar a altos níveis de cura da leucemia infantil, ao passo que a equipe de José Aristodemo Pinotti iniciava um programa de controle de câncer de útero e de mama que, nos anos seguintes, baixaria a patamares europeus os índices dessas patologias na periferia de Campinas.
Mesmo em circunstâncias adversas, a Unicamp funcionava como uma caixa de ressonância suficientemente boa para manter seu prestígio em alta. Em abril de 1979, uma nota fúnebre vinda da União Soviética veio matizar esse quadro: Sérgio Porto, que participava de um congresso em Novosiburk, na Sibéria, morrera subitamente durante uma partida de futebol promovida por ele próprio entre os congressistas. Os necrológios associaram inevitavelmente o nome de Porto ao de Zeferino, o homem que fora capaz de reunir tantos talentos sob um mesmo teto, numa instituição plantada no interior paulista. O sentimento da perda provocado pela morte de Sérgio Porto foi atenuado por uma anedota que correu o campus, a de que Porto, sendo um anticomunista confesso, e tendo enfartado num campo de futebol, morrera por ter batido com a cabeça... na cortina de ferro. O translado do físico para o Brasil também teve algo de humor negro: como as relações com o regime soviético estavam cortadas, o corpo teve de fazer a rota Moscou-Paris-Rio de Janeiro, onde as autoridades militares acharam de bom alvitre providenciar um novo caixão em substituição à urna russa, que trazia na tampa o símbolo da foice e do martelo.
Em junho de 1980, César Lattes questionou publicamente o princípio da relatividade einsteiniana durante um seminário na Academia Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro. Ao afirmar que certas medições da propagação da luz, feitas em laboratório por ele e sua equipe, indicavam que a velocidade da luz não era uma constante universal, como queria Einstein, Lattes propunha que alguns dos teoremas que servem de base à teoria da relatividade, como por exemplo o Teorema de Lorentz, talvez tivessem de ser revistos. A repercussão que se seguiu a esse anúncio foi enorme. A correspondência no Departamento de Raios Cósmicos quadruplicou em uma semana, com convites e pedidos de reprint em todo o mundo. Poucas semanas depois, Lattes constatou que alguns de seus cálculos davam resultado diverso do experimento comunicado e descobriu a razão: um transformador de energia situado próximo do equipamento influíra na modulação dos deslocamentos das linhas de mercúrio. Imediatamente ele solicitou à Academia que desconsiderasse seu trabalho e, à imprensa, reconheceu que sua comunicação era um “trabalho preliminar, um peixe fresco”. Diante de seu grupo, Lattes não foi tão fleumático: ele pediu desculpas aos companheiros e chorou. Seu prestígio, entretanto, continuou intacto: até sua morte em março de 2005, aos 80 anos, ele seria freqüentemente lembrado como o brasileiro que mais perto chegou de ganhar o Prêmio Nobel de Física.
Mas a celebração dos feitos científicos não tinha o condão de abafar os conflitos que se instalavam insidiosamente no vácuo deixado por Zeferino e nos buracos regimentais que logo ficariam patentes. Descontente com a influência de Zeferino sobre seus auxiliares mais próximos, Plínio decidiu que era hora de renovar seu gabinete. Em fins de abril de 1979, contrariando um influente grupo de diretores que teriam preferido solução diferente, Plínio nomeou o dentista José Merzel para o lugar do recém-falecido Porto. Em junho desvencilhou-se de Cerqueira Leite, com quem vinha atritando desde a desativação do programa de biologia molecular. Para seu lugar chamou o químico Paulo Ana Bobbio, da Faculdade de Engenharia de Alimentos, também sem qualquer consulta aos que lhe davam sustentação no Conselho. Embora tivessem o aval do reitor para fazer a reforma administrativa que pretendiam, logo ficou claro que Merzel e Bobbio não contavam com a simpatia do coordenador geral Paulo Gomes Romeo.
E o que pretendia a dupla Merzel-Bobbio? Nada menos que descentralizar o orçamento, desburocratizar as compras, dar outro encaminhamento às licitações, isto é, tudo aquilo que não interessava ao grupo remanescente. Informados pela dupla sobre os constantes boicotes que ambos vinham sofrendo, o reitor identificou em Romeo o pivô da trama paralisante, cuja arquitetura, calculava, talvez fosse obra de Zeferino. A crise se agravou consideravelmente quando Plínio, sem dar atenção às filigranas do estatuto, resolveu compor um triunvirato acrescentando à já mencionada dupla o engenheiro de eletrônica Hélio Drago Romano. Com isso dava novas atribuições às coordenadorias e conferia poderes excepcionais àquela que logo ficou conhecida como “a troika”. Romeo, agastado, pediu afastamento e exilou-se no Hotel Terminus, no centro de Campinas, o que na prática equivalia a uma auto-exoneração do cargo. Aquele mesmo grupo de diretores dissidentes, capitaneado pelo lingüista Carlos Franchi, desta vez apoiou a decisão (detestavam Romeo), mas os economistas e a Associação de Docentes execrou-a. Num depoimento concedido anos depois, Paulo Renato Souza, que nessa altura presidia a entidade, interpretou assim o incidente:
Houve um famoso episódio, que foi o da troika, em que se substituíram os dois coordenadores e praticamente se nomeou um coordenador geral adjunto com todas as funções do coordenador geral. Então, a universidade passou a ser gerida por três pessoas: era o coordenador geral, o coordenador adjunto e o coordenador dos institutos. Aquilo foi uma espécie de prenúncio da intervenção que houve depois.1
O que Plínio não contava era com a reação negativa do governo ao afastamento de Romeo. Esse descontentamento ficou claro quando o triunvirato, decidido a deslocar o controle dos processos licitatórios referentes a obras físicas, serviços de transporte e compras, produziu uma portaria criando uma instância nova para cuidar da infra-estrutura do campus — a prefeitura universitária. Prevista no estatuto desde os primórdios da Unicamp, a prefeitura universitária nunca fora implantada. Embora tenha sido encaminhada ao Diário Oficial três vezes, para publicação, a portaria jamais ganhou letra de forma. Os relatos a respeito coincidem em que, alertado por gente da própria administração da Unicamp, o deputado Nabi Abi Chedid, líder do governo na Assembléia do Estado, contatou o chefe da Casa Civil, Calim Eid, que mandou confiscar na Imprensa Oficial o texto indesejado, dando instruções peremptórias para que não fosse ao prelo. A partir daí, o palácio radicalizou e colocou Plínio numa situação dificílima: por ordem do governador – Calim Eid foi enfático ao telefone – ele deveria destituir o triunvirato e reconduzir Romeo à Coordenadoria Geral.
Ignorante da trama, o triunvirato folheava cada manhã o DOE sem dar com a publicação da portaria. Nesse ínterim, vendo-se entre a cruz e a espada, o reitor desapareceu por dois dias. Na verdade, deslocara seu centro de decisão para o Terminus, onde estava hospedado Romeo, tratando de encontrar ao lado dele uma solução a menos trágica possível. No dia 28 de março de 1980, uma sexta-feira, ele reapareceu e destituiu publicamente o triunvirato, surpreendendo os diretores que acorreram a seu chamado e deixando boaquiaberta a troika. Constrangido, Plínio explicou-se:
— Só tenho dois caminhos: ou aceito a pressão do governo do Estado para revogar a portaria, com a volta imediata de Paulo Gomes Romeo, ou mantenho o quadro atual e ficamos sujeitos a represálias óbvias e difíceis para a Universidade, sem solução para a crise financeira.
Optava, pois, pelo caminho menos espinhoso, acatando as ordens do governo. Perdia a amizade de três colaboradores fiéis, porém preservava a instituição. Merzel, depois disso, nunca mais falou com Plínio. Na segunda-feira, já destituído, o triunviurato distribuiu à imprensa uma nota que explicava e justificava seu malogrado plano de ação:
— Os coordenadores advogaram e advogam o fortalecimento imediato da autoridade dos departamentos e seus conselhos como base da universidade, formação dos quadros funcionais, aumento da independência dos diretores em relação à administração central, maior participação na execução do orçamento e maior divisão das responsabilidades administrativas com as unidades.
Depois de localizar a origem dos problemas na “natureza do sistema diretivo e administrativo imposto” pelo passado (em outras palavras, pelo centralismo de Zeferino Vaz), acusavam Plínio de pusilanimidade:
— Do sucessor de Zeferino Vaz esperava-se que pudesse levar a universidade para sua definitiva institucionalização, com a necessária liberalização dos procedimentos de decisão.
E tentavam explicar aos menos atentos o que a lentidão do processo não deixara perceber – a troika durou pouco menos de um ano –, passando a impressão enganosa de que tinham cometido alguma espécie de afronta regimental agora corrigida pelo governo:
— A implementação dessas idéias em resoluções efetivas fez surgir atritos sobretudo com a área administrativa, na medida em que alterava situações estabelecidas há longo tempo. Tais atritos, os coordenadores as assumiram para resguardo da figura do reitor. A crise não se vincula, pois, a um fato isolado; é sobretudo de princípios e tem raízes profundas na própria história da universidade, tornando-a eventualmente vulnerável a interesses não-universitários.
Por trás dos “interesses não-universitários” chocava-se, sem que soubessem, o ovo da serpente. E Zeferino, onde estava nessa hora? Procurava não interferir (embora haja quem lhe atribua o malfadado telefonema a Nabi) nem remediar o confuso estado de coisas, mas certamente não permanecia quieto nos baixos da Reitoria. Franchi notou nele uma mórbida obsessão pelo tema da sucessão de Plínio. Dizia:
— Pinotti ou João Manuel: um dos dois será reitor.
João desencorajou qualquer prognóstico envolvendo seu nome:
— O senhor sabe que eu tenho problema com os milicos.
— Bobagem. Mas se não for você será o Pinotti.
Sentia-se cada vez mais livre para emitir opiniões heterodoxas, parecendo divertir-se com isso. Em setembro de 1980, apoiou a greve nacional dos estudantes por maiores verbas para o ensino numa entrevista a um jornal de Campinas:2
— Apóio por um princípio elementar: quem não chora não mama.
Achava entretanto que o foco da greve estava errado – maior aplicação de verbas na educação era coisa justa, mas não no ensino superior, e sim no ensino pré-primário – uma vez que “nossas crianças, quando entram no primeiro ano do primeiro grau, apresentam idade mental de cinco anos”:
— Precisamos investir na base para, pelo menos, equilibrar a idade mental com a idade cronológica.
Como não era concebível uma greve nacional de crianças, defendia ardorosamente um movimento em defesa da grande massa anônima de crianças que estão longe de ter o poder de pressão dos estudantes universitários. Extraindo o que havia de fina ironia nisso, ele parecia ter falado a sério quando se colocou a favor da universidade paga com um fervor nunca visto:
— Universidade de graça é um conto-do-vigário que as crianças ricas passam nas crianças pobres. Para o pobre a universidade gratuita nada representa: ele não pode freqüentá-la.
Em sua opinião recém-cunhada, a universidade deveria ser paga, cabendo ao governo estabelecer um sistema de bolsas a fundo perdido para os estudantes carentes. Os recursos para isso viriam dos alunos ricos, dos que podiam pagar. O que ele não admitia era ver “o operário comprar um sapato e pagar imposto para o erário público sustentar o rico na universidade”. Ia mais longe em sua catilinária contra os privilégios dos que podiam freqüentar cursinhos preparatórios e abocanhar as vagas disponíveis. Recomendava observar os estacionamentos das universidades públicas, “cheios de carros do ano”:
— Não há vaga que chegue para os alunos filhos de rico, que reivindicam estudo de graça e comida a 12 cruzeiros, mas que à noite, depois de reivindicar, pegam seus carros e vão tomar uísque importado.
Distorção que só seria modificada, dizia, no dia em que as classes ricas não mais tivessem o poder de pressão que exerciam sobre o povo, sobre a imprensa e sobre a opinião pública. Mas, ao mesmo tempo, atacava a esquerda pelos flancos, imputando-lhe a continuidade das injustiças que ela própria apontava. Era preciso acabar com “a demagogia barata das esquerdas de elite, essas esquerdas escocesas que moram em mansões, tomam uísque e ditam regras”.
— Por isso é que respeito o comunista autêntico e detesto o ‘esquerdista escocês’.
Não eram opiniões fadadas a fazer prosélitos na universidade. Professores que iam vê-lo ouviam calados essas opiniões de bem pouca receptividade no meio, onde a tese do ensino superior público gratuito era e continua sendo uma lei pétrea. A verdade é que Zeferino já não precisava fazer concessões a quem quer que seja – sentia-se livre para dizer o que bem entendia. Não teria muito tempo mais para isso. Sua única função pública era a de parecerista do Conselho Federal de Educação. Seu último gesto formal foi negar credenciamento a dois cursos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Nos últimos tempos ele havia perdido sua antiga agilidade e visivelmente definhava”, escreveu José Nêumanne no necrológio que estampou no Jornal do Brasil em 9 de fevereiro de 1981, o dia seguinte à sua morte. Nesse dia, a Unicamp amanheceu diferente: já não era a mesma sem o mandarim no seu bunker, ainda que na condição de eminência parda. Sem o olhar vigilante de Zeferino, e no vazio que deixava, marchava a passos rápidos para a maior de suas crises. (E. G.)
1 Adunicamp: em defesa da universidade, Editora da Unicamp, 1991.
2 Jornal de Hoje, Campinas, 11/9/1980.
Continua na próxima edição.