Ferramentas podem auxiliar educadores, terapeutas
corporais, fonoaudiólogos e crianças com surdez
LUIZ
SUGIMOTO
O
que é o ser humano sem a comunicação,
sem a formação dos conceitos que chegam pelo
ouvido? Refletimos muito pouco sobre esta questão
e menos ainda sob o ponto de vista das pessoas surdas, como
observa a professora Teumaris Regina Buono Luiz, que acaba
de obter o doutoramento na área de atividade física,
adaptação e saúde junto à Faculdade
de Educação Física (FEF) da Unicamp.
"A maior parte dos conceitos que criamos acerca das
coisas é fortalecida pela linguagem verbal. Essa
entrevista só está sendo possível porque
recorremos à semântica, ao jogo simbólico
da comunicação, o que inclui o ritmo da fala
para deixar mais claro o que queremos transmitir".
A pesquisa de doutorado, orientada pelo professor Paulo
Ferreira de Araújo (FEF) e viabilizada em parceria
com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), resultou
em dois softwares visando ao desenvolvimento do senso rítmico
dos surdos, uma rica contribuição a educadores,
terapeutas corporais, fonoaudiólogos e crianças
com surdez de severa a profunda. "Há grande
preocupação em trabalhar nesse campo, pois
além da carência de ritmo nas ações
motoras (tema afeito à área de educação
física), existe uma implicação no ritmo
da fala (o que diz respeito ao fonoaudiólogo), embora
a oralização seja apenas uma das facetas na
comunicação do surdo".
Atuando junto à comunidade de surdos em Curitiba
desde 1997 e, portanto, apta a mensurar a necessidade de
amenizar este déficit com relação ao
ritmo, Teumaris Luiz instiga o ouvinte à reflexão.
"O ritmo é um aspecto extremamente importante
nas ações do ser humano e da natureza. Os
fenômenos são cíclicos (rítmicos)
e tornam possível a adaptação das espécies
às mais diversas tarefas. Nós ouvintes, desde
o ventre materno, desenvolvemos um contato íntimo
com o ritmo ao redor, e é através da acuidade
auditiva que esta exploração acontece".
Na primeira infância, diz a pesquisadora, esta estimulação
cresce proporcionalmente às experiências sensoriais.
O surdo, seja pela ausência ou diminuição
drástica de um dos canais sensoriais (o auditivo),
não possui o senso rítmico tão desenvolvido,
o que se dá normalmente na criança ouvinte.
"Mesmo no surdo oralizado - que consegue emitir palavras
e formular frases - percebemos a voz gutural e não-rítmica.
Como o ritmo está inserido em todas as ações
motoras, a não estimulação do senso
rítmico do surdo tem implicações diretas
também sobre seus movimentos e sua noção
espaço-temporal".
Projeto original
A autora da tese lembra que duas formas tradicionais de
aquisição do ritmo pelo surdo são as
práticas motoras sobre tablados e o estímulo
da percepção colocando as mãos na caixa
de som. Como projeto de mestrado em 2001, ela idealizou
e levou a campo o Programa de Atividade Rítmica Adaptada
(PARA), baseado em método proposto pelo professor
Iverson Ladewig, da UFPR. "A ideia é estimular
os sentidos remanescentes do surdo, que são a visão
e o tato, para que ele perceba o ritmo ditado no ambiente
(a música tocada) em seu parâmetro 'velocidade',
por meio de dicas visuais".
Os estudos pilotos foram realizados no Cepre (Centro de
Estudos e Pesquisas em Reabilitação "Gabriel
Porto") da Unicamp. Em um quadro imantado foram dispostos
oito ímãs com desenhos de tartarugas para
compreensão do ritmo lento e de coelhos para o ritmo
rápido. Tocando cada figura com a mão, na
velocidade do ritmo executado no ambiente, a pesquisadora
pedia às crianças surdas que realizassem movimentos
seguindo as dicas visuais. "Elas passaram a compreender
melhor as noções de ritmo e a realizar movimentos
corporais de forma livre, sem ter que copiar um instrutor".
Teumaris Luiz aplicou o PARA junto a alunos do ensino fundamental
com surdez de severa a profunda, por um período de
quatro meses, dentro do Centro de Reabilitação
Sidnei Antônio (Cresa). "Apesar do progresso,
as crianças continuavam dependendo da habilidade
do professor na execução do padrão
rítmico ambiental. Daí, a proposta da pesquisa
de doutorado de desenvolver um método que oferecesse
maior autonomia, em que o próprio surdo visualizasse
o ritmo externo, sem ajuda de um intermediador".
Batidas e vibrações
Os dois softwares que frutificaram da tese foram elaborados
em parceria com o Grupo Imago (da UFPR), coordenado pelos
doutores Olga Regina Pereira Belon e Luciano Silva, e com
a colaboração dos bolsistas André Mallaguini
e Lílian Mohira. O primeiro software, chamado BPM
Counter, é igualmente baseado nas dicas visuais para
orientar as ações motoras rítmicas
do surdo.
"Na tela do computador surgem oito quadrados pretos,
que são coloridos em sequência de vermelho
ou azul, dependendo do andamento (velocidade) solicitado
no campo descrito em BPM. Conforme o quadrado vai sendo
pintado, a criança pode começar batendo os
pés direito e esquerdo no chão, dificultando-se
as ações paulatinamente, até deixá-las
livres, ainda assim, no ritmo externo escolhido", explica
a pesquisadora.
O segundo software, na versão VPM (vibrações
por minuto), surgiu da proposta de um surdo que percebeu
um evento rítmico gerado pelo seu telefone celular
no modo vibracall. "É uma ferramenta para ser
instalada em celulares, por meio da qual se acessa um gráfico
que faz o aparelho vibrar no ritmo tocado no ambiente. As
crianças podem segurá-lo na mão ou
juntá-lo ao peito para sentir a vibração
mais intensamente".
Teumaris Luiz observa que a aquisição do
ritmo para uma ação motora é uma atividade
estreitamente interligada com a dança e que, para
os surdos, torna-se bastante interessante contar com softwares
que exploram o sentido tátil e o visual para extrapolar
os movimentos simples. "Antes, o surdo que queria dançar
ia até a caixa de som sentir a vibração
da música e, quando voltava, a informação
já estava perdida".
A autora da tese lembra que, na década de 1990,
em várias iniciativas para aproximar os surdos da
dança, uma pessoa servia de modelo, em tempo integral,
executando os movimentos em algum lugar em que eles pudessem
visualizá-la. "Isso diminuía a autonomia,
que com o software é maior, permitindo ao surdo fazer
seu próprio movimento sem perder o ritmo".
Repercussão
A pesquisa de campo com os softwares foi realizada na Escola
de Educação Especial Centrau, mantida pela
Astrau (Associação Santa Terezinha de Reabilitação
Auditiva) em Curitiba. "Procuramos ouvir a opinião
dos professores, segundo os quais as crianças passaram
a se perceber como integrantes de um grupo, participando
de atividades coletivas e apresentando melhor noção
do tempo para executá-las - esta noção
de pertença a um grupo e de realizações
conjuntas são fortemente estimuladas pelo ritmo.
A fonoaudióloga, por sua vez, constatou sensível
melhora no ritmo e no entendimento da noção
da pausa na fala dos alunos."
Desde seu início em 2001, o projeto de Teumaris
Luiz vem repercutindo no país e no exterior, como
nos renomados congressos de atividade física adaptada
de Oregon (EUA) e Verona (Itália). Contudo, a autora
espera mais, depois do estudo de doutorado. "Acredito
que a extensão desta pesquisa depende de um projeto
com um número maior de pessoas avaliando a eficácia
dos dois softwares, possibilitando uma maior divulgação
das ferramentas e a sua implantação nos grandes
centros de estudos dirigidos à comunidade surda".
Duas renomadas professoras do Cepre, Maria Cecília
Marconi Pinheiro Lima e Tereza Ribeiro de Freitas Rossi,
deram seu aval ao trabalho de Teumaris Luiz e participaram
da banca avaliando a tese de doutorado quanto à temática
da surdez. O BPM Counter está disponível no
sítio do Grupo Imago na Internet: www.imago.ufpr.br/linuxacessivel.html.
Quanto ao VPM Counter, a ideia é entrar em contato
com empresas de telefonia para discutir sua disponibilização
nos aparelhos, bem como a ampliação do acesso
ao software pela Web (veja texto nesta página).
Tecnologia
facilita
acessibilidade
No
último Censo, no ano de 2000, o IBGE estimou a população
com algum grau de deficiência auditiva em 5,7 milhões
de brasileiros. Hoje, a maioria é usuária
da rede Web e possui telefone celular. "Para os surdos,
a Internet representou um enorme avanço em termos
de comunicação, lazer e troca de experiências
com membros da comunidade e ouvintes. E o telefone celular
também já é uma realidade para eles,
devido à possibilidade de receber e enviar mensagens,
entre outros usos", afirma a professora Teumaris Regina
Buono Luiz.
A pesquisadora admite que a disponibilização
do software VPM Counter nos celulares não é
uma medida simples, já que envolve um custo para
o usuário que precisa ser eliminado. Entretanto,
a Lei de Acessibilidade (10.098, de 1994), servirá
como argumento na discussão dos trâmites com
as empresas de telefonia. "A lei propõe o desenvolvimento
tecnológico orientado à produção
de ajudas técnicas para as pessoas portadoras de
deficiência. Fomentar pesquisas para a melhoria de
vida desta população é, portanto, legal,
constitucional e urgente".
De acordo com a especialista em atividade física
adaptada à saúde, operadoras de telefonia
fixa já disponibilizam aparelhos especiais para deficientes
auditivos, distribuídos por diversos locais públicos.
Este serviço, disponível 24 horas por dia
pelo número 1402, permite fazer uma ligação
entre um aparelho de telefone qualquer e o aparelho especial,
ou vice-versa, em tempo real e sem qualquer acréscimo
à tarifa comum. "Na central, uma atendente lê
as mensagens digitadas, repassando-as para o ouvinte, e
digita as respostas de volta ao surdo, que as lê em
seu monitor. Quanto ao celular, é certo que os surdos
não usam o aparelho para conversação,
como nós, mas já presenciei um surdo oralizado
falando ao telefone e esperando um retorno com mensagens
de texto".
Teumaris Luiz observa que, neste mundo globalizado, as
novas tecnologias fazem parte do cotidiano dos indivíduos
desde a mais tenra idade. "Crianças de 4 anos
manipulam essas máquinas com a destreza que acertávamos
as casas da 'amarelinha' com os sacos de feijão.
O surdo não está à margem destas vivências.
Pensar em autonomia e em acessibilidade do surdo remete-nos
a pesquisar sobre estas possibilidades, sem esquecer a importância
da 'amarelinha' na formação do acervo motor
da criança, mas contextualizando e direcionando a
pesquisa para o mundo tecnológico, que se abre para
o movimento corporal do surdo a cada contribuição
científica".