Pesquisadores da Unicamp
vêm obtendo resultados promissores no desenvolvimento de
biomateriais com fibroína de seda, que já começam a ser
testados no Instituto do Coração (InCor) da USP para proteger
válvulas cardíacas da calcificação, e na Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp) para a cultura de células e tecidos
in vitro. A fibroína de seda ainda é pouco estudada
na área de biomateriais, inclusive mundialmente, e motivou
uma linha de pesquisa da Faculdade de Engenharia Química
(FEQ) que corre há apenas quatro anos.
Segundo a professora Marisa Masumi
Beppu, da FEQ, a origem dos estudos que ela coordena está
na necessidade de aumentar a vida útil e a eficácia das
válvulas cardíacas, que geralmente são recortadas do pericárdio
(tecido que reveste o coração) bovino ou suíno e implantadas
assim, diretamente. “A maior causa de falhas nas válvulas
é a calcificação. A idéia inicial do InCor era desenvolver
um processo de secagem do material orgânico, permitindo
seu armazenamento até o transplante, mas o resultado foi
uma superfície extremamente rugosa que favorece a calcificação”.
Surgiu daí um projeto temático financiado pela Fapesp visando
meios de recobrir o pericárdio com biopolímeros para protegê-lo
da calcificação. Dele participam a Faculdade de Ciências
Farmacêuticas da USP (com os professores Bronislaw Polakievicz
e Ronaldo Pitombo), InCor, Unicamp e Instituto de Pesquisas
Energéticas e Nucleares (IPEN). “Um biopolímero com propriedades
mecânicas e químicas adequadas e que evite a rugosidade
vai dar maior sobrevida à válvula cardíaca. Na FEQ, testamos
também a quitosana, mas os estudos evoluíram com a fibroína
de seda”.
Marisa Beppu orientou o primeiro estudo brasileiro focando
a fibroína como biomaterial, no mestrado da pesquisadora
Grinia Michelle Nogueira, que defendeu doutorado sobre o
mesmo tema no início deste ano e agora faz o pós-doutorado
no MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA). Suas
pesquisas resultaram em patentes do método de isolamento
da fibroína e de uma membrana de seda porosa junto ao Instituto
Nacional da Propriedade Industrial (Inpi).
A docente da Unicamp explica que o fio de seda é composto
por duas proteínas: a fibroína, responsável pela resistência
mecânica, e a sericina, espécie de goma que faz a liga
entre fios. Enquanto a literatura descreve processos demorados
e complicados para produzir membranas de fibroína, Grinia
Nogueira conseguiu reduzir o tempo de separação de quatro
dias para meia hora, permitindo o uso do material em escala
industrial, e sem recorrer a elementos tóxicos, o que assegura
a biocompatibilidade.
Além da membrana de seda porosa, interessante por possibilitar
a semeadura de células em sua superfície, também foi produzida
uma membrana densa – a que está em testes como cobertura
das válvulas cardíacas de pericárdio animal. “Ainda não
temos resultados conclusivos in vivo do InCor, que está
avaliando a reação do material recobrindo implantes feitos
em carneiros. O que posso afirmar é que os nossos ensaios
in vitro indicaram uma diminuição expressiva da calcificação”.
No dia anterior a esta entrevista, Marisa Beppu recebeu
mensagem dos pesquisadores da Unifesp informando que estavam
iniciando os testes de crescimento celular sobre a membrana
de seda porosa. É um trabalho que se dá no contexto do INCT
– Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia – em Biofabricação
(Biofrabris), lançado recentemente pelo Ministério da Ciência
e Tecnologia (MCT). “Eles tentarão semear células-tronco
retiradas de adultos nos poros da membrana. A expectativa
é grande em relação a esse resultado”.
A
professora e sua equipe, futuramente, esperam produzir uma
parede de coração ou uma pele, mas há dentistas no projeto
interessados em fazer crescer, por exemplo, um dente, que
possui várias camadas de tecidos diferentes. “O que a engenharia
tecidual busca hoje são os chamados scaffolds –
matrizes tridimensionais cheias de poros para as células
crescerem. O sonho de todo pesquisador da área é colocar
este suporte com as células no interior de um pequeno biorreator
e ver sair uma orelha ou nariz”, brinca.
Seguimento
Raquel Farias Weska, que está iniciando o doutorado, seguiu
os passos de Grinia Nogueira e dedicou parte do seu mestrado
ao estudo da reação das membranas de seda à esterilização.
Um grande problema nos biopolímeros é que a maioria não
tolera temperaturas acima de 60 graus. “As membranas passaram
por cinco métodos de esterilização usados comumente e, basicamente,
não ocorreu degradação; apenas uma mudança na conformação
molecular da fibroína, o que pode ser uma característica
interessante, dependendo da aplicação”.
As membranas resistiram inclusive à autoclavagem, processo
em que o material é submetido a vapor com temperatura de
121ºC e que dura de 15 a 30 minutos – e, por isso, mais
utilizada para a esterilização de instrumentos cirúrgicos.
“Se colocarmos o pericárdio bovino ou suíno na autoclave,
ele vai cozinhar, literalmente. As membranas de fribroína
mostraram-se realmente versáteis”, observa a professora
Marisa Beppu.
Na outra parte do mestrado concluído no início do ano,
Raquel Weska estudou a deposição de fosfato de cálcio nas
membranas densa e porosa, avaliando sua possível aplicação
como biomaterial da parte óssea, posteriormente in vivo.
“Agora, no doutorado, vou continuar pesquisando a fibroína
de seda, provavelmente na área de scaffolds para engenharia
tecidual”.
Blendas
Mariana
Agostini de Moraes, também integrante do grupo de pesquisa,
está começando o mestrado no propósito de misturar a fibroína
com o alginato (extraído de algas), outro biopolímero que
apresenta grande potencial para o crescimento de tecidos.
“A mistura é uma tentativa de conjugar propriedades das
duas proteínas. Já existem curativos comercializados com
o alginato, devido à sua resposta bastante satisfatória
na cicatrização de feridas, assim como a fibroína. Juntas,
a resposta pode ser ainda melhor”.
Para produzir as blendas, Mariana Moraes vem misturando
as soluções dissolvidas e, também, incorporando fios de
fibroína à solução de alginato a fim de aprimorar a resistência
mecânica. A associação da fibroína de seda com outros biopolímeros
é uma área de pesquisa praticamente inédita e, de acordo
com Marisa Beppu, os resultados têm sido animadores. “É
possível chegar a um curativo com boa resistência e que
contenha um princípio ativo que acelere a regeneração”.
Mariana Ferreira Silva, aluna de iniciação científica,
vai cuidar de outro viés da linha de pesquisa mesclando
a fibroína com plastificantes. O objetivo é aumentar a plasticidade
da membrana de seda que, por ser densa, se rompe quando
esticada. Com a propriedade de deformação que os plásticos
possuem, a aplicação da fibroína de seda se tornaria mais
interessante.
A professora Marisa Beppu atenta que estas pesquisas, em
boa parte, ainda se limitam a desbravar as propriedades
que a fibroína pode oferecer, resultando em material para
testes in vitro ou in vivo em instituições parceiras. “Tudo
isso nasceu em 2005, mas já notamos a boa repercussão em
congressos no exterior. Acredito que logo teremos muitos
pesquisadores se embrenhando nos componentes da seda”.
Aranhas
Em sua dissertação de mestrado, a pesquisadora Raquel Weska
conta que as sedas produzidas pelo bicho-da-seda domesticado
(Bombyx mori) e por aranhas do gênero Nephila,
como a Nephila clavipes, são as mais estudadas
no intuito de compreender o mecanismo de processamento e
explorar as propriedades destas proteínas como biomaterial.
Elas apresentam propriedades mecânicas surpreendentes, além
de serem biocompatíveis e modificáveis quimicamente.
A professora Marisa Beppu trabalhava em uma multinacional
da área química, quando a empresa tentou reproduzir a fibroína
de aranha em laboratório. “Na época, só se falava em fibroína
e suas propriedades. Imaginavam uma corda feita de teia,
superresistente, mas acabaram desistindo porque é muito
difícil replicar o que a aranha faz naturalmente: alinhar
todas as moléculas de maneira a dar resistência mecânica
ao material”.
De
qualquer forma, a natureza das aranhas inviabiliza seu confinamento
e a extração de fibroína em escala. Já os fios do bicho-da-seda
são utilizados comercialmente para suturas biomédicas há
décadas, e na produção têxtil há séculos, graças a grandes
safras da atividade que ganhou até denominação própria:
a sericultura, facilitada pelo fato de que as larvas poderem
ser mantidas em altas densidades.
Dados levantados por Raquel Weska apontam que a produção
mundial de seda subiu de cerca de 100 mil toneladas em 2000
para 150 mil toneladas em 2008, sendo que a China responde
por 70% do total. “Embora venha bem abaixo, o Brasil ocupa
o segundo lugar, tendo o Paraná como maior produtor, seguido
de São Paulo e Mato Grosso do Sul”.
Afora a área médica, a fibroína de seda está praticamente
limitada à área têxtil, onde o consumo já havia caído consideravelmente
quando o náilon invadiu o mercado. Entretanto, na opinião
de Marisa Beppu, a baixa produção não seria um fator limitante,
caso os biomateriais em estudo sejam viabilizados economicamente.
“Certamente, surgiriam várias cooperativas voltadas a uma
cultura relativamente simples, que pede basicamente as folhas
da amoreira e as larvas”.
Em seu laboratório na FEQ, a docente recebe seda de uma
cooperativa de Bastos (SP), mas afirma que as membranas
de fibroína podem ser produzidas apenas com o que seria
considerado como refugo do produto. “Se a indústria têxtil
necessita de fios longos para a fiação, nós preferimos justamente
as rebarbas para solubilizá-las e realizar os demais processos
de laboratório ”.