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TRISTES TRÓPICOS
Casos de depressão entre
caiçaras do litoral norte
são associados às condições socioambientais
O litoral norte de São Paulo compreende uma faixa territorial
de exuberante beleza natural que abrange os municípios de
Bertioga, São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba.
Cercada pela Mata Atlântica, a região reúne mais de uma centena
de praias, algumas ainda selvagens, além de cachoeiras e cursos
d’água, entre outras riquezas biológicas. É impossível não
associar esse magnífico conjunto a um pedaço de paraíso terreno.
Contudo, o que os olhos não veem faz o corpo e a alma padecerem.
O deslumbrante e inspirador recanto desmascara-se para revelar
um cotidiano de restrições e péssimas condições de vida que
aflige não só a saúde física, mas também a saúde psíquica
dos moradores de suas cidades e vilarejos, conforme constata
estudo multidisciplinar conduzido pela socióloga Sônia Regina
da Cal Seixas, da Unicamp. Financiado pela Fapesp, o trabalho
associa às condições socioambientais da região o significativo
número de casos diagnosticados como depressão em comunidades
de pescadores artesanais e se insere numa inovadora abordagem
que busca compreender o sofrimento e demais transtornos psíquicos
enquanto manifestações sociais, e não somente como enfermidade
psicopatológica, propondo um outro olhar para as chamadas
“dores da alma”.
Quando
se menciona ambiente, do ponto de vista sociológico, esclarece
Sônia, tem-se como referência as transformações socioambientais
recentes a que as sociedades contemporâneas estão submetidas,
considerando-se nessa perspectiva as mudanças que os seres
humanos têm promovido no tecido social: uso indiscriminado
dos recursos naturais, aumento de poluição ambiental, desmatamento,
insegurança na produção de alimentos, bem como as alterações
no perfil das relações de trabalho, nas relações sociais,
e o crescimento da violência urbana, entre outras.
De acordo
com ela, os resultados dos trabalhos que vem conduzindo há
duas décadas permitem constatar que tais transformações têm
um significado especial para o indivíduo e acabam por afetar
de alguma forma a sua qualidade de vida, seja em suas condições
objetivas (moradia, transporte, emprego, salário), seja em
suas condições subjetivas (culturais, afetivas, sexuais, espirituais,
valores e crenças).
Supõe-se
também que aquelas mudanças estejam relacionadas com situações
significativas que promovem o adoecimento humano. Contudo,
observa Sônia, na maioria das vezes a literatura corrente
as relaciona apenas ao adoecimento físico (como doenças cardiovasculares,
desnutrição, doenças do aparelho respiratório, doenças musculares),
não se permitindo aprofundá-la também em relação ao sofrimento
mental.
Conforme
ela pondera ainda, o fenômeno da depressão está atrelado,
primordialmente, à abordagem psiquiátrica, excluindo outras
possibilidades analíticas que, em última instância, refletem
na atuação e conduta dos profissionais de saúde para com o
paciente depressivo.
“Considerações
de ordem socioambiental e cultural têm pouco espaço de contribuição,
postergando as análises psicanalíticas, e mesmo sociológicas
para um lugar pouco valorizado”, enfatiza Sônia, que é doutora
em Ciências Sociais e pesquisadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp.
Via crucis
Mudar esse quadro, no sentido de situar as “dores da alma”
como uma categoria capaz de auxiliar na compreensão da realidade
e complexidade da vida contemporânea, tem sido o compromisso
da pesquisadora desde que despertou para a temática ao analisar,
em 1990, ainda em seu mestrado, os impactos da implantação
do pólo petroquímico da Petrobras (Replan) na saúde da população
do município de Paulínia (SP).
Ao
longo dos seis anos seguintes, durante o doutorado, constatou
a ocorrência de diagnósticos de depressão e outros sofrimentos
psíquicos oriundos de transformações socioambientais entre
moradores de outras quatro cidades de São Paulo (Campinas,
Sumaré, Piracicaba e Bragança Paulista), particularmente relacionados
à industrialização, migração e degradação dos rios integrantes
da bacia do Piracicaba, Capivari e Jundiaí.
O enfoque primordial de seus
estudos, explica Sônia, adveio da observação de usuários de
serviços básicos de saúde que se repetiam exaustivamente nas
consultas com sintomas mórbidos de dores, sensações corpóreas,
insônia, tristeza, medo, dentre outros, “refletindo em seus
corpos uma dor do existir social, traduzido pela ausência
de expressão verbal e política, e a inexistência de um projeto
social e coletivo de vida”.
Para esses usuários, prossegue
a socióloga, a trajetória não foi nada fácil, pois representou
uma penosa via sacra por várias especialidades médicas na
busca de tratamento, até serem por fim acolhidos na área de
saúde mental, com todo o significado que isso implica: “alta
medicalização, surtos psicóticos e internações hospitalares,
bem como a perda de referências importantes para o viver”.
Em 2002, ela redirecionou
o foco de suas pesquisas, buscando identificar a presença
de depressão entre os moradores de um lugarejo ao qual dificilmente
se relacionaria o transtorno: Itaipu, uma bucólica e paradisíaca
vila de pescadores artesanais no litoral fluminense. Mas encontrou
um número significativo de pessoas residentes nesta comunidade
diagnosticadas pelo serviço de saúde pública como portadores
de depressão, síndrome do pânico e outros sofrimentos psíquicos.
Os mesmos achados se repetiram em diagnósticos de médicos
psiquiatras da rede pública quando desenvolveu, dois anos
depois, estudo semelhante em quatro municípios do litoral
norte paulista.
“É comum na literatura corrente
associar a presença de depressão ao tecido urbano industrial.
No entanto, ao confirmar sua presença de forma significativa
em comunidades litorâneas, as pesquisas indicaram que os estados
depressivos e outros transtornos mentais tornaram-se expressivos
em diversificados grupos sociais e não estão mais restritos
a comunidades eminentemente urbanas, mas sim bastante disseminados
na sociedade contemporânea sem distinção de espaço geográfico”,
argumenta Sônia, lembrando que os grupos sociais escolhidos
para os estudos estão submetidos a transformações socioambientais
bastante acentuadas nos últimos anos.
“Se por um lado, em Paulínia,
encontra-se um pólo petroquímico que impõe limites expressivos
no cotidiano da população, como poluição ambiental oriunda
das indústrias e violência urbana, dentre as mais importantes,
em Itaipu percebe-se uma comunidade desterritorializada, impedida
de viver da pesca artesanal, seja em função da agressiva especulação
imobiliária que assola a região oceânica na qual a colônia
se insere, ou mesmo em função da presença marcante do narcotráfico
na região”, ilustra a pesquisadora do Nepam.
Caiçara expulso
Assim
como em Itaipu, a região do litoral norte paulista vem passando
por profundas e significativas mudanças socioambientais decorrentes
da explosão do mercado imobiliário, com a instalação da indústria
do turismo veranista. Tal fator, explica Sônia, deflagrou
conflitos entre os moradores nativos (caiçaras) e os estrangeiros
(turistas), que se apropriam do espaço e se apossam do lugar,
trazendo novos valores e, muitas vezes, abafando ou modificando
valores tradicionais.
Tais impactos, mostra a investigação
por ela coordenada, se refletem na degradação da qualidade
ambiental e descaracterizam o modo de vida de seus moradores
nos aspectos econômico (afetando a pesca artesanal e a agricultura
de subsistência), cultural e social. A especulação imobiliária
trouxe a reboque outro agravante: a migração. Atraídos por
empregos na construção civil, na última década, um grande
número de migrantes, provenientes sobretudo do norte de Minas
e sertão da Bahia, veio a ocupar a região de forma desordenada,
originando problemas de moradia – devido à ocupação irregular
das encostas –, saneamento básico, estrangulamento dos serviços
públicos (normalmente precários), e, com o declínio do mercado
imobiliário, de desemprego.
Emblemática da deterioração
da qualidade de vida é a diminuição da população de pescadores,
como resultado da desvalorização da atividade pesqueira. O
tradicional caiçara, espoliado de seu modo habitual de produção,
e, principalmente de sua terra, viu-se obrigado a procurar
novos meios de sobrevivência, como empregos domésticos (caseiros
e vigias), na construção civil e em pequenos comércios regionais.
“Essas transformações geram
um impacto significativo na qualidade de vida das comunidades,
já que existe uma íntima relação entre a pessoa e seu habitat.
No caso das famílias pobres, o sentimento de ser marginal,
de estar fora dos padrões de moradia e de consumo decorrentes,
é um fator-chave para que a segregação produza efeitos profundos
de desintegração social, conduzindo a um grande desgaste psíquico
e emocional”, afirma Sônia.
Desilusão
O
seu mais recente estudo, financiado pela Fapesp e realizado
com a colaboração de João Luiz de Moraes Höeffel (professor
da USF, em Bragança Paulista, que tem trabalhado outros aspectos
socioambientais na região), investigou, entre 2003 e 2008,
a qualidade de vida dos moradores de dois bairros rurais das
cidades de Nazaré Paulista e Vargem (SP).
Os municípios, assim como
cinco outros pertencentes à Área de Preservação Ambiental
(APA) do Sistema Cantareira (Atibaia, Bragança Paulista, Joanópolis,
Mairiporã e Piracaia) sofreram as consequências da construção
dos reservatórios do sistema de abastecimento de água para
a cidade de São Paulo, entre 1969 e 1983. Na ocasião foram
inundados casas de sitiantes, extensas áreas agrícolas, capelas
e diversos tipos de comércio, provocando dessa forma uma intensa
reconfiguração da estrutura econômica, da paisagem e das relações
socioculturais. Houve ainda na região a ampliação das rodovias
D. Pedro I e Fernão Dias.
“Acredita-se que esses eventos
causaram uma intensa ruptura social, ambiental, econômica
e cultural através de extraordinárias mudanças impostas à
região, alterando tanto o ambiente, quanto a qualidade de
vida da população”, aponta Sônia.
Segundo ela, muitas das diferentes
maneiras que seus moradores têm encontrado para lidar com
as transformações podem ocorrer por meio do sofrimento psíquico,
devido à presença de um número assustador de diagnósticos
de depressão apurado nos prontuários de atendimento da área
de psicologia de adultos, em Nazaré Paulista: nada menos que
24% da população adulta de usuários do serviço, naquele período.
A estatística média mundial é de 3% a 10% nos serviços de
saúde primários.
Para Sônia, os achados dos
estudos permitem consolidar a hipótese de que as transformações
socioambientais, principalmente as ocorridas nas quatro últimas
décadas, têm sido fundamentais e contribuintes do quadro de
transtornos psíquicos que se manifesta na população e que
acaba sendo, por fim, diagnosticado e tratado clinicamente
como depressão. As investigações pretendem, portanto, ser
uma contribuição importante para os trabalhos nas áreas de
teoria social, sociologia ambiental e de saúde mental, já
que essa morbidade, a despeito de sua significativa importância
no contexto contemporâneo, carece de outras interpretações
interdisciplinares.
Artigos
Barbosa S. R. C. S. Transformações Sócio-culturais
Contemporâneas e Algumas Implicações nos Diagnósticos
na Área de Saúde Mental. Revista Mudanças
(ISSN 0104-3269), volume 16, n. 1, 2008: 1- 9.
Barbosa S. R. C. S. O discurso da ciência e as percepções
de profissionais de saúde acerca da depressão no contexto
das transformações socioambientais culturais contemporâneas.
Teoria & Pesquisa (ISSN 0104-0103), PPG-CS,
UFSCar, São Carlos, Vol 17, n. 1, jan./jun., 2008:
97-119.
Barbosa S. R. C. S. Subjetividade e Complexidade social:
contribuições ao estudo da depressão. PHYSIS,
Revista de Saúde Coletiva, IMS – UERJ (ISSN 0103-7331),
Rio de Janeiro, vol. 16, número 2, 2006.
Barbosa S. R. C. S. Complexidade social e Subjetividade:
considerações sociológicas acerca da depressão.
Teoria e Pesquisa (ISSN0104-0103), PPG-CS, UFSCar,
São Carlos, Vol 1, n. 48, jan./jun., 2006: 105-132.
Barbosa S. R. C. S. Identidade social e dores da alma
entre pescadores artesanais em Itaipu, RJ. Revista
Ambiente & Sociedade (ISSN: 1414-753X), Vol.
VII, n. 1, jan/jul de 2004.
Barbosa S. R. C. S. e Begossi, A. Fisheries, Gender
and Local
Changes at Itaipu Beach, Rio de Janeiro, Brazil: an
individual approach. Multiciência, Revista Interdisciplinar
dos Centros e Núcleos da Unicamp, n. 2, 2004.
Projetos:
Contribuições a um olhar diferenciado sobre sociedades
complexas: a qualidade de vida e as transformações socioambientais
nos pólos petroquímicos de Duque de Caxias (RJ) e Paulínia
(SP).
Financiamento: Faep-Unicamp
Qualidade de vida em sociedades complexas: estados depressivos
entre trabalhadores da indústria e pescadores artesanais
Financiamento: Fapesp
Ambiente, subjetividade e complexidade: um estudo sobre
depressão no litoral norte paulista.
Financiamento: Fapesp
Qualidade de vida e complexidade social na APA Cantareira,
SP: um estudo sobre degradação socioambiental e subjetividade.
Financiamento: Fapesp
Coordenação:
Sônia Regina da Cal Seixas
Unidade: Núcleo de Estudos e Pesquisas
Ambientais (Nepam) Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) - Doutorado Ambiente e Sociedade (Nepam-IFCH)
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