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Discurso sincopado

Os integrantes do grupo Racionais MC’s, em foto de 1997: caixa de ressonância da periferia das grandes cidades (Foto: Luzia Ferreira/Folha Imagem)Pesquisa de doutorado desenvolvida pela linguista Ana Raquel Motta de Souza, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), concluiu que a enunciação – ato ou efeito de manifestar-se por escrito ou oralmente – contida nas letras das músicas, no gestual e na vestimenta do grupo Racionais MC´s, tem como principal característica transcender a própria composição. “É uma manifestação que foi feita para ser citada”, assegurou Ana Raquel. Com relação à música, a linguista afirma que tem ritmo, rima e estrutura em pequenos trechos. “No caso das composições dos Racionais, a enunciação é feita de dois em dois versos rimados”, disse.

Formado por Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador), Edy Rock (Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões), o Racionais MC´s foi criado no final da década de 1980. Grupo paulistano de rap e hip hop alternativo, cuja tônica é denunciar a desigualdade social brasileira, lançou seu primeiro trabalho em 1989 (Consciência Black, Vol. I). As letras das músicas falam sobre pobreza, crime, preconceitos racial e social, drogas e consciência política.

O interesse por estudar o grupo paulistano surgiu em 2003, quando a pesquisadora iniciou o mestrado. Para ela, o que mais a incentivou a realizar as investigações é a penetração dos Racionais em grandes e diferentes parcelas do público. Ela lembrou que, quando trabalhava com o grupo Mano a Mano, também da Unicamp, junto a crianças de rua, ficou impressionada com o fato de que elas, sem alfabetização, decoravam raps de cinco páginas. “Uma vez um menino fez um desenho e assinou Mano Brown, como se ele fosse o próprio líder dos Racionais MC´s”, contou. A experiência fez Ana Raquel entender como grupos de jovens se movimentam na cidade grande.

A linguista explicou que o grupo de rap tem um discurso que foge dos circuitos tradicionais da mídia e esse é um dos pontos interessantes do seu trabalho. Ana acredita que os discursos não se restringem ao campo das ideias, mas são também extensivos à prática. “Portanto, tudo o que os Racionais produzem faz parte deste discurso”. Para ela, é importante observar a maneira como os integrantes realizam a distribuição de seus discos, como fazem sua propaganda e como modulam a voz nas interpretações. “Foi essa enunciação que eu caracterizei”, disse. Fazendo uma comparação, Ana Raquel apontou que muitas pessoas costumam caracterizar essa enunciação como ideias. Porém, na opinião dela, são práticas discursivas que envolvem, por exemplo, a roupa e o jeito de se mexer, a atenção dedicada às rádios comunitárias e às entrevistas para a imprensa alternativa, na reivindicação de mais direitos para a população da periferia e na luta contra a discriminação racial, entre outras características.

Ana Raquel mostra que desde o início da trajetória do grupo, em 1988, até o momento que eles realmente “estouram” no mercado, em 1993, há uma ruptura na linguagem adotada. O lançamento do disco Raio-X do Brasil e o sucesso das músicas O Homem na Estrada e Fim de Semana no Parque marcam o momento em que eles assumem a sua origem – a periferia paulistana – e, consequentemente, a sua linguagem. A linguista disse que é “muito interessante” observar os primeiros trabalhos dos Racionais, quando há uma tentativa de usar uma linguagem rebuscada, assumindo um valor que é de outro. A partir de 1993, porém, eles adotam com tudo um discurso próprio, repleto inclusive de gírias. “Creio que vem daí a força mostrada por eles”, ressaltou.

Outro ponto abordado pela pesquisadora refere-se ao início do movimento hip hop em São Paulo, quando foram formados grupos de estudos ligados a algumas organizações não-governamentais de direitos da mulher e do negro. Frequentemente, por exemplo, os rappers destacavam a biografia de Malcom-X. Existem também outros estudos que irrompem nas letras das canções, como a crítica ao sociólogo Gilberto Freire e a sua tese da democracia racial. É possível, portanto, encontrar ecos de debates promovidos pela sociedade nesses grupos. “É possível encontrar uma capacidade incrível de observação, além da coragem de falar adotando-se uma variedade linguística própria. Os Racionais são uma influência muito grande para outros grupos de rap”, disse a pesquisadora.

Vestuário e gestual

A linguista acredita que o movimento hip hop se propagou muito pelo mundo através de clipes, e não só através da audição das músicas. O rap norte-americano é uma influência inegável nas roupas, no jeito de se movimentar e de dançar. Alguns rappers procuram fazer uma coisa mais brasileira, mas esse não é o caso dos Racionais. Eles não fazem a mistura com samba, com forró ou outro ritmo essencialmente brasileiro. “A influência deles é norte-americana mesmo, apesar de usarem muitas bases que foram produzidas no Brasil, mas sempre por egressos da black music, como Tim Maia, Cassiano e Jorge Benjor. Esse pessoal não se considera muito ligado à MPB, não tem esse vínculo. Suas bases musicais são norte-americanas, como ocorre com o hip hop do mundo todo. Algumas pessoas criticam isso, mas o que eles dizem é que é uma influência de periferia para periferia e, portanto, não seria um colonialismo, porque é uma união da mãe África pelo mundo”, argumentou.

Com relação ao preconceito ainda existente sobre o rap e a uma possível negativa quanto ao reconhecimento como estilo musical e como criação, Ana Raquel conta que isso está ligado ao fato de os rappers assumirem abertamente a linguagem da periferia. Por incluir gírias e palavrões, muitas pessoas consideram as obras pesadas e obscenas. Segundo a linguista, outro fator que alimenta a aversão ao estilo musical é a ligação que se estabelece entre o rap e a criminalidade. “Trata-se de uma ligação errônea”, falou Ana Raquel.

De acordo com a pesquisadora, se a pessoa prestar atenção na letra, perceberá que existe uma crítica aos jovens que se envolvem com a criminalidade, sobretudo com o tráfico de drogas. Mas, como às vezes o personagem é um jovem que foi assaltar, na hora que o cantor fala “eu sou ladrão, artigo 157”, se a pessoa ouvir apenas esse trecho poderá imaginar que os Racionais dão voz ao marginal. “Não que não deem, mas é preciso conferir o que acontece no final do rap e, normalmente, aquele ladrão é preso ou é morto”, esclareceu a linguista. “E quase sempre tem uma fala em prosa do próprio MC alertando para que os jovens não se envolvam com isso, caracterizando uma afirmação, em certa medida, até moralizante”.

Para a pesquisadora, um importante elemento motivador para a criação dessa nova linguagem, em um contexto de extrema pobreza, é a falta de identificação com as maneiras socialmente mais aceitas de expressão, que são mais comuns na escola. Na fala dos Racionais aparece muito esse tipo de afirmação: ia para a escola, mas não via sentido na escola. Consequentemente, não havia interesse em progredir nos estudos. “Esse é um ponto interessante observado no trabalho. A escola geralmente não gosta do rapper, mas o rapper gosta da escola. Em suas canções ele fala, ‘vai para a escola’”, observa.

Ana Raquel espera que sua pesquisa sirva para mostrar aos professores que a academia se interessa por esse tipo de manifestação, abrandando o preconceito existente. “Eu acho que o rap veio como uma forma com a qual eles se identificaram para se expressar, mais do que eles se identificavam, por exemplo, fazendo uma redação na escola”, ressaltou.

Contribuição

A linguista participa de alguns grupos que atuam na formação de professores. Trabalhou no projeto Teia do Saber e no Cefiel (Centro de Formação Continuada de Professores do IEL) e atualmente faz parte do Projeto Conexão Linguagem, que desenvolve material didático para o Ministério da Educação (MEC), além de ser regente de uma disciplina na Pós-Graduação Lato Senso do IEL, para professores da rede municipal de Campinas. Ela revela que sempre procura levar um pouco do rap para esses espaços. “Como esses professores são, em sua maioria, orientadores pedagógicos, esse trabalho certamente se multiplicará”.

 

Publicação:
Tese “Heterogeneidade e aforização: uma análise do discurso dos Racionais MCs”

Autor: Ana Raquel Motta de Souza

Orientador: Sírio Possenti

Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

 

 
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