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Discurso sincopado
Pesquisa
de doutorado desenvolvida pela linguista Ana Raquel Motta
de Souza, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), concluiu
que a enunciação – ato ou efeito de manifestar-se por escrito
ou oralmente – contida nas letras das músicas, no gestual
e na vestimenta do grupo Racionais MC´s, tem como principal
característica transcender a própria composição. “É uma manifestação
que foi feita para ser citada”, assegurou Ana Raquel. Com
relação à música, a linguista afirma que tem ritmo, rima e
estrutura em pequenos trechos. “No caso das composições dos
Racionais, a enunciação é feita de dois em dois versos rimados”,
disse.
Formado
por Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira), Ice Blue (Paulo
Eduardo Salvador), Edy Rock (Edivaldo Pereira Alves) e KL
Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões), o Racionais MC´s foi criado
no final da década de 1980. Grupo paulistano de rap e hip
hop alternativo, cuja tônica é denunciar a desigualdade social
brasileira, lançou seu primeiro trabalho em 1989 (Consciência
Black, Vol. I). As letras das músicas falam sobre pobreza,
crime, preconceitos racial e social, drogas e consciência
política.
O interesse
por estudar o grupo paulistano surgiu em 2003, quando a pesquisadora
iniciou o mestrado. Para ela, o que mais a incentivou a realizar
as investigações é a penetração dos Racionais em grandes e
diferentes parcelas do público. Ela lembrou que, quando trabalhava
com o grupo Mano a Mano, também da Unicamp, junto a crianças
de rua, ficou impressionada com o fato de que elas, sem alfabetização,
decoravam raps de cinco páginas. “Uma vez um menino fez um
desenho e assinou Mano Brown, como se ele fosse o próprio
líder dos Racionais MC´s”, contou. A experiência fez Ana Raquel
entender como grupos de jovens se movimentam na cidade grande.
A linguista
explicou que o grupo de rap tem um discurso que foge dos circuitos
tradicionais da mídia e esse é um dos pontos interessantes
do seu trabalho. Ana acredita que os discursos não se restringem
ao campo das ideias, mas são também extensivos à prática.
“Portanto, tudo o que os Racionais produzem faz parte deste
discurso”. Para ela, é importante observar a maneira como
os integrantes realizam a distribuição de seus discos, como
fazem sua propaganda e como modulam a voz nas interpretações.
“Foi essa enunciação que eu caracterizei”, disse. Fazendo
uma comparação, Ana Raquel apontou que muitas pessoas costumam
caracterizar essa enunciação como ideias. Porém, na opinião
dela, são práticas discursivas que envolvem, por exemplo,
a roupa e o jeito de se mexer, a atenção dedicada às rádios
comunitárias e às entrevistas para a imprensa alternativa,
na reivindicação de mais direitos para a população da periferia
e na luta contra a discriminação racial, entre outras características.
Ana Raquel
mostra que desde o início da trajetória do grupo, em 1988,
até o momento que eles realmente “estouram” no mercado, em
1993, há uma ruptura na linguagem adotada. O lançamento do
disco Raio-X do Brasil e o sucesso das músicas O Homem na
Estrada e Fim de Semana no Parque marcam o momento em que
eles assumem a sua origem – a periferia paulistana – e, consequentemente,
a sua linguagem. A linguista disse que é “muito interessante”
observar os primeiros trabalhos dos Racionais, quando há uma
tentativa de usar uma linguagem rebuscada, assumindo um valor
que é de outro. A partir de 1993, porém, eles adotam com tudo
um discurso próprio, repleto inclusive de gírias. “Creio que
vem daí a força mostrada por eles”, ressaltou.
Outro
ponto abordado pela pesquisadora refere-se ao início do movimento
hip hop em São Paulo, quando foram formados grupos de estudos
ligados a algumas organizações não-governamentais de direitos
da mulher e do negro. Frequentemente, por exemplo, os rappers
destacavam a biografia de Malcom-X. Existem também outros
estudos que irrompem nas letras das canções, como a crítica
ao sociólogo Gilberto Freire e a sua tese da democracia racial.
É possível, portanto, encontrar ecos de debates promovidos
pela sociedade nesses grupos. “É possível encontrar uma capacidade
incrível de observação, além da coragem de falar adotando-se
uma variedade linguística própria. Os Racionais são uma influência
muito grande para outros grupos de rap”, disse a pesquisadora.
Vestuário e gestual
A linguista acredita que o
movimento hip hop se propagou muito pelo mundo através de
clipes, e não só através da audição das músicas. O rap norte-americano
é uma influência inegável nas roupas, no jeito de se movimentar
e de dançar. Alguns rappers procuram fazer uma coisa mais
brasileira, mas esse não é o caso dos Racionais. Eles não
fazem a mistura com samba, com forró ou outro ritmo essencialmente
brasileiro. “A influência deles é norte-americana mesmo, apesar
de usarem muitas bases que foram produzidas no Brasil, mas
sempre por egressos da black music, como Tim Maia, Cassiano
e Jorge Benjor. Esse pessoal não se considera muito ligado
à MPB, não tem esse vínculo. Suas bases musicais são norte-americanas,
como ocorre com o hip hop do mundo todo. Algumas pessoas criticam
isso, mas o que eles dizem é que é uma influência de periferia
para periferia e, portanto, não seria um colonialismo, porque
é uma união da mãe África pelo mundo”, argumentou.
Com relação ao preconceito
ainda existente sobre o rap e a uma possível negativa quanto
ao reconhecimento como estilo musical e como criação, Ana
Raquel conta que isso está ligado ao fato de os rappers assumirem
abertamente a linguagem da periferia. Por incluir gírias e
palavrões, muitas pessoas consideram as obras pesadas e obscenas.
Segundo a linguista, outro fator que alimenta a aversão ao
estilo musical é a ligação que se estabelece entre o rap e
a criminalidade. “Trata-se de uma ligação errônea”, falou
Ana Raquel.
De acordo com a pesquisadora,
se a pessoa prestar atenção na letra, perceberá que existe
uma crítica aos jovens que se envolvem com a criminalidade,
sobretudo com o tráfico de drogas. Mas, como às vezes o personagem
é um jovem que foi assaltar, na hora que o cantor fala “eu
sou ladrão, artigo 157”, se a pessoa ouvir apenas esse trecho
poderá imaginar que os Racionais dão voz ao marginal. “Não
que não deem, mas é preciso conferir o que acontece no final
do rap e, normalmente, aquele ladrão é preso ou é morto”,
esclareceu a linguista. “E quase sempre tem uma fala em prosa
do próprio MC alertando para que os jovens não se envolvam
com isso, caracterizando uma afirmação, em certa medida, até
moralizante”.
Para a pesquisadora, um importante
elemento motivador para a criação dessa nova linguagem, em
um contexto de extrema pobreza, é a falta de identificação
com as maneiras socialmente mais aceitas de expressão, que
são mais comuns na escola. Na fala dos Racionais aparece muito
esse tipo de afirmação: ia para a escola, mas não via sentido
na escola. Consequentemente, não havia interesse em progredir
nos estudos. “Esse é um ponto interessante observado no trabalho.
A escola geralmente não gosta do rapper, mas o rapper gosta
da escola. Em suas canções ele fala, ‘vai para a escola’”,
observa.
Ana Raquel espera que sua
pesquisa sirva para mostrar aos professores que a academia
se interessa por esse tipo de manifestação, abrandando o preconceito
existente. “Eu acho que o rap veio como uma forma com a qual
eles se identificaram para se expressar, mais do que eles
se identificavam, por exemplo, fazendo uma redação na escola”,
ressaltou.
Contribuição
A linguista participa de alguns
grupos que atuam na formação de professores. Trabalhou no
projeto Teia do Saber e no Cefiel (Centro de Formação Continuada
de Professores do IEL) e atualmente faz parte do Projeto Conexão
Linguagem, que desenvolve material didático para o Ministério
da Educação (MEC), além de ser regente de uma disciplina na
Pós-Graduação Lato Senso do IEL, para professores da rede
municipal de Campinas. Ela revela que sempre procura levar
um pouco do rap para esses espaços. “Como esses professores
são, em sua maioria, orientadores pedagógicos, esse trabalho
certamente se multiplicará”.
Publicação:
Tese “Heterogeneidade e aforização: uma análise
do discurso dos Racionais MCs”
Autor: Ana Raquel Motta de Souza
Orientador: Sírio Possenti
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL)
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