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Na arena com os leões

Nuances de manifestações homofóbicas recorrentes
em modalidades esportivas são abordadas em dissertação

Torcedores em ação no centro de Campinas, na estreia da seleção brasileira na Copa do Mundo, no último dia 15: esporte, cada vez mais midiático, é terreno fértil para reações homofóbicas (Foto: Antonio Scarpinetti) Na tentativa de problematizar as manifestações homofóbicas presentes no esporte, Rodrigo Braga do Couto Rosa, em mestrado realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, identificou narrativas que trazem uma dimensão muito forte da discriminação, desde as agressões verbais até as físicas, a outras maneiras mais sutis de preconceito. No entanto, ao longo do caminho, saltou aos olhos do pesquisador o fato de que, talvez tão expressivas quanto as ações de homofobia, eram as ações de resistência a ela. Além de estarem muito presentes nos discursos, ele constatou que são também muito diversas.

Isto pode ser explicado porque as fontes escolhidas por Rosa possuem alguma ligação com a militância política, ou seja, são fontes que privilegiam a voz da resistência. A pesquisa selecionou e discutiu as narrativas que versavam sobre esporte, registradas em três publicações específicas, com conteúdos relacionados às sexualidades e voltadas ao público por vezes nomeado homossexual: o jornal Lampião da Esquina, publicado entre abril de 1978 e julho de 1981; a revista SuiGeneris, que circulou entre janeiro de 1995 e março de 2000; e a revista Bananaloca, que depois passaria a ser a G Magazine, desde sua primeira edição de abril de 1997 ao número 120, publicado em setembro de 2007. “Essas fontes trazem a narrativa homofóbica como uma ironia, um deboche, e tratam dessa questão como uma maneira já de resistir a ela”, afirmou.

Existem, de acordo com Rosa, várias abordagens possíveis para discutir a temática da homofobia, um termo forjado na década de 1960, que assumiu diferentes acepções até os dias de hoje. Rosa poderia ter optado por um caminho, considerado por ele como mais restrito, que trata a homofobia como uma manifestação discriminatória, que se concretiza e corporifica no discurso verbal agressivo, no xingamento, na piada ou na agressão física contra homossexuais. Porém, sua escolha foi por uma aproximação com a Teoria Queer, uma elaboração teórica herdeira do pensamento de Michel Foucault (1926-1984), dos estudos gays e lésbicos e das teorias feministas. Esta lente teórica possibilitou ampliar o entendimento das manifestações homofóbicas para além de suas dimensões mais explícitas.

A homofobia foi então compreendida não só como a hostilidade e a violência desferida contra homossexuais, bissexuais, travestis ou transexuais, mas como quaisquer discursos ou práticas que estruturam uma compreensão dos corpos, dos gêneros e das expressões do desejo de modo a hierarquizá-las, estabelecendo o que é normal e o que é anormal, entre o que deve ser valorizado e o que merece ser desprezado, o que pode ocupar, por exemplo, a arena esportiva e o que deve ser alijado dela.

Rodrigo Braga do Couto Rosa, autor da dissertação: pesquisa selecionou e discutiu as narrativas que versavam sobre esporte (Foto: Antonio Scarpinetti)Nesta dinâmica, não são inferiorizados sempre e somente as lésbicas, as travestis ou os gays, mas os garotos heterossexuais menos viris que desprezam as práticas esportivas que implicam em contatos corporais, ou as meninas que não correspondem às expectativas de feminilidade destinadas a elas, ousando adentrar modalidades tidas como masculinas. “Dentre as instituições responsáveis pela perpetuação dessa ordem dicotômica e hierarquizada dos corpos, dos gêneros e dos desejos, o esporte parece desempenhar um papel importante”, afirmou.

Uma das constatações da pesquisa é de que a maior parte dos episódios de homofobia no esporte brasileiro, registrada nos periódicos analisados, relaciona-se com o futebol. Foram histórias de técnicos, cartolas ou jogadores que negavam a existência de homossexuais nesta modalidade, outras que denotavam esforços para afastar sexualidades dissidentes do meio futebolístico de modo a evitar o “contágio” e a decorrente depreciação de uma prática entendida como fundamentalmente masculina e masculinizadora.

Neste mesmo sentido, a pesquisa também apontou que a maioria das narrativas encontrada dizia respeito aos homens e às masculinidades. Raramente histórias de mulheres foram abordadas, talvez em razão das fontes pesquisadas terem sido produzidas por equipes, majoritariamente, formadas por homens e, especialmente as revistas nascidas no anos 1990, SuiGeneris e G Magazine, elaboradas prioritariamente para o público gay.

Rosa também observou outras manifestações, como a presença de homossexuais assumidos em práticas esportivas em todos os níveis. “Essa presença, ainda que rarefeita, ficou evidente”, disse, principalmente nos anos 1990, quando o movimento homossexual brasileiro e o mercado editorial destinado ao público homossexual voltam a florescer, diversificando-se e ampliando-se numericamente depois de uma década de menor robustez. Os anos 1990 foram então marcados pela valorização do outing, do assumir-se, da “saída do armário” como instrumento político de visibilidade e positividade de sexualidades consideradas divergentes da norma heterossexual hegemônica.

Nesta onda, as publicações analisadas também registraram as “saídas do armário” de esportistas, esparsas, raras e, mais frequentemente, tratando de casos de atletas estrangeiros. O primeiro atleta olímpico brasileiro a ocupar as páginas dos periódicos analisados nesta pesquisa, em 1999, foi Walmes Rangel, corredor de 110 metros com barreiras que representou o Brasil nos Jogos Olímpicos de Atlanta; depois dele veio Lilico, profissional do voleibol e nada mais.

Estas narrativas, tanto as brasileiras como as internacionais (por exemplo, das tenistas Amelie Mauresmo, Martina Navratilova, jogadores de futebol americano, etc) eram marcadas pela discussão das dificuldades enfrentadas pelos seus protagonistas para assumir publicamente aspectos de suas sexualidades, as discriminações que sofreram e as maneiras como resistiram ou reagiram a elas. Se são raros os exemplos de histórias do assumir-se gay ou lésbica no esporte de alto rendimento, espetacularizado, de maior apelo midiático e, portanto, mais candente como notícia a ser veiculada pelos meios de comunicação, mais esparsas ainda são as narrativas sobre assumidos(as) nas práticas esportivas recreativas.

Casos

A professora Carmen Lúcia Soares: “Dissertação contribuirá para o aprofundamento das discussões sobre a temática” (Foto: Antonio Scarpinetti)O jornal Lampião da Esquina, no final da década de 1970, constituiu-se em um espaço para que algumas delas emergissem, mas com a mercantilização da homossexualidade que se acelerou e recrudesceu nos anos 1990, prevaleceram as histórias de atletas expoentes em suas modalidades. Mas nem todas as narrativas diziam de esportistas assumidos. Algumas delas versavam sobre pessoas que, mesmo afirmando publicamente sua heterossexualidade, eram alvo de campanhas homofóbicas. Foi o caso do jogador de futebol Richarlyson.

“O recorte temporal que nós estabelecemos termina com este caso”, explicou Rosa. Foi o primeiro episódio em que o movimento social respondeu publicamente a uma manifestação homofóbica dentro do campo esportivo. Respondeu de maneira organizada, entrando com ações judiciais contra o juiz que negou a possibilidade da queixa-crime impetrada pelo atleta contra um diretor da Sociedade Esportiva Palmeiras. Ele teria dito, ainda que indiretamente, que ele seria o jogador de futebol que se assumiria gay em um programa de televisão. Quando o atleta entra com a queixa-crime, tem negada essa possibilidade uma vez que o juiz trata a questão como problema menor, que não mereceria ser levada aos fóruns jurídicos, chegando a afirmar que o futebol não era lugar para os homossexuais. Disse ainda que estes, por sua vez, se desejassem praticar o esporte, que o fizessem entre si, organizando suas próprias equipes, federações e campeonatos.

Essa manifestação oficial causou celeuma, não só na militância, mas também no campo esportivo, onde tornou-se um caso emblemático. “Para nós foi importante porque estávamos observando como os veículos de comunicação respondiam ou registravam os casos de homofobia no esporte. Ele aparece em todas as publicações e a resposta organizada foi muito forte, mesmo”, afirmou o pesquisador. Em primeiro lugar, pensaram que era importante recuperar essa narrativa porque ela não estava registrada em um espaço de produção acadêmica, mas, também, por possibilitar pensar como a homofobia também se manifesta impedindo as pessoas de negarem uma condição que lhe é imposta.

Se algumas pessoas se assumiram homossexuais e são grandes esportistas, outras, pelo contrário, continuam segredando aspectos de suas sexualidades e não se assumiram. E sobre elas recai algum nível de dúvida que gera uma ou outra chacota. Mas, sobre o caso Richarlyson, a história é um pouco diferente. Para os seus agressores, para quem quer detratá-lo, não há dúvidas sobre sua homossexualidade. “Por mais que ele negue, namore, quase case, isso não interessa aos torcedores que, no campo, dizem que ele é gay. Para essas pessoas, ele não está no ‘armário’ e sim numa “cristaleira”, não há nada que oculte o que supõem saber sobre a sexualidade daquele jogador”, conclui Rosa.

Reações

Mas a pesquisa não tratou somente dos casos de discriminações, dando voz também às respostas às manifestações homofóbicas. De acordo com o pesquisador, as resistências também se multiplicaram ao longo do período analisado, evidenciando-se na visibilização das histórias de homossexuais esportistas, de torcidas, equipes, torneios ou federações que se auto-denominavam gays ou LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). As torcidas gays, como a Coligay, do Grêmio, ou a Fla-Gay, do Flamengo, foram objeto de reportagens do jornal Lampião da Esquina no final dos anos 1970 e início de 1980. Já as equipes, campeonatos e federações que já eram uma realidade em países europeus ou nos EUA nos anos 1980, somente concretizaram-se no Brasil a partir dos anos 1990.

Para a orientadora da pesquisa, professora Carmen Lúcia Soares, é fundamental destacar que Rosa realizou um trabalho de continuidade temática graças às agências financiadoras. Ele foi beneficiado com uma bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) já na graduação, com o tema da homofobia no esporte no campo específico da educação física. Elegeu um conjunto de fontes que podem ser consideradas representativas de uma dimensão científica da área tais como, revistas científicas e anais de congressos acadêmicos e nos quais se pode verificar uma imensa lacuna. Ela revela ter ficado muito feliz quando ele aceitou fazer essa pesquisa, justamente por ser um tema tão fértil e tão pouco tratado no Brasil no âmbito específico da pesquisa em Educação Física e Esporte.

Além dos pareceres extremamente positivos oriundos da conclusão do projeto Pibic, veio a notícia da aprovação e financiamento do projeto de mestrado por parte da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O parecerista da Fapesp também nos estimulou durante todo o percurso da pesquisa nos pareceres dos relatórios parciais, incentivando e destacando a fertilidade do tema, ainda mais sendo feito num programa de pós-graduação em Educação Física da Unicamp. E isto é significativo de ser registrado”, disse a orientadora.

Michel Foucault: elaboração teórica do estudo fundamentou-se em corrente herdeira do pensamento do filósofo francês (Foto: Reprodução)Outro aspecto que ela destacou diz respeito ao fato de que Rosa veio para a academia direto da militância homossexual. “Tivemos que fazer um esforço para que ele conseguisse trabalhar com a perspectiva acadêmica e fazer desta pesquisa um instrumento de divulgação desta problemática também neste âmbito. E, também, para trazer ao debate no campo específico da Educação Física e do Esporte uma problemática de pesquisa já existente em outros campos das ciências humanas, mesmo no Brasil. Todavia, no campo especifico da Educação Física e do Esporte no Brasil não verificamos essa robustez da temática, então, nesse sentido e mesmo sendo uma pesquisa de mestrado, ela apresenta indícios de originalidade temática”.

Segundo a orientadora, este não é um trabalho que se pretende conclusivo. Trata-se de uma primeira abordagem que desperta uma série de possibilidades, instando que sejam contadas as histórias das expulsões, das perseguições, dos ataques de cunho homofóbicos, mas, também, das resistências, dos campeonatos, das equipes e das práticas esportivas recreativas que envolvem algum aspecto marcante de diversidade sexual.

Se a homofobia é um tema já consolidado no debate das ciências humanas e em outras áreas como da saúde, no campo da Educação Física e do Esporte, seu debate está longe de ser tranquilo. Somente nos últimos anos, surgiram as primeiras pesquisas dedicadas aos estudos do esporte e da educação física escolar que tematizam, ainda que timidamente, a homofobia no Brasil. “Acreditamos que esta dissertação, por ter sido realizada na Unicamp, com todo o respaldo institucional recebido das agências de fomento, contribuirá para a ampliação e o aprofundamento das discussões sobre a temática”, argumentou Soares.

A docente espera que mais pesquisadores se debrucem sobre as lacunas do tema encontradas na pesquisa do Pibic e sobre as histórias que começaram a contar neste mestrado, problematizando o caminho percorrido e dando voz a outras tantas narrativas que escaparam. É importante que isso aconteça agora, ressalta a orientadora, porque existe um movimento internacional anti-discriminatório que pretende levar essa discussão às entidades esportivas. “Na esteira das discussões relacionadas à raça e etnia, o debate sobre homofobia também precisa ocupar o campo esportivo”, conclui.

 

Publicação

Dissertação de mestrado: “Enunciações afetadas: relações possíveis entre homofobia e esporte”

Autor: Rodrigo Braga do Couto Rosa

Orientadora: Carmen Lúcia Soares

Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)

Fonte de financiamento: Fapesp, Pibic e CNPq

 


 
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