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Na arena com os leões
Nuances de manifestações
homofóbicas recorrentes
em modalidades esportivas são abordadas em dissertação
Na tentativa de problematizar as manifestações homofóbicas
presentes no esporte, Rodrigo Braga do Couto Rosa, em mestrado
realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física
da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, identificou
narrativas que trazem uma dimensão muito forte da discriminação,
desde as agressões verbais até as físicas, a outras maneiras
mais sutis de preconceito. No entanto, ao longo do caminho,
saltou aos olhos do pesquisador o fato de que, talvez tão
expressivas quanto as ações de homofobia, eram as ações de
resistência a ela. Além de estarem muito presentes nos discursos,
ele constatou que são também muito diversas.
Isto pode ser explicado porque
as fontes escolhidas por Rosa possuem alguma ligação com a
militância política, ou seja, são fontes que privilegiam a
voz da resistência. A pesquisa selecionou e discutiu as narrativas
que versavam sobre esporte, registradas em três publicações
específicas, com conteúdos relacionados às sexualidades e
voltadas ao público por vezes nomeado homossexual: o jornal
Lampião da Esquina, publicado entre abril de 1978 e julho
de 1981; a revista SuiGeneris, que circulou entre janeiro
de 1995 e março de 2000; e a revista Bananaloca, que depois
passaria a ser a G Magazine, desde sua primeira edição de
abril de 1997 ao número 120, publicado em setembro de 2007.
“Essas fontes trazem a narrativa homofóbica como uma ironia,
um deboche, e tratam dessa questão como uma maneira já de
resistir a ela”, afirmou.
Existem, de acordo com Rosa,
várias abordagens possíveis para discutir a temática da homofobia,
um termo forjado na década de 1960, que assumiu diferentes
acepções até os dias de hoje. Rosa poderia ter optado por
um caminho, considerado por ele como mais restrito, que trata
a homofobia como uma manifestação discriminatória, que se
concretiza e corporifica no discurso verbal agressivo, no
xingamento, na piada ou na agressão física contra homossexuais.
Porém, sua escolha foi por uma aproximação com a Teoria Queer,
uma elaboração teórica herdeira do pensamento de Michel Foucault
(1926-1984), dos estudos gays e lésbicos e das teorias feministas.
Esta lente teórica possibilitou ampliar o entendimento das
manifestações homofóbicas para além de suas dimensões mais
explícitas.
A homofobia foi então compreendida
não só como a hostilidade e a violência desferida contra homossexuais,
bissexuais, travestis ou transexuais, mas como quaisquer discursos
ou práticas que estruturam uma compreensão dos corpos, dos
gêneros e das expressões do desejo de modo a hierarquizá-las,
estabelecendo o que é normal e o que é anormal, entre o que
deve ser valorizado e o que merece ser desprezado, o que pode
ocupar, por exemplo, a arena esportiva e o que deve ser alijado
dela.
Nesta
dinâmica, não são inferiorizados sempre e somente as lésbicas,
as travestis ou os gays, mas os garotos heterossexuais menos
viris que desprezam as práticas esportivas que implicam em
contatos corporais, ou as meninas que não correspondem às
expectativas de feminilidade destinadas a elas, ousando adentrar
modalidades tidas como masculinas. “Dentre as instituições
responsáveis pela perpetuação dessa ordem dicotômica e hierarquizada
dos corpos, dos gêneros e dos desejos, o esporte parece desempenhar
um papel importante”, afirmou.
Uma das constatações da
pesquisa é de que a maior parte dos episódios de homofobia
no esporte brasileiro, registrada nos periódicos analisados,
relaciona-se com o futebol. Foram histórias de técnicos,
cartolas ou jogadores que negavam a existência de homossexuais
nesta modalidade, outras que denotavam esforços para afastar
sexualidades dissidentes do meio futebolístico de modo a
evitar o “contágio” e a decorrente depreciação de uma
prática entendida como fundamentalmente masculina e masculinizadora.
Neste mesmo sentido, a pesquisa
também apontou que a maioria das narrativas encontrada dizia
respeito aos homens e às masculinidades. Raramente histórias
de mulheres foram abordadas, talvez em razão das fontes pesquisadas
terem sido produzidas por equipes, majoritariamente, formadas
por homens e, especialmente as revistas nascidas no anos 1990,
SuiGeneris e G Magazine, elaboradas prioritariamente para
o público gay.
Rosa também observou outras
manifestações, como a presença de homossexuais assumidos em
práticas esportivas em todos os níveis. “Essa presença, ainda
que rarefeita, ficou evidente”, disse, principalmente nos
anos 1990, quando o movimento homossexual brasileiro e o mercado
editorial destinado ao público homossexual voltam a florescer,
diversificando-se e ampliando-se numericamente depois de uma
década de menor robustez. Os anos 1990 foram então marcados
pela valorização do outing, do assumir-se, da “saída do armário”
como instrumento político de visibilidade e positividade de
sexualidades consideradas divergentes da norma heterossexual
hegemônica.
Nesta onda, as publicações
analisadas também registraram as “saídas do armário” de esportistas,
esparsas, raras e, mais frequentemente, tratando de casos
de atletas estrangeiros. O primeiro atleta olímpico brasileiro
a ocupar as páginas dos periódicos analisados nesta pesquisa,
em 1999, foi Walmes Rangel, corredor de 110 metros com barreiras
que representou o Brasil nos Jogos Olímpicos de Atlanta; depois
dele veio Lilico, profissional do voleibol e nada mais.
Estas narrativas, tanto as
brasileiras como as internacionais (por exemplo, das tenistas
Amelie Mauresmo, Martina Navratilova, jogadores de futebol
americano, etc) eram marcadas pela discussão das dificuldades
enfrentadas pelos seus protagonistas para assumir publicamente
aspectos de suas sexualidades, as discriminações que sofreram
e as maneiras como resistiram ou reagiram a elas. Se são raros
os exemplos de histórias do assumir-se gay ou lésbica no esporte
de alto rendimento, espetacularizado, de maior apelo midiático
e, portanto, mais candente como notícia a ser veiculada pelos
meios de comunicação, mais esparsas ainda são as narrativas
sobre assumidos(as) nas práticas esportivas recreativas.
Casos
O
jornal Lampião da Esquina, no final da década de 1970, constituiu-se
em um espaço para que algumas delas emergissem, mas com a
mercantilização da homossexualidade que se acelerou e recrudesceu
nos anos 1990, prevaleceram as histórias de atletas expoentes
em suas modalidades. Mas nem todas as narrativas diziam de
esportistas assumidos. Algumas delas versavam sobre pessoas
que, mesmo afirmando publicamente sua heterossexualidade,
eram alvo de campanhas homofóbicas. Foi o caso do jogador
de futebol Richarlyson.
“O recorte temporal que nós
estabelecemos termina com este caso”, explicou Rosa. Foi o
primeiro episódio em que o movimento social respondeu publicamente
a uma manifestação homofóbica dentro do campo esportivo. Respondeu
de maneira organizada, entrando com ações judiciais contra
o juiz que negou a possibilidade da queixa-crime impetrada
pelo atleta contra um diretor da Sociedade Esportiva Palmeiras.
Ele teria dito, ainda que indiretamente, que ele seria o jogador
de futebol que se assumiria gay em um programa de televisão.
Quando o atleta entra com a queixa-crime, tem negada essa
possibilidade uma vez que o juiz trata a questão como problema
menor, que não mereceria ser levada aos fóruns jurídicos,
chegando a afirmar que o futebol não era lugar para os homossexuais.
Disse ainda que estes, por sua vez, se desejassem praticar
o esporte, que o fizessem entre si, organizando suas próprias
equipes, federações e campeonatos.
Essa manifestação oficial
causou celeuma, não só na militância, mas também no campo
esportivo, onde tornou-se um caso emblemático. “Para nós
foi importante porque estávamos observando como os veículos
de comunicação respondiam ou registravam os casos de homofobia
no esporte. Ele aparece em todas as publicações e a resposta
organizada foi muito forte, mesmo”, afirmou o pesquisador.
Em primeiro lugar, pensaram que era importante recuperar essa
narrativa porque ela não estava registrada em um espaço
de produção acadêmica, mas, também, por possibilitar pensar
como a homofobia também se manifesta impedindo as pessoas
de negarem uma condição que lhe é imposta.
Se algumas pessoas se assumiram
homossexuais e são grandes esportistas, outras, pelo contrário,
continuam segredando aspectos de suas sexualidades e não
se assumiram. E sobre elas recai algum nível de dúvida que
gera uma ou outra chacota. Mas, sobre o caso Richarlyson,
a história é um pouco diferente. Para os seus agressores,
para quem quer detratá-lo, não há dúvidas sobre sua homossexualidade.
“Por mais que ele negue, namore, quase case, isso não interessa
aos torcedores que, no campo, dizem que ele é gay. Para essas
pessoas, ele não está no ‘armário’ e sim numa “cristaleira”,
não há nada que oculte o que supõem saber sobre a sexualidade
daquele jogador”, conclui Rosa.
Reações
Mas a pesquisa não tratou
somente dos casos de discriminações, dando voz também às respostas
às manifestações homofóbicas. De acordo com o pesquisador,
as resistências também se multiplicaram ao longo do período
analisado, evidenciando-se na visibilização das histórias
de homossexuais esportistas, de torcidas, equipes, torneios
ou federações que se auto-denominavam gays ou LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). As torcidas gays,
como a Coligay, do Grêmio, ou a Fla-Gay, do Flamengo, foram
objeto de reportagens do jornal Lampião da Esquina no final
dos anos 1970 e início de 1980. Já as equipes, campeonatos
e federações que já eram uma realidade em países europeus
ou nos EUA nos anos 1980, somente concretizaram-se no Brasil
a partir dos anos 1990.
Para a orientadora da pesquisa,
professora Carmen Lúcia Soares, é fundamental destacar que
Rosa realizou um trabalho de continuidade temática graças
às agências financiadoras. Ele foi beneficiado com uma bolsa
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(Pibic) já na graduação, com o tema da homofobia no esporte
no campo específico da educação física. Elegeu um conjunto
de fontes que podem ser consideradas representativas de uma
dimensão científica da área tais como, revistas científicas
e anais de congressos acadêmicos e nos quais se pode verificar
uma imensa lacuna. Ela revela ter ficado muito feliz quando
ele aceitou fazer essa pesquisa, justamente por ser um tema
tão fértil e tão pouco tratado no Brasil no âmbito específico
da pesquisa em Educação Física e Esporte.
Além dos pareceres extremamente
positivos oriundos da conclusão do projeto Pibic, veio a notícia
da aprovação e financiamento do projeto de mestrado por parte
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
“O parecerista da Fapesp também nos estimulou durante todo
o percurso da pesquisa nos pareceres dos relatórios parciais,
incentivando e destacando a fertilidade do tema, ainda mais
sendo feito num programa de pós-graduação em Educação Física
da Unicamp. E isto é significativo de ser registrado”, disse
a orientadora.
Outro
aspecto que ela destacou diz respeito ao fato de que Rosa
veio para a academia direto da militância homossexual. “Tivemos
que fazer um esforço para que ele conseguisse trabalhar com
a perspectiva acadêmica e fazer desta pesquisa um instrumento
de divulgação desta problemática também neste âmbito. E, também,
para trazer ao debate no campo específico da Educação Física
e do Esporte uma problemática de pesquisa já existente em
outros campos das ciências humanas, mesmo no Brasil. Todavia,
no campo especifico da Educação Física e do Esporte no Brasil
não verificamos essa robustez da temática, então, nesse sentido
e mesmo sendo uma pesquisa de mestrado, ela apresenta indícios
de originalidade temática”.
Segundo a orientadora, este
não é um trabalho que se pretende conclusivo. Trata-se de
uma primeira abordagem que desperta uma série de possibilidades,
instando que sejam contadas as histórias das expulsões, das
perseguições, dos ataques de cunho homofóbicos, mas, também,
das resistências, dos campeonatos, das equipes e das práticas
esportivas recreativas que envolvem algum aspecto marcante
de diversidade sexual.
Se a homofobia é um tema já
consolidado no debate das ciências humanas e em outras áreas
como da saúde, no campo da Educação Física e do Esporte, seu
debate está longe de ser tranquilo. Somente nos últimos anos,
surgiram as primeiras pesquisas dedicadas aos estudos do esporte
e da educação física escolar que tematizam, ainda que timidamente,
a homofobia no Brasil. “Acreditamos que esta dissertação,
por ter sido realizada na Unicamp, com todo o respaldo institucional
recebido das agências de fomento, contribuirá para a ampliação
e o aprofundamento das discussões sobre a temática”, argumentou
Soares.
A docente espera que mais
pesquisadores se debrucem sobre as lacunas do tema encontradas
na pesquisa do Pibic e sobre as histórias que começaram a
contar neste mestrado, problematizando o caminho percorrido
e dando voz a outras tantas narrativas que escaparam. É importante
que isso aconteça agora, ressalta a orientadora, porque existe
um movimento internacional anti-discriminatório que pretende
levar essa discussão às entidades esportivas. “Na esteira
das discussões relacionadas à raça e etnia, o debate sobre
homofobia também precisa ocupar o campo esportivo”, conclui.
Publicação
Dissertação de mestrado: “Enunciações
afetadas: relações possíveis entre homofobia e esporte”
Autor: Rodrigo Braga do Couto Rosa
Orientadora: Carmen Lúcia Soares
Unidade: Faculdade de Educação Física
(FEF)
Fonte de financiamento: Fapesp, Pibic
e CNPq
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