Durante
muito tempo, Kizzy Antualpa fez do Clube Regatas de Campinas
praticamente sua casa. Desde os 7 anos, desenvolveu uma
variedade de modalidades esportivas. Mas seu compromisso
era mesmo com a ginástica rítmica, que se tornou sua paixão
para a vida toda. De 1992 a 1999, foi campeã brasileira
e sul-americana aos 10 anos de idade, pentacampeã brasileira,
campeã pan-americana e terceira colocada em torneios mundiais,
viajando por 25 países com a ginástica. Ainda menina, foi
descoberta por sua professora de educação física Thais Franco
Bueno, na época técnica do clube, enquanto fazia alguns
adágios de ginástica rítmica brincando no pátio da escola.
A técnica nem esperou o dia seguinte para mandar recado:
“Peça a sua mãe para levá- la ao clube para um teste”. Hoje,
depois de muitas vitórias, ela faz da ginástica rítmica
seu objeto de estudo para dissertação de mestrado apresentada
na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp e, mesmo
colocando o olhar da pesquisadora à frente da emoção da
ginasta, depois de transitar pela rotina dos centros de
treinamento em ginástica rítmica brasileiros, não consegue
conter a nostalgia. “Não tem atleta de São Paulo na seleção
brasileira. Para mim, que fui atleta de um clube de Campinas,
trabalho no Estado de São Paulo e tive de me afastar por
uma lesão na cervical, o ideal seria ver a ginástica crescer.
É preciso abrir portas”, diz a professora da Veris Faculdades
e técnica de ginástica rítmica em Jundiaí.
O olhar da menina cujas brincadeiras aconteciam
nos intervalos dos treinos e cujos primeiros movi- mentos
aconteceram em atividades de extensão para crianças na FEF,
é resgatado quando Kizzy fala de seu encontro com as atuais
atletas da seleção brasileira no CT de Aracaju, sede da
Confederação Brasileira de Ginástica. As atletas, segundo
a pesquisadora, estavam tristes porque ficaram a duas vagas
da classificação para o pré-olímpico. Mas, como aparece
no facebook, ‘Deus é brasileiro’, e elas acabaram sendo
convocadas para o pré-olímpico por irregularidade ou desistência
de outras seleções. “Tentei o tempo todo me colocar como
pesquisadora, mas ao ver a seleção muito desamparada, o
que me ocorreu foi um sentimento de Vamos gente, como se
estivesse no tablado. Mas consegui separar”.
Em entrevistas com as ginastas, treinadores
e até mesmo crianças aprendizes de alguns CTs, Kizzy, baseada
na pedagogia do esporte, concluiu que os centros de treinamento
são referência para a prática de ginástica rítmica na região
onde estão instalados. Isso explica o fato de a seleção
ser formada na maioria por atletas nascidas ou residentes
em locais próximos e no próprio local onde os centros estão
instalados. Para ela, o Estado que deseja ver seus atletas
na seleção brasileira deve investir mais em centros de treinamento,
pois Santa Catarina está criando CT e tem atleta na seleção,
Paraná é representado por 50% da equipe e no Espírito Santo
tem três ou quatro atletas. “Isso, para mim, deixa muito
clara a necessidade de investimento em centros. Eles são
a bola da vez. Para se fomentar qualquer modalidade numa
determinada região ou Estado, precisa ter exemplos. E os
centos nada mais são que grandes exemplos”, observa. Ela
acrescenta que em Aracaju, onde treina a seleção brasileira,
não existe iniciação, mas o desejo de ser ginasta já se
espalhou entre as crianças, que aumentaram o número de alunos
em academias, escolas e clubes. Uma das crianças que praticam
as atividades em Aracaju disse em entrevista: “Eu vi uma
ginasta se apresentando, achei lindo e quero ser igual a
ela”.
Kizzy ressalta o fato de, em algumas cidades,
a ginástica rítmica estar fechada dentro dos clubes e estes,
de acordo com outra pesquisa, enfrentar problemas pela falta
de adesão de novos sócios e impostos altos, e a manutenção
de uma modalidade tem um custo muito alto para um clube.
Na sua avaliação, a vida atual leva para outras alternativas,
como academias, espaços públicos de lazer e os clubes têm
dificuldade de formar equipes. Ela recorda que, na década
de 1990, 80% da seleção brasileira de GR era composta por
atletas do Estado de São Paulo. Mas ela acredita na transformação
da história por meio de um esforço comum entre administração
pública, clubes e empresas. E se permite sonhar: “Imagine
um centro desses em Barão Geraldo, por exemplo. O que teria
de criança estimulada a fazer ginástica”. As academias,
por sua vez, por preconceito dos próprios técnicos, estão
fora da prática.
Ainda muito jovem, competindo como ginasta,
Kizzy já ficava intrigada com a diferença entre o sistema
europeu e o brasileiro. Mas teve de esperar passar no vestibular
para educação física da Unicamp em 2002, se tornar professora
universitária e, finalmente, ser aceita no exame para mestrado
em ciência do desporto para tirar definitivamente suas dúvidas.
Sabia, porém, que para entender o que acontecia do outro
lado do mundo teria de transitar pela realidade brasileira,
que conta com três centros privados, dois deles em Londrina
e Toledo, no Paraná, e outro em Vitória, no Espírito Santo;
e apenas um governamental, o atual Centro Nacional de Treinamento,
financiado pela Confederação Brasileira de Ginástica, em
Aracaju.
A ginasta já havia observado que a modalidade
começou a ganhar títulos internacionais somente na década
de 1990, enquanto as europeias já vinham de uma história
de títulos. Ela acentua que, se somarem os CTs de todas
as modalidades esportivas, o Brasil talvez não chegue a
cem. Enquanto isso, a Rússia soma 4 mil centros de treinamento
esportivos, segundo a pesquisadora. Por entender que a pedagogia
do esporte é útil apenas para iniciação, mas também tem
seu lugar no treinamento, ela decidiu saber qual o tratamento
dado a equipes de alto nível do Brasil.
Por conhecimento de causa, nada passou despercebido
do olhar experiente de Kizzy, desde a estrutura física até
a organizacional dos CTs. Ela observou que, enquanto no
exte- rior tem uma gama de profissionais envolvidos, como
o técnico, o coreógrafo, o preparador, a seleção brasileira
tem apenas o técnico, como coreógrafo e gestor, e os pais,
que têm de correr atrás do patrocínio. Segundo Kizzy, as
atletas de ponta têm aulas todos os dias, mas em centros
menores, elas acontecem somente uma vez por semana, quando
o interessante era estudar balé pelo menos três vezes por
semana. Em outro centro, o tablado fica num espaço utilizado
por várias modalidades. “Ou seja, se tem música, barulho,
elas têm de se adaptar”, pontua. Para Kizzy, de modo geral,
os centros são muito bons, mas ainda podem melhorar muito.
A diferença entre eles é grande, segundo a professora, inclusive
no que diz respeito ao nível dos profissionais que acompanham
as atletas. A saída, segundo Kizzy, tem sido a parceria
com organiza- ções da iniciativa privada ou com bancos públicos,
como acontece com a unidade de Aracaju, em que as atletas
da seleção recebem apoio a moradia pela Caixa Econômica
Federal. Alguns oferecem atendimento médico (fisioterapia)
no próprio local por estarem localizados em universidades.
Outras se deslocam para clínicas. Quanto à refeição, o de
Toledo tem seu próprio refeitório, que oferece cardápio
especializado.
Kizzy lembra que, em seu projeto de iniciação
científica, na graduação, em 2003, ao abrir inscrições para
crianças de 5 a 8 anos, como objetivo de investigar diferentes
estímulos pedagógicos, foi surpreendida com 32 crianças
querendo fazer ginástica. Em apuros, conforme ela mesma
relembra, com o apoio da então caloura Flora Gandolfi, hoje
sua amiga, a experiência serviu para evidenciar que onde
há iniciativa existe interesse em aprender, em praticar.
Por que tanta criança? A ginástica rítmica estava em franco
crescimento. Assim como a natação, com o campeonato de Cielo,
na década de 2000, e o vôlei na década de 1990, e o basquete
em Campinas, com a presença de Hortência, Paula e Karina
na cidade. Como o tênis, pelas mãos de Gustavo Kuerten.
Assim foi a rítmica em São Paulo, mas fica
um sentimento de que tudo pode se acabar, na opinião da
treinadora. Até mesmo na Universidade onde Kizzy fez muitas
apresentações, superando a lesão, com o Grupo Ginástico
da Unicamp. “No Brasil, tudo depende do envolvimento de
um. Um Júlio Gavião, um Marco Bortoletto...” E por que não
uma Kizzy, que no seu grupo de alunas da academia, ainda
fomenta o sonho de duas das meninas que deram os primeiros
passos rítmicos no chão da FEF, orientados por ela em seu
projeto de iniciação científica em 2003?
Aos 17 anos, Kizzy estava pronta para competir
como atleta individual e do conjunto no Pan-americano de
Winnipeg, quando foi orientada pelos médicos a não treinar
mais. Para driblar a depressão, passou os dias dos jogos
em Fortaleza, hospedada por uma amiga. Era a primeira ginasta
do Brasil e tentaria ganhar o Pan para garantir vaga na
Olimpíada, competindo com uma atleta canadense. A opção
pela educação física foi substituída pela vontade de entender
seu problema de saúde prestando vestibular para medicina,
mas o telefonema de uma amiga mudou tudo de novo: “Kizzy,
pode prestar Unicamp, porque não tem nada daquilo que os
médicos disseram que você não poderia praticar por causa
da lesão”.
E a Unicamp abriu as portas, para a felicidade
de suas alunas e, quem sabe, da ginástica rítmica brasileira,
presenteada com a dissertação. A amiga-irmã Ticiane Baccaglini
hoje é técnica ao lado de Kizzy em Jundiaí. “A ginástica
em minha vida é tudo. É minha história, alinhavada pelo
multiatletismo na infância, pela devoção de minha mãe, que
passou muitos anos sem almoçar para me levar ao clube, e
de meus pais vendendo rifa e pizza para me verem ser campeã
na Bulgária, pela lesão na coluna e pela volta ao tablado
como professora e treinadora”, arremata a campeã.
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■ Publicação
Dissertação: “Centros
de treinamento de ginástica rítmica no Brasil: estrutura
e programas”
Autora: Kizzy Fernandes Antualpa
Orientador: Roberto Rodrigues Paes
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)