...O
circuito da brutalidade
Estudo sobre violência sexual mostra
que o tormento
da vítima se perpetua, graças à omissão
e intolerância por
parte da família, correntes religiosas, instituições
e até dos
serviços públicos de saúde
CARLOS
LEMES PEREIRA
Para
muitas mulheres brasileiras, sofrer um crime sexual é
apenas o ponto de partida para se tornar uma violentada
serial. Seria como se não bastassem os traumas
físicos e psicológicos, impostos nos matagais
e mesmo nos cantos escuros da própria casa. Quando
saem em busca de justiça, socorro médico
ou simples apoio moral, essas vítimas se arriscam
a vivenciar o quanto o pesadelo consegue se desdobrar
em capítulos perversos. Situações
de constrangimento e intolerância podem espreitá-las
em quase todos os quadrantes sociais, a começar
pelo meio familiar e comunidades religiosas, culminando
em instituições como a Polícia e
o Judiciário. E, por mais insano que pareça,
sendo geradas até nos serviços públicos
de saúde.
O
mapeamento desse circuito da brutalidade talvez não
fosse o objetivo principal de Jefferson Drezett Ferreira,
quando ele começou a elaborar a tese Estudo de
fatores relacionados com a violência sexual contra
crianças, adolescentes e mulheres adultas. Afinal,
o período de julho de 1994 e agosto de 1999, esse
ginecologista, formado pela Unicamp, passou debruçado
sobre números que o credenciassem ao título
de doutor em medicina, pela pós-graduação
do Centro de Referência da Saúde da Mulher
e de Nutrição, Alimentação
e Desenvolvimento Infantil (São Paulo). Mas, em
abril do ano passado, quando finalmente concretizou o
sonho acadêmico, ele já sabia que o cenário
entrevisto pelas brechas das estatísticas era dramático
demais para não merecer uma reflexão mais
rigorosa.
Naturalmente,
o que alicerça a tese elaborada a partir
de estudos retrospectivos de 1.189 pacientes matriculadas
no CRSMNADI, que sofreram estupro e outros abusos
são os dados que configuram os perfis das vítimas
e dos agressores; as modalidades dos crimes e seu circunstanciamento;
a tipificação dos traumas etc. Impressiona,
por exemplo, a constatação de que, para
garotas até dez anos de idade, o perigo mora em
casa: o agressor, na maioria dos casos (21,7% das 71 meninas
incluídas no estudo), é o pai biológico.
Impacto
cruel A incidência maior dos crimes sexuais
recai sobre adolescentes (31,6% na faixa etária
de 15 a 19 anos) e adultas jovens (22,4% na faixa de 20
a 24 anos). Na verdade, em nenhuma idade a mulher
é poupada da violência sexual. Sabemos de
casos envolvendo desde recém-nascidas a vítimas
quase centenárias, observa Drezett Ferreira.
No entanto, a predominância das ocorrências
nos grupos apontados pela pesquisa traduz um aspecto muito
grave: são idades nas quais as mulheres estão
passando ou acabaram de passar por transformações
biopsicossociais muito importantes. Várias estão
experimentando o amor, iniciando a vida sexual, com planos
e expectativas. E aí, o impacto da violência
costuma ser extremamente cruel, acrescenta.
..AVP:
atentado violento ao pudor...........................
..AVPA:
atentado violento ao pudor com coito anal
..AVPO:
atentado violento ao pudor com coito oral. |
Os
números organizados pelo pesquisador representam
um dos mais abrangentes estudos sobre o assunto no Brasil.
Tanto que, apesar de sua agenda lotada como diretor da
Divisão de Ginecologia Especial e coordenador do
Serviço de Atenção Integral à
Mulher Sexualmente Vitimada do CRSMNADI e coordenador
do Serviço de Vigilância Sexual do Hospital
Pérola Bynton (da rede pública, na Capital),
ele vive tendo que se virar para atender a pedidos de
seminários e palestras para profissionais de saúde
e organizações de defesa dos direitos da
mulher, em diversas localidades. Foi o que aconteceu recentemente,
no auditório do Centro de Atenção
Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp.
Pernas
bem fechadas É nessas oportunidades
que o médico aproveita para conectar o conteúdo
estatístico de sua pesquisa à cruzada contra
o que chama de abismo entre aquilo que a gente entende,
no nosso íntimo, por violência sexual, e
o que fazemos quando temos uma vítima à
nossa frente. Para isso, Ferreira vale-se de exemplos,
extraídos da experiência relatada pelas vítimas
e de seus próprios contatos com órgãos
públicos envolvidos com casos de agressões
sexuais.
....(-)
não aplicável.... |
Os
distritos policiais dão um ótimo início
de argumentação. Quem nunca ouviu
o jargão ninguém consegue abrir as
pernas bem fechadas de uma mulher?, indaga
o ginecologista. Por aí, vemos que a criação
das delegacias especializadas na defesa dos direitos das
mulheres, formadas exclusivamente por equipes femininas,
a partir de 1985, não foi um ato destituído
de propriedade. Elas vieram cumprir relatórios
de direitos humanos, principalmente dos EUA, a respeito
do pensamento policial vigente. Estava claro que não
era daquela maneira que as mulheres vitimadas queriam
ser vistas nos organismos policiais.
E
também é por onde se explica porque a maioria
não formaliza as queixas, observa. Segundo
o pesquisador, embora as delegacias constituam o principal
ógão responsável pelo encaminhamento
para atendimento (41,9% dos casos estudados), os crimes
sexuais ainda estão entre os de menor notificação.
Ele estima que de 80% a 95% das ocorrências não
chegam ao conhecimento das autoridades competentes.
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