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Campinas, maio de 2001 - ANO XV - N. 162.........
     
   
 

.Loucura encubada?

CARLOS TIDEI

Cadeia alimentar – “O Canadá nunca afirmou que existia vaca louca no Brasil. Eles somente alertaram para a necessidade do Brasil se adequar às exigências sanitárias internacionais. Com a importação de animais de países com registro da doença, era necessário comprovar que a carne destes animais não entrou na cadeia alimentar, o que não ocorreu”, explica Felício. Segundo ele, a transmissão da doença teve início na década de 80, quando países europeus modificaram o sistema de produção de ração animal que continha carcaças de ovinos na composição.

“A causa da EEB em gado foi identificada após o consumo desta ração, e a contaminação humana ocorre somente no consumo de elementos do cérebro ou da medula espinhal (que se situa ao longo da coluna vertebral), e também baço e gânglios linfáticos do animal”, destaca Felício, justificando a proibição de consumo de partes (cortes cárneos) com osso na Europa, como o T-Bone Steak e dos chamados materiais específicos de risco. As indústrias européias de fabricação de hambúrgueres e salsichas também estariam barateando os custos de produção com o uso de CMS (carne mecanicamente separada dos ossos) bovina nas suas formulações, mesmo sabendo que o produto possui resíduos de tecido nervoso da medula espinhal, o que pode ter provocado a transferência da doença para o ser humano.

Passada a crise diplomática, o Brasil saiu “vitorioso” em dois aspectos: a suspensão do embargo comercial do Canadá (após se adequar às exigências); e recebeu a melhor classificação de qualidade (nota 1 na escala de 1 a 4, onde o menor número é nota máxima) para comercialização de carne na Europa. Esta análise de risco, feita pelo Comitê Científico da União Européia, é específica do comércio com os países da Comunidade Européia, que reduziu drasticamente seus rebanhos. Com isso, as exportações de carne brasileira devem crescer. Na esteira da rejeição generalizada de carne vermelha, crescem também as exportações de carnes de frango e porco.

Órgão específico – Segundo Felício, no Brasil já foram esgotadas as possibilidades de o Ministério da Agricultura cuidar com eficiência da fiscalização da qualidade da produção bovina, nos segmentos de produção e indústria, e do Ministério e secretarias de Saúde, no segmento de varejo e restaurantes. “O governo deveria ter um órgão específico, a exemplo dos existentes em países desenvolvidos, para cuidar do controle e fiscalização, uma empresa estatal com profissionais de carreira científica, além de técnica e administrativa, e programas definidos de defesa sanitária para o País”, defende o professor da Unicamp. Ele critica a figura do ‘responsável técnico’, criada quando o Governo Federal delegou poder a Estados e Municípios para nomear profissionais sem treinamento específico (contratados pelas empresas) para a fiscalização. “O governo não contrata inspetores desde 1975, e retomou a convocação, a título precário, somente no final ano passado”, acrescenta.

A população da Europa entrou no novo milênio em pânico diante da confirmação laboratorial de 19 novos casos de EEB em humanos na Alemanha, Espanha, França e Itália, entre outros países. Numa atitude inédita na política mundial, o governo alemão, acusado de negligência nas medidas preventivas contra a EEB, demitiu os seus ministros da Agricultura e da Saúde, para aplacar a ira dos consumidores. A paranóia generalizada foi iniciada já em 2000, com 7 casos na Alemanha, 9 na Bélgica, 2 na Espanha, 162 na França, 152 na Irlanda, 136 em Portugal e 33 na Suíça. Até 300 franceses poderão morrer antes que a doença seja totalmente debelada, já que seu período de incubação é de 2 a 20 anos. O consumo de carne caiu abruptamente nesses países.

Foco de scrapie – No Brasil, descobriu-se em ovinos um foco de scrapie – referência à expressão inglesa “to scrape against something”, que significa “esfregar-se contra alguma coisa”, um dos sintomas dos animais doentes. Isto exigiu a eliminação de um rebanho de centenas de ovelhas no sul do Paraná no início deste ano. O fato chamou a atenção da imprensa e apareceram declarações como esta: “O Ministério da Agricultura informa que não há ligação entre as duas doenças”, a scrapie e a EEB. “O que é um erro grosseiro, já que a scrapie é uma encefalopatia espongiforme transmissível que, presume-se, tenha dado origem à EEB no Reino Unido, na década de 80”, alerta o professor Felício. Conforme o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), a scrapie é endêmica nos ovinos e caprinos do mundo todo, com exceção da Austrália e Nova Zelândia. Não foram registrados, no entanto, contaminação pelo consumo da carne destes animais.

Estudos revelam que há uma mutação na doen-ça quando adquirida pelos bovinos, resultando aí a possibilidade de transmissão para humanos. “Foram desvendados alguns mecanismos da doen-ça, embora não se entenda como ocorre a transformação original. O defeito na partícula protéica (prion celular) faz com que, por razões ainda desconhecidas, a proteína estranha induza a normal a se tornar aberrante, acumulando-se no cérebro. Trata-se de um novo tipo de infecção não viral que afeta bovinos, felinos e humanos”, simplifica o professor Farfan.

 

 

Demência identifica doença

Conhecida na Europa como BSE (sigla de “Bovine Spongiform Encephalitis”), o mal da vaca louca tem características semelhantes à doença de Creutzfeldt-Jakob (CJD), muito rara, identificada em humanos no início do século. A incidência desta doença endêmica, de causas desconhecidas, é de um caso por milhão de habitantes ao ano, e suas formas de transmissão são também raras, ocorrendo somente em casos de transplantes de órgãos e transfusões de sangue ou de derivados dele. Outras doenças consideradas da mesma família são o Kuru, identificado na Nova Guiné e transmitida pelo primitivo hábito de canibalismo da tribo Fore (as mulheres eram mais afetadas porque comiam o cérebro dos inimigos); a GSS (Gertsmann-Straussler-Scheinker Syndrome), associada a um gene autossômico dominante; e a Fatal Familiar Insomnia, insônia fatal que ocorre em indivíduos da mesma família.

Recentemente tem sido descrita em humanos uma nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (NVCJD), possivelmente ligada ao consumo de animais contaminados. Os sintomas apresentados na NVCJD e CJD também são bastante parecidos: “A CJD apresenta-se como uma síndrome demencial, caracterizada por alterações cognitivas do paciente, tais como alteração de memória, perda de orientação de direção, dificuldades de linguagem, alterações comportamentais e ataxia (falhas na coordenação motora e falta de equilíbrio)”, enumera o neurologista Carlos Guerreiro, do Hospital das Clínicas da Unicamp.

As diferenças com outras doenças que apresentam demência, no entanto, surgem com sintomas precoces que se instalam rapidamente, acompanhados de mioclonias, que são abalos musculares parecidos com sustos repetidos, mais comuns na doença clássica (CJD), enquanto a doença va-riante (possivelmente associada com a doença da vaca louca) se revela mais pelas anormalidades psiquiátricas graves no início do quadro. “A clássica, ou esporádica (CJD), atinge geralmente pacientes com média de 60 anos, e no início pode ser confundida com o mal de Alzheimer, comum em pessoas idosas. Já a nova va-riante (possivelmente associada à BSE) tem sido registrada em pacientes mais jovens, com idade média de 29 anos, na Europa”, acrescenta Guerreiro.

Com a evolução do quadro clínico o óbito ocorre invariavelmente, e demora cerca de 14 meses nos casos da nova variante, e apenas cinco meses nos casos da doença esporádica, CJD. “Infelizmente não existe tratamento, e também um diagnóstico 100% preciso somente é possível com uma mostra do tecido cerebral. O eletroencefalograma é capaz de confirmar o diagnóstico em 94% dos casos de doença clássica, mas na nova variante não apresenta o padrão típico da doença”, detalha. Outros métodos de diagnóstico são a análise do líquido cefalorraquidiano (líquido da espinha) e a ressonância magnética. Se for detectada a proteína 14-3-3 no líquido é confirmada a doença. A ressonância também pode apresentar alterações. “A placa amilóide difusa está presente em todos os casos da nova variante da doença, já em relação à clássica, aparece em apenas 10% das ocorrências”, especifica Guerreiro.

Ainda um mistério – Para o especialista, as doenças priônicas ainda são um mistério para os cientistas e, as formas de combate às anomalias, um desafio para os pesquisadores. “Sequer temos certeza absoluta da contaminação pelo consumo de carne da vaca louca, embora esta possibilidade seja a mais provável”, pondera. As duas formas de encefalopatia demoram para se manifestar, e o tempo médio de encubação varia de 5 a 10 anos. Os primeiros casos em bovinos começaram a aparecer em 1986, e os diagnósticos em humanos foram registrados em adolescentes do Reino Unido, em 1996.

O Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp tem poucos casos confirmados da doença clássica, anteriores à epidemia de BSE em bovinos. Doenças causadas pelo prion em ovelhas e cabras (scrapie) são conhecidas há mais de 200 anos. Existem registros também de anomalias semelhantes em gatos e alces.

 


A (in)versão da imprensa

“Para falar claro: se um cidadão canadense for contaminado pela doença da vaca louca e houver prova de negligência, o governo cai em 24 horas”.

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A (in)versão da imprensa

“Não é a vaca que está louca: incomodado com o crescimento da Embraer, o Canadá parte para a retaliação e inventa que a carne brasileira está contaminada. Por trás da manobra está o bilionário mercado internacional de jatos de pequeno porte”. (Veja)

“Em guerra com o Canadá: Não há um só caso comprovado da doença no país. Existe, sim, um duro embate do Brasil com o Canadá pela liderança continental na venda de aviões de médio porte.” (Época)

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A voz do Brasil

“Se eles quiserem guerra, terão guerra”, disse o presidente Fernando Henrique Cardoso, em horário nobre da televisão em 07/02, referindo-se às autoridades do governo canadense.

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