Fraterno
ÁLVARO
KASSAB
Foi
uma quarta-feira diferente para Almir da Silva Pinheiro,
grafiteiro do Jardim Maria Rosa, periferia de Campinas.
Sob um sol inclemente que tomava todo o Teatro de Arena
do Instituto de Artes, Almir foi o protagonista do projeto
Conversa de Rua, promovido dia 18 de abril pelo Laboratório
de Estudos Urbanos da Unicamp (Labeurb). Entre jatos de
precisão cirúrgica de spray na tela branca
e acordes do grupo Rap Company saídos de um aparelho
colocado na beirada do palco, o grafiteiro expôs
ao público sua trajetória, um caldeirão
de influências cujas raízes estão
no trabalho comunitário.
Almir cresceu ouvindo as histórias contadas nas
reuniões da Pastoral das Mulheres Marginalizadas,
da qual fazia parte sua mãe, catequista da Comunidade
Eclesial de Base (CEB) da Igreja Católica, voz
dissonante no compadrio beneficente que assola os bairros
da região dos DICs, uma das mais pobres e violentas
de Campinas. Do engajamento em campanhas da fraternidade
e de conscientização à arte foi um
pulo. Primeiro, os palcos onde eram encenados os problemas
da comunidade. Do teatro, Almir ingressou há três
anos no movimento hip hop, celeiro da resistência
cultural e porta de entrada do universo do grafite. Muros
depois, ele engajou-se na ala mais consciente do movimento,
responsável por oficinas em comunidades desassistidas,
hospitais e até em unidades da Febem.
Segundo
Eni Orlandi, professora do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL) e coordenadora do Labeurb, relatos como o de Almir
são a essência do projeto Conversa de Rua,
parte de uma ampla pesquisa batizada O sentido público
no espaço urbano. O trabalho se propõe a
compreender os processos sociais por meio da linguagem,
sem dispensar a contribuição de intelectuais
de outras áreas. O ouvir a rua, na
análise de Eni, desmonta, de uma certa forma, os
efeitos do discurso linear e batido sobre a violência
urbana, mostrando que há formas interessantes de
manifestações na cidade.
O
grafite, na opinião da coordenadora do Labeurb,
é importante por revelar, do ponto de vista da
linguagem, a constituição de um sujeito
social diferente, relacionado às mudanças
nas relações entre a sociedade e as novas
tecnologias. Acho que o grafite e outras formas
populares de linguagem mostram as novas maneiras de dizer
e de significar, que são muito importantes. A gente
precisa ficar atenta a elas para compreender que sujeitos
somos em relação a essa sociedade,
diagnostica Eni, autora da pesquisa Falas Desorganizadas,
trabalho que, segundo ela, desmancha um pouco a
idéia de que a linguagem é uma coisa homogênea.
Eni
não tem dúvidas de que o espaço social
está sendo silenciado em nome do entorpecimento
dos sentidos e, principalmente, da separação
deliberada entre o erudito e o popular, entre o formal
e o informal. Esse jogo maniqueísta impede que
sejam percebidas novas manifestações gestadas
dentro da sociedade, alimentando uma rede de preconceitos
e de intolerância que invariavelmente culmina na
segregação. Para ela, que trabalhou com
poesia urbana e com rap, o exemplo de como o último
é visto é emblemático. Você
não pode dizer que o rap é informal. Ele
é criativo, muito elaborado. Mexer com isso não
deixa de ser uma forma de deslocar, de tentar dar espaço
aos sentidos que estão sendo colocados.
A
pesquisadora aposta que, dos sentidos que emergem, vão
surgir novas formas de relação com o espaço
urbano, que resultarão numa melhor condição
de vida, não apenas para seus protagonistas, mas
para todos. O investimento mais forte do Labeurb
é quebrar essa coisa de falar para não dizer,
falar para não significar, para não deixar
significar. É preciso falar para encontrar sentido
nessas relações dentro da cidade.
Definição que se aproxima daquela que Almir
tem da livre expressão. A gente é
que nem água, onde tem uma fresta a gente está
entrando.
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No
laboratório
Eni Orlandi
Por
meio dos estudos da linguagem você consegue
compreender processos sociais importantes, inclusive
aqueles que desembocam na violência. Ao invés
de tomar a violência como algo já pronto,
a gente começa a trabalhar antes, percebendo
como no social vão se produzindo sentidos que
acabam concorrendo para isso
As
pessoas têm razão em querer se proteger,
só que no mesmo gesto de proteção,
sobretudo nos bolsões, elas estão se
expondo, porque o social fica descoberto
Trabalhamos
com a linguagem funcionando na sociedade e na história,
e não como gramática fechadinha, mas
sim como ela é vivenciada pelos sujeitos, dentro
do espaço de vivência .
Precisamos
conhecer bem essa coisa sobre a qual estamos falando.
Ao invés de a gente tratar as pessoas como
objeto de pesquisas, a gente resolveu fazer o inverso,
isto é, trazê-las para dentro da universidade,
para que elas tenham possibilidade de falar sobre
suas experiências, discutindo com a gente o
nosso projeto.
A
criação de uma entidade é uma
forma política de a gente cobrar. Se pagamos
impostos, se a tinta que a gente compra tem imposto,
nada mais justo que a gente exija algo em troca do
governo. Seja em espaço ou evento.
A
classe média produz e consome cultura enlatada.
Quando produz, espera retorno. A gente não
faz arte esperando retorno, mas sim para conscientizar.
O
contato com a universidade é interessante por
que a gente fica próxima de um público
que tem outra visão. É um contato que
possibilita, também, a troca de idéias
com outros artistas.
Tenho
um pé atrás com a mídia. Muitas
vezes ela distorce tudo, fica apenas no que é
interessante para ela, naquilo que está na
moda. O grafite não é modismo, é
mais que rolo, spray e latex. Modismo é massificação
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