Vazio regimental abre caminho
para a primeira grande crise
Jornal acusa o reitor de governar com “punho de ferro”
e chama Zeferino de “senhor de baraço e cutelo”
EUSTÁQUIO GOMES
ANOTÍCIA DA EXONERAÇÃO de Fausto Castilho da direção do instituto caiu como uma bomba no ninho de filósofos, sociólogos, lingüistas, antropólogos e cientistas políticos. Os economistas já estavam prevenidos e deram a situação como boa: apenas trataram de não demonstrar seu contentamento. Para os demais, no entanto, aquilo soou como golpe, embora não houvesse nada que regimentalmente impedisse Zeferino de fazer o que fez. Para começar, a Unicamp não tinha regimento próprio vinha usando o estatuto da USP “no que coubesse” e o anteprojeto de estatuto preparado por Friedrich Brieger estava bem guardado na gaveta do reitor. E como também não havia eleições internas, não se cogitava de mandatos. Zeferino considerava como dele todos os cargos diretivos.
É ilustrativo o curto diálogo que com ele manteve o sociólogo Manoel Tosta Berlinck, no início de 1972, quando este foi convidado a assumir o posto de Castilho provisoriamente ocupado por Ferdinando Figueiredo. Berlinck, ao constatar o espinheiro em que se metia, e já sonhando com um futuro em que seria somente professor da Unicamp, desabafou:
Sei que estou aqui para resolver uma questão institucional. Quero um mandato.
Zeferino só não foi completamente ríspido porque atenuou o tom de voz:
Mandato, não. Aqui quem manda sou eu.
Da mesma forma que admitia professores e funcionários passando ao largo dos concursos, também exonerava ou demitia sem muita cerimônia, bastando que um contrato vencesse ou que seu interesse por um servidor diminuísse. Para complicar, os contratos de professores na Unicamp valiam só por dois anos, podendo ser renovados ou não de acordo com a conveniência, o humor ou a qualidade das relações entre contratante e contratado. Não havia carreira docente e, como também não havia fóruns de deliberação nos institutos e faculdades, era impossível realizar concursos para provimento de cargos. Os contratos eram feitos em regime jurídico indefinido, nem celetista nem estatutário. Em suma, havia uma situação de forte instabilidade e o medo das rescisões inesperadas estava presente em cada um, mesmo que, em princípio, cada caso devesse passar por um trâmite interno que incluía um conselho técnico, o reitor e o Conselho Diretor.
Zeferino considerava essa informalidade contratual necessária naquele estágio de formação da universidade, pois com tantas cabeças trazidas de tantos lugares em condições excepcionais justificava era preciso confiar ao tempo a tarefa de dizer quais tinham se adaptado a seu projeto. O contrário disso seria engessar o projeto e congelar a instituição nascente. Até que soubesse com quem a instituição podia contar, ele, Zeferino, seria o estatuto.
Essa situação, mais até do que a questão do mandato do reitor, estava no centro da preocupação dos descontentes. Não faltou mesmo quem preferisse demitir-se para evitar, mais adiante, a humilhação de não ter seu contrato renovado. Foi o caso do diretor do Hospital das Clínicas, Gustavo Murgel, e, dois anos antes, do físico Luiz Guimarães Ferreira, que enviara um ofício explosivo a Zeferino acusando a Unicamp de não ter política salarial, de burlar a lei de contratos e de criar cargos de direção para pessoas que não tinham ninguém para dirigir ou orientar. E informava que seu grupo, aviltado e desgastado, considerava a possibilidade de bater em retirada:
Ou Campinas tem lugar para este grupo sem inferiorizar seus elementos, ou pretende comprar bananas e neste caso eu sugiro o Ceasa.*
O vazio regimental da Unicamp chegou ao conhecimento público no início de 1972, quando a imprensa de Campinas noticiou a demissão de quatro professores do Instituto de Matemática, reduto de Rubens Murillo Marques. A instabilidade trazida pela prisão de Murillo, sua exoneração da direção do instituto, a demora da nomeação de um novo diretor e velhas diferenças internas vinham minando o terreno do Departamento de Estatística havia meses. Insatisfeitos, os quatro professores se declararam demissionários. Instalou-se uma situação confusa em que Murillo acusava os professores de inviabilizar a ministração de seus cursos e estes acusavam Zeferino de antedatar o ofício rescisório e de demiti-los oficialmente. O fato é que, em 10 de março, com o ano letivo já em curso, as vagas dos quatro demitidos ainda não haviam sido preenchidas. Esperava-se a chegada do novo diretor, Ubiratan D’Ambrósio, para que a situação fosse resolvida. Enquanto isso, a crise ameaçava alastrar-se para outras unidades porque a Matemática, sendo um instituto central, recebia todos os alunos dos quatro primeiros semestres. Centenas de estudantes estavam sem aulas de estatística. Sentindo-se lesados, os demissionários foram à Justiça e deram publicidade ao assunto através do Diário do Povo, o jornal local que tinha como proprietário José Augusto Roxo Moreira, inimigo declarado de Zeferino. De resto, diziam que Zeferino ameaçara enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional.
O jornal passou a tratar o episódio no contexto de uma crise mais ampla e dedicou ao assunto uma série de artigos desfavoráveis a Zeferino. Começou denunciando a existência na universidade de “altos funcionários que, sob as vistas complacentes e estimulantes do reitor, devendo residir em Campinas, permanecem em São Paulo deleitando-se em viagens entre uma cidade e outra em veículos do Estado”. Qualificava de “servidores com vocação turística” a parte do gabinete da reitoria que trafegava diariamente pela rodovia Anhangüera, buscando atingir também, provavelmente, os economistas que serviam ao secretário estadual da Fazenda Dilson Funaro. Referia-se à Universidade de Campinas, que não tinha ainda seis anos de vida, como um feudo a serviço do “mandonismo pessoal” de seu reitor:
Pois não é ali que lavra, há anos, uma crise que mais nítida se torna quando a negam os que a embalam nos braços, movidos pela fúria do autoritarismo, pela vaidade indissimulável, pelo vedetismo das piores conseqüências?**
O artigo, não assinado, relata que na turbulência provocada pelo vazio regimental da Unicamp houve, a partir de julho de 1969, “um momento de esperança” quando foram fixados por decreto prazos para a aprovação do regimento geral e dos regimentos dos institutos e faculdades”. Mas essa esperança, prossegue o articulista anônimo,
logo se desvaneceu, pois o prazo para a aprovação do regimento geral do qual os outros dependem expirou em outubro de 1969. Depois dessa data, o reitor tem impedido através de toda sorte de manobras de bastidores que o Conselho Diretor discuta e aprove o anteprojeto elaborado por uma comissão de alto nível eleita pelo próprio Conselho. O anteprojeto se encontra há dois anos nas mãos do reitor, que o engavetou, na condição de presidente do Conselho.
Ressalta o jornal que, para suprir a ausência de leis internas, o reitor vinha “recorrendo cada vez mais a portarias que eram o sucedâneo do Regimento Geral, invadindo áreas de competência do Conselho, dos diretores de instituto e faculdades e dos colegiados”. Assim, estavam em suas mãos desde a matrícula dos alunos até a distribuição e aplicação do orçamento. “Como nas gastas oligarquias de outros tempos, na universidade o senhor reitor é o dono absoluto de baraço e cutelo”, opina o articulista invisível.
Governando a instituição com punho de ferro, desrespeitando as normas estabelecidas sem qualquer preocupação, estaria a Universidade de Campinas, pela ação do sr. Reitor, sendo transformada aos poucos num campo de descontentes.
Suspeitando que o jornal estivesse sendo municiado por fontes internas, dada o rebuscamento da linguagem e a especificidade dos argumentos, Zeferino tratou de recorrer a seus aliados na imprensa para retrucar à altura.*** No Correio Popular havia um, o editor-chefe Carlos Tontoli, que integrava o Conselho Diretor como representante da comunidade externa. Enquanto o Diário do Povo tratava de demolir a reputação do reitor, o Correio cuidou de fortalecê-la. É assim que os leitores do Correio são informados de que “o professor Zeferino Vaz será o conferencista oficial das comemorações do aniversário da Revolução na Escola Preparatória de Cadetes”. No dia 21 o mesmo jornal publica um artigo fortemente laudatório de Francelino F. S. Piauí intitulado “Zeferino Vaz, o semeador de universidades”.
Tampouco no campus faltou mobilização para neutralizar o que se supunha fosse uma investida externa de inimigos internos. Cerqueira Leite, por exemplo, contestou prontamente o Diário quando foi arrolado entre os que apoiavam a substituição do reitor. Encaminhou uma carta de esclarecimento ao dono do jornal, Roxo Moreira, negando a reportagem e refutando as críticas de inoperância que o jornal fazia ao reitor. Terminou convidando Roxo a visitar o campus para ver de perto “o dinamismo e a quantidade de pesquisas em andamento”. Roxo negou-se a publicar a carta sob o argumento de que o jornal não havia falado mal de Cerqueira. Essa curiosa reação de Roxo teve como conseqüência a publicação da carta como matéria paga no jornal concorrente, por iniciativa de Zeferino, e um abaixo-assinado dirigido ao Diário do Povo, com a assinatura de 36 professores do Instituto de Física, em apoio ao reitor.
Zeferino sabia que enquanto a polêmica se restringisse à imprensa de Campinas seu prestígio nos círculos de poder nada sofreria. Além disso, na imprensa em geral, a correlação de forças pesava a seu favor. No Estadão ele contava com a amizade segura de Roque Spencer e a lealdade do repórter Roberto Godoy, que também atuava como seu assessor de imprensa. E na Folha havia ninguém menos que Cerqueira Leite, conselheiro do jornal e interlocutor privilegiado de Otávio Frias de Oliveira. Não por acaso, no dia 26, este jornal paulistano estampava extensa reportagem mostrando a Unicamp como uma “usina de pesquisas” e atribuindo a Zeferino “um novo estilo” de administrar. Era a resposta graúda, contundente, ampla, a uma rusga de província.
As forças do pequeno Zefa estavam, de fato, intactas. Isso explica por que, meses depois, quando o deputado estadual Del Bosco Amaral, do MDB, veio a Campinas para interpelar o ministro da Educação sobre a legalidade do mandato de Zeferino e “a situação de crise em que estava mergulhada a Unicamp”, Jarbas Passarinho respondeu:
Conheço de longa data o professor Zeferino Vaz e sua obra. Não vejo razões que levem o reitor a deixar seu posto. Por sorte Zeferino não é meu subordinado, pois se o fosse eu o colocaria no cargo definitivamente.
* Luiz Guimarães Ferreira trocou a Unicamp pela USP no final de 1970. Em 1990, voltou à Unicamp como professor concursado, religando-se à área de física do estado sólido.
** Diário do Povo de 14 de março de 1972.
*** Em depoimento ao autor, o jornalista e vereador Romeu Santini, chefe de redação do Diário do Povo em 1972, admitiu que os artigos não-assinados contra Zeferino chegavam ao jornal já editados e titulados. Sua autoria era desconhecida da redação. O próprio dono da empresa, Roxo Moreira, mandava compô-los.
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