MANUEL ALVES FILHO
A regulamentação dos planos de saúde, ocorrida a partir 1998, produziu sensíveis transformações no setor de saúde suplementar do Brasil. Entre as mudanças introduzidas pela legislação estão: estabelecimento de regras mais claras para a entrada e saída de empresas, exigência de garantias financeiras por parte das operadoras, criação de mecanismos que impedem a quebra unilateral dos contratos e proibição da exclusão de doenças. Nesse novo contexto, ganharam tanto os consumidores quanto as empresas sérias que atuam no segmento de planos de saúde. A avaliação é do médico sanitarista Fausto Pereira dos Santos, que acaba de defender tese de doutorado sobre o tema na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Santos, que foi orientado pelo professor Emerson Elias Merhy, é o atual diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão regulador vinculado ao Ministério da Saúde.
Setor de planos
de saúde tem
2 mil operadoras
e 37 milhões
de beneficiários
Em seu trabalho, o pesquisador analisou todo o processo de implantação da regulação pública no setor de saúde suplementar. De acordo com Santos, este processo foi marcado pela tensão entre os vários atores envolvidos com a questão, notadamente as operadoras de planos de saúde, prestadores de serviço (hospitais e clínicas, por exemplo), órgãos de defesa do consumidor e o próprio governo. Só para se ter uma idéia, o projeto de lei que tratava da matéria foi debatido durante cinco anos no Congresso Nacional. “A proposta aprovada pela Câmara e depois pelo Senado foi totalmente modificada por sucessivas medidas provisórias. Apenas três artigos originais foram mantidos. Isso, por si só, demonstra o potencial de conflitos envolvidos no processo”, afirma.
O modelo regulatório adotado no país, no entender do presidente da ANS, trouxe “evoluções nítidas” para a área da saúde suplementar. “As mudanças apontam para um setor mais equilibrado e transparente”, sustenta. Santos admite, porém, que ainda é possível aperfeiçoar a operação. Ele lembra que a possibilidade de os detentores de planos individuais e/ou familiares mudarem de uma operadora para outra está fortemente limitada pela necessidade do cumprimento de novos períodos de carência. “Esta limitação leva a uma falsa fidelização, deixando o beneficiário ‘refém’ da empresa”. Na entrevista que segue, o presidente da ANS detalha as análises que fez sobre os resultados da regulamentação do setor de saúde suplementar, que reúne hoje perto de 2 mil operadores, responsáveis pelo atendimento de aproximadamente 37 milhões de consumidores.
Jornal da Unicamp – Como era o setor de saúde suplementar no país antes da regulação?
Fausto Pereira dos Santos – As principais características eram a heterogeneidade dos contratos, com um perfil de exclusões de várias doenças, materiais e procedimentos. As regras de reajuste anual e por faixa etária eram livres e usava-se e abusava-se do rompimento unilateral dos contratos. Somente as seguradoras eram reguladas do ponto de vista econômico pela Susep [Superintendência de Seguros Privados]. As demais operadoras não tinham nenhuma regra de garantias financeiras para os beneficiários e prestadores de serviços. Também não existiam regras para entrada e saída das empresas.
JU – Que fatores concorreram para o advento da regulação? Quando isso ocorreu?
Santos – As questões mais recorrentes versavam sobre aumentos de preços, negativa de atendimento e burocratização dos procedimentos para atendimento aos beneficiários e prestadores vinculados aos planos de saúde. Estes fatos, além da denúncia de problemas de solvência/falência de empresas operadoras de planos de saúde, evasão fiscal e a necessidade de controle/contenção dos preços da assistência médica, mobilizaram os setores governamentais para a aprovação de legislação específica. A lei que regulamentou os planos de saúde é a de número 9656, de 1998. Depois disso foram editadas medidas provisórias sucessivas até agosto de 2001, quando foi editada a última, em vigor até hoje. A lei que criou a ANS é a 9961, de 2000.
JU – Quais foram as principais mudanças promovidas pela regulação? Elas deram conta de resolver esses problemas?
Santos – São várias as mudanças, mas as regras de entrada e saída de empresas do setor, a exigência de garantias financeiras para a operação, a não-ruptura unilateral dos contratos e a proibição da exclusão de doenças, com a ANS editando um rol mínimo de procedimentos cobertos, são as mudanças que provocaram um maior impacto na operação do setor.
JU – O modelo adotado no país foi inspirado em alguma experiência internacional?
Santos – A regulação assistencial é bastante singular. Já a regulação econômica tem similitudes com a regulação de seguros no Brasil e em outros países.
JU – Como foram conduzidos os debates até a implementação da regulação?
Santos - Os debates no Congresso Nacional duraram mais de cinco anos. A proposta aprovada pela Câmara e depois pelo Senado foi totalmente modificada por medidas provisórias sucessivas. Apenas três artigos originais não foram modificados. Isso, por si só, já demonstra o potencial de conflitos envolvidos nesse processo.
JU – Quais tensões foram geradas entre os atores envolvidos com a questão?
Santos – São inúmeros os atores envolvidos. Vale destacar os grandes grupos, como as operadoras de planos de saúde (seguradoras e cooperativas médicas, por exemplo), os prestadores de serviços (hospitais, clínicas e profissionais de saúde), os órgãos de defesa do consumidor, o governo (Ministério da Saúde, da Justiça e da Fazenda), além de muitos outros. Estes atores defenderam posições muitas vezes antagônicas e a legislação surgida, sem dúvida, foi fruto do embate e das sínteses desses processos de disputa.
JU – Quais foram os principais beneficiados com as mudanças introduzidas pela regulação?
Santos – Sem dúvida os principais beneficiados foram os detentores de planos de saúde, visto que foram estabelecidas regras claras para o funcionamento do setor, regras de garantias financeiras e regras assistenciais que diminuíram ou minimizaram a assimetria de informações do setor. Outro setor beneficiado foi o das empresas sérias que operam no setor. Um mercado regulado permite uma concorrência mais saudável e um ambiente de operação mais estável.
JU – Quais foram os principais prejudicados?
Santos – Na minha opinião, não existiram prejudicados. Os empresários que enxergavam no setor uma forma rápida de ganhar dinheiro estão tendo gradativamente que mudar de postura ou abandonar a atividade, pois o estabelecimento de regras de operação impõe uma melhoria da gestão e leva a uma aposta de médio e longo prazo.
JU – O senhor considera, então, que o setor evoluiu desde o advento da regulação?
Santos – As evoluções são nítidas. Desde a existência de um sistema de informação que permite ao regulador um melhor acompanhamento do setor, passando pela maior segurança econômica das empresas, pela existência de regras para reajuste anual e por mudança de faixa etária, pela não-permissão da exclusão de nenhuma doença. Estas são questões que apontam para um setor mais transparente na sua operação.
JU – Que aspectos ainda precisam ser melhorados?
Santos – Nos aspectos gerais, destacamos os aspectos concorrenciais e de transparência da operação no setor. A possibilidade dos beneficiários de planos individuais e/ou familiares mudarem de uma operadora para outra, por exemplo, está fortemente limitada pela necessidade de cumprirem novos períodos de carência. Esta limitação leva a uma falsa fidelização, deixando o beneficiário “refém” da sua empresa. Ao mesmo tempo, isso dificulta o processo da concorrência, pois o beneficiário não dispõe da mobilidade necessária. Além disso, temos questões a resolver no que toca à auto-suficiência do setor (a efetividade do ressarcimento ao SUS e a renúncia fiscal), ao modelo de atenção à saúde (a remuneração por procedimentos e a fragmentação do cuidado, a não-incorporação da promoção e prevenção), a existência de planos anteriores à regulamentação, a insuficiência de alguns sistemas de informações e a não-regulação dos institutos públicos que estão fora da regulamentação, dentre outros.
JU – Que medidas estão sendo executadas ou estudadas para resolver os problemas remanescentes?
Santos – As medidas para o enfrentamento das questões levantadas anteriormente, todas elas de longa maturação, vêm sendo implementadas através de diversos projetos em andamento na Agência Reguladora. Algumas das medidas já em consecução para melhorar a performance do setor são: uma nova autorização de funcionamento para as empresas que já operam no setor; um novo formato para a transação de informações entre os prestadores de serviços, operadoras e a ANS; e a avaliação da qualidade assistencial dos serviços prestados pela operadoras e a satisfação do beneficiário.