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Artigo

A ANS e a saúde das operadoras

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

José Aristodemo Pinotti é deputado federal, professor titular de Ginecologia da USP, secretário municipal de Educação em São Paulo e foi reitor da Unicamp no período 1982-1986 (Foto: Neldo Cantanti)A regulamentação dos planos de saúde no Congresso atendeu aos interesses do sistema financeiro e obedeceu aos objetivos do governo de retirar sua responsabilidade sobre a saúde de importante parcela da população, privatizando-a inclusive para os que têm dificuldade de pagar. Quem elaborou o projeto foi a Abramge (Associação Brasileira de Medicina de Grupo). Ele foi colocado nas mãos de um relator sem qualquer experiência no assunto (deixaram o cabrito entrar na horta!) e defendido pela bancada governista, com ordem de não ceder. Isso foi feito contra a opinião do Conselho Nacional de Saúde, de todas as entidades de classes profissionais e associações de usuários que se manifestaram publicamente contrários.

Houve um conluio entre governo, banqueiros e planos de saúde contra a sociedade, tornando bastante lucrativos os planos a serem vendidos para a parcela da população da qual o governo queria se livrar. Foram aprovados planos parciais, exclusões imorais e aumentos desonestos nas mensalidades. Como deputado lutei para evitar essa imoralidade, mas consegui muito pouco. Agora, depois que o proletariado e a classe média os comprou e começa a precisar usá-los – pois doenças verdadeiras e graves acontecem –, os Procons, Idecs e jornais ficam repletos de reclamações e os governos que se sucedem vão tomando medidas episódicas e paliativas que em geral prejudicam ainda mais o usuário. Não há um só artigo original na regulamentação, que virou uma colcha de retalhos.

Na realidade, existem hoje três grandes prejudicados na questão dos planos de saúde: usuários, trabalhadores da saúde e hospitais prestadores de serviços. Todos em crise, sem organização e recursos suficientes para exercer pressão. E a quem o Governo Federal socorre através do BNDES e Banco do Brasil com vultuosos empréstimos e juros subsidiados? Planos e operadoras, possuidores de fortes lobbies, poupados e protegidos pela Agência Nacional de Saúde (ANS), autora da proposta de empréstimo e preocupada muito mais com a saúde financeira dos planos e pouco com a saúde dos usuários.

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Planos de Saúde, instituída no início da atual legislatura para avaliar seus abusos e distorções – comprovados pelo Idec, pela imprensa e pela própria CPI – concluiu agraciando-os com excessiva “compreensão e generosidade”, inclusive permitindo a continuidade dos abusivos 500% de reajuste entre as diferentes faixas etárias criado pela Medida Provisória 148 do Governo Federal, de dezembro de 2003, que expulsa os aposentados dos seus planos na idade em que mais necessitam.

Desamparados – Com desemprego de 20% e poder aquisitivo em queda, um número considerável dos 35 milhões de brasileiros que compraram planos não podem continuar pagando, não têm para onde ir e estão voltando para o SUS, hoje desfinanciado, mal administrado e adaptado àqueles que suportam filas, falta de acesso, mau acolhimento e demanda reprimida. Além disso os planos de saúde parasitam 15% a 20% dos atendimentos em hospitais públicos, fazendo seus usuários realizarem aí os procedimentos diagnósticos e terapêuticos mais complexos e caros, e não pagando o ressarcimento definido pela Lei 9656. Se a ANS cumprisse essa legislação, os planos deveriam devolver aos cofres públicos no mínimo R$ 1 bilhão por ano. Nestes últimos cinco anos, nem 5% disso foi recolhido.

Os médicos não têm aumento há oito anos, enquanto que nos últimos seis, os planos, segundo o IPEA, aumentaram as mensalidades em 332% acima da inflação. Os hospitais prestadores de serviço estão todos à beira da falência, pois recebem com vários meses de atraso, têm contas glosadas e não podem fazer cobranças por boletos bancários. Se reclamam, ambos – médicos e hospitais – são descredenciados sem explicações. A conseqüência mais séria é a perda de qualidade do atendimento ao usuário.

As operadoras afirmam que o índice de sinistralidade supera os 75% e, por isso, seu lucro diminui. Para sabermos se é verdade, deveríamos ter uma auditoria que a ANS não realiza. E mais, para diminuir esse índice, os planos deveriam fazer prevenção e detecção precoce e não o fazem. É mais fácil recorrer ao generoso BNDES.
O governo gasta R$ 40 bilhões/ano com 140 milhões de brasileiros pelo SUS; os planos já movimentam quantia superior para apenas 30 milhões de usuários – cinco vezes mais per capita – e com altos subsídios do próprio sistema público. E não há qualquer garantia se isso está ocorrendo para satisfazer necessidades dos usuários e remunerar com dignidade os médicos e hospitais, ou apenas para propiciar maior lucro às operadoras.
Esse auxílio significa, também, fusões, monopólio e internacionalização da saúde suplementar, proibida pela Constituição e paradoxalmente incentivada pelo Governo que oferece planos de saúde privados aos funcionários públicos, demonstrando falta de confiança na sua política de saúde enquanto cria freguês bom pagador para os planos.

Propaganda – Até propaganda enganosa a ANS fez a favor dos planos. Você já imaginou como seria bom se o governo, utilizando verbas públicas, pagasse a propaganda da sua fábrica, do seu restaurante ou do seu hospital, usando todos os dias vários minutos da Rede Globo e outras redes de televisão, duas páginas da Veja e da IstoÉ, amplos espaços nos jornais e rádios de maior circulação do País? Mesmo que seu negócio vendesse ilusão, você ficaria milionário.

Isso não é brincadeira de mau gosto. É exatamente o que a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (órgão público) fez em favor das operadoras dos planos de saúde, logo no início deste governo, estimulando os 18 milhões de brasileiros que adquiriram seus planos de saúde antes de 1999 a assinarem um novo contrato e pagarem, desde logo, de 15% a 25% a mais na sua mensalidade e caírem todos na armadilha das faixas etárias que até os 59 anos de idade aumentarão em seis vezes essa mensalidade. Um cidadão jovem que pagava R$ 300/mês pelo seu plano, ao atingir 59 anos pagará R$ 1.800, além dos aumentos da migração. Com um teto de aposentadoria de R$ 2.400, ele não terá outra saída: será obrigado a abandonar o plano no momento em que mais precisar dele.

A propaganda da ANS, usando recursos públicos, omitiu esses fatos quando teria obrigação de esclarecê-los, eles eram relevantes para os usuários. E mais: deveria dizer, também, que quem assinou planos de saúde antes de 1999 – se não está coberto pelos benefícios da Lei 9.656 – tem um contrato juridicamente perfeito, amparado pelo Estatuto do Consumidor e por toda jurisprudência formada por centenas de processos de pessoas que reclamaram da limitação do tempo de internação ou exclusão de determinadas doenças, contrariamente ao que determina a Constituição e que foram corrigidos pela Lei 9.656. Os planos, portanto, mesmo os anteriores a 1999, diferentemente do que dizia a propaganda, estão legalmente protegidos. Procon, Idec e Pro Teste estão aí para ajudar os usuários.

A ANS, fazendo propaganda sem dizer a verdade por inteiro, a fez de forma desonesta, demonstrando excessiva solidariedade às operadoras dos planos de saúde e pouca preocupação com a saúde dos usuários que, ao migrarem, além de pagar exageradamente mais, vão ter novas carências injustas (porque já foram cumpridas no passado) para fazer jus aos novos procedimentos. Agiu corretamente o juiz Roberto Wanderley Nogueira, de Recife, ao impedir, através de liminar, essa propaganda em todo o território nacional por considerá-la enganosa.

Tudo isso ocorreu com o conhecimento da Presidência da República, pois a Medida Provisória 148, de dezembro de 2003, atribuiu à ANS liberdade total para regulamentar a migração e essa Agência o fez apenas sete dias depois, nas vésperas do Natal, através de duas Resoluções Normativas (nº 63 e nº 64) – que contêm todas essas perversidades, sem discussão com qualquer das inúmeras entidades interessadas e antes da votação da MP no Congresso.

Fui relator dessa MP e propus medida de conversão – fartamente discutida com todos os estamentos envolvidos – que fazia a correção desses exageros, inclusive aqueles que atingem hospitais prestadores e médicos. Todos os discursos no plenário foram favoráveis, o governo encaminhou contrariamente e a medida não foi aprovada.

Triste país – O governo não teve constrangimento: veiculou propaganda enganosa, orientou votação desastrosa, continuou solidário com as operadoras e com os bancos, e não melhorou o SUS para dar cobertura aos egressos inadimplentes dos planos. Cumpri o dever, sem o espaço propagandístico da ANS, de prevenir o usuário incauto: não migre antes de conferir seu novo contrato por inteiro, principalmente os aumentos que decorrerão das faixas etárias e, se ele for pior que o que você tem, não assine. Ele não era obrigado a fazê-lo.

Triste país este onde a ANS gastou enorme dinheiro em propaganda para defender operadoras de planos, sem considerar os recursos de monta que não são ressarcidos por elas ao SUS, por inoperância da ANS que não cumpre sequer a Lei 9.656. Na realidade, por incrível que pareça, o pobre e insuficiente SUS está financiando as operadoras de planos de saúde em detrimento dos seus usuários, que são os mais necessitados, enquanto as operadoras protegem seus lucros, atendem os beneficiários com deficiência e explora médicos e hospitais. Tudo isso, sem qualquer interferência da ANS.

A classe média é expulsa do Sistema Público de Saúde e de Educação, obrigando-a a comprar no mercado sua cidadania já paga pelos impostos e, mesmo assim, é mal atendida. A par disso, oferece-se – usando a teoria da focalização – saúde e educação pobres para os pobres.

A solução fica a cada dia mais difícil e este governo parece não saber os limites da privatização sub-reptícia das políticas públicas fundamentais e da usurpação de direitos. Se quisermos resolver é necessário, além do diagnóstico, criatividade, eficiência e muita coragem para melhorar a qualidade dessas políticas públicas, até para abrigar nelas a classe média que está empobrecida e necessitada. Quando isso ocorrer, iniciaremos um círculo virtuoso, pois a classe média tem poder de controle social. A falta de reação organizada da sociedade, dos políticos e da imprensa a esses fatos, eticamente tão graves quanto os mensalões, é sinal de submissão, desesperança e alienação. Nada pior do que isso para a democracia.


Por estar em viagem, o autor do artigo desta página não conseguiu prepará-lo a tempo para que servisse de contraponto à entrevista do médico Fausto Pereira dos Santos, diretor-presidente da ANS, publicada na edição anterior.


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