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As feridas abertas da América Latina

Os presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela simulam pacto de paz em Puerto Iguazú  (Foto: Rodrigo Paiva/Folha Imagem)As questões desta reportagem foram formuladas no último dia 9 (terça-feira). Nos três dias subseqüentes, a temperatura aumentou. Primeiro, nos gabinetes e chancelarias; depois, na 4ª Conferência de Cúpula União-Européia-América Latina/Caribe, em Viena. No centro da polêmica, Luiz Inácio Lula da Silva e Evo Morales. A nacionalização do gás boliviano, que vinha sendo levada em banho-maria, assumiu contornos inesperados em razão da troca de acusações. Nesta e na próxima página, os economistas Cláudio Dedecca, Cláudio Shüller Maciel e José Maria da Silveira, todos professores do Instituto de Economia da Unicamp (IE), analisam com argúcia o cenário latino-americano.

Jornal da Unicamp – A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva foi recebida com euforia pela esquerda mundial. À época, a avaliação era de que emergia uma liderança regional cujos ecos revitalizariam um ideário desfigurado por sucessivos fracassos. Passados mais de três anos da posse, constatou-se que Lula está longe de exercer a liderança esperada. O que deu errado?

Cláudio Dedecca – O maior problema do governo Lula é a falta de ousadia. Eram esperadas ações mais significativas por parte do governo. Entretanto, é bom frisar, falar em ousadia não significa pregar atitudes radicais, mas sim o crescimento da economia, o fortalecimento do mercado interno e o reordenamento do sistema financeiro, com o objetivo de viabilizar um processo de desenvolvimento mais sustentado do país.

Ousadia aqui é sinônimo de definição mais clara de qual é o projeto político para o Brasil. Lula não fez isso. Mesmo tendo iniciativas importantes, trata-se de um governo que não ganhou fisionomia própria. Faltou uma marca, tanto no país como internacionalmente. Isso enfraqueceu enormemente a posição do governo Lula, inclusive no cenário regional. Mesmo porque, em vários países vizinhos, acabaram ocorrendo mudanças políticas que trouxeram alguma ousadia do ponto de vista de estratégias nacionais – é o caso de Hugo Chávez, Evo Morales e até de Nestor Kirchner e Michelle Bachelet. São presidentes que chegaram ao governo com uma visão clara do que pretendiam fazer com o Estado. O governo Lula foi tão opaco que, obviamente, não poderia liderar. Não havia um projeto a ser vendido.

Cláudio Schüller Maciel – O governo Lula pratica, em simultâneo, uma política macroeconômica muito ortodoxa, com baixo crescimento, e políticas limitadas de redução da exclusão social. Nos últimos anos, aproveitou-se pouco o comportamento muito favorável do comércio internacional, resultando uma presença internacional crescentemente mais acentuada, por exemplo da China e da Índia. Esperávamos um governo que resgatasse, internamente, estratégias de desenvolvimento. Sim, que pensasse o desenvolvimento, a marca da melhor tradição intelectual de nuestra América Latina.

Sob a hegemonia dos vassalos do dinheiro, no Ministério da Fazenda e Banco Central, o país tem sido espartilhado por “metas de inflação” e outras preciosidades dos “modelos” macroeconômicos próprios do Império. Há indicadores que apresentam melhoria, sejamos justos, mas longe de estar afastada a vulnerabilidade externa. Se a realidade fosse de crédito abundante, taxas de juros baixas, políticas industriais e tecnológicas seletivas, forte investimento infra-estrutural – energia, telecomunicações, transportes, habitação, saneamento – não só as condições de mercado interno seriam outras, mas também estariam sendo construídas oportunidades muito mais amplas para nossos vizinhos. Em uma América Latina pós-destruição econômica e de razoável descrédito neoliberal, de enorme acentuação das disparidades sociais, a integração patrocinada pelo Brasil precisaria ser muito mais profunda. A diplomacia brasileira sabe e pratica, a banca nacional/internacional dinamita e a presidência procura se encaixar em um figurino intermediário.

 José Maria da SilveiraJosé Maria da Silveira – Colocar o neoliberalismo como espantalho comum, que une os povos cujos governos erraram ao adotá-lo, é um argumento tão pobre quanto não perceber a evolução ocorrida sob o neoliberalismo, gerando, para o bem e para o mal, vários pontos de não-retorno que não podem ser resolvidos com retórica e voluntarismo.

Economias complexas como a do Brasil e da Argentina não funcionam com base em discursos. A ação estatal é necessária, mas de forma crescente o Estado é um facilitador de arranjos cooperativos e participativos que visam coordenar estratégias de longo prazo entre protagonistas de diferentes visões. Este ponto é fundamental, pois qualquer investimento, seja privado, seja estatal, passa hoje pelo crivo dos acordos participativos. O governo Lula incentivou este tipo de prática, mas, ao mesmo tempo, gestou uma serpente, uma cobrinha, que talvez esteja natimorta, mas que tinha a cara do dirigismo e do controle partidário sobre a economia.

JU – Há quem atribua o enfraquecimento da posição do Brasil no continente a equívocos cometidos na esfera da diplomacia. O senhor concorda?

Dedecca – Acho que a estratégia diplomática tem sido exitosa. O problema é que não há diplomacia que resista se o governo não tiver claro qual é a sua estratégia política. A diplomacia é apenas um instrumento de governo. Por si, ela não resolve os problemas que o país tem na relação com a comunidade internacional. Se o governo não tem uma estratégia clara do que pretende fazer com o país do ponto de vista de crescimento, se falta clareza de como será a relação com os segmentos empresariais internacionais, a diplomacia sai enfraquecida. A diplomacia não é o problema.

Maciel – Colocamos, sem rodeios, nossa profunda admiração pelos quadros diplomáticos do Brasil. Qual burocracia tem como patrono figura equivalente a José Maria da Silva Paranhos do Rio Branco? Qual país estabeleceu limites com tantos países como o Brasil o fez, limites selados pela diplomacia e que não originam atritos desde a primeira década do século XX? Nossos diplomatas cometem equívocos, por suposto, mas nossa política externa atual defende interesses nacionais. Em uma época de pensamento único, quando são vendidas imagens fantasiosas de globalização, fim do Estado-nação, término de barreiras, vende-se que não é bom a presença de quadros que ainda saibam pensar o nacional.

Menos ainda que se aventurem a dizer e praticar que, se nós não pensarmos nossos destinos, não há qualquer dúvida que o Centro continuará a fazê-lo, permanentemente, de acordo com os seus interesses. Daí os pretensos corpos estranhos: relações Sul-Sul, embora sem excluir relações de comércio e de investimento com o Norte; contraposição ao padrão de integração bilateral capitaneado pelos Estados Unidos e assim por diante.

Silveira – Unir os povos latino-americanos não deveria ser uma preocupação central de um governo brasileiro. Se ocorrer, que venha como resultado. Uma das características do governo Lula foi abrir muitas frentes de discussão, deixando por vezes questões cruciais em segundo plano.

O ponto de partida deveria ter como prioridade os ganhos de médio e longo prazo desta cooperação, com atenção à Argentina, em comparação com outras opções e mesmo com a trabalheira de gerir um amontoado de relações bilaterais e não uma idealização de uma suposta unidade cultural e sócio-econômica latino-americana, que se existe, é muito precária.
Há quem diga que liderar blocos sócio-políticos não é da tradição brasileira. O fato é que o Brasil é líder econômico e pode gerar uma situação chamada de “vencedor/vencedor” para os países próximos. O exemplo é o caso da Bolívia, em que investimentos da Petrobras poderiam ter o mesmo efeito benéfico que tiveram em várias regiões do Brasil.

Almejar a liderança política pode levantar suspeitas que atrapalhem o estabelecimento de contratos e os negócios. No caso boliviano, parece que o governo Lula superestimou o poder de sua liderança. Ainda é cedo para ter certeza de que tal erro foi cometido. O resultado das negociações será um indicador importante.

JU – Nesse contexto, Hugo Chávez assume cada vez mais o papel de protagonista. Que avaliação o senhor faz das posições adotadas pelo presidente venezuelano?

Dedecca – Chávez tornou-se protagonista porque as posições de Lula foram muito tímidas. Era natural que, na retomada das posições nacionalistas na América Latina, algum presidente assumisse o protagonismo regional. Lula não o fez, não mostrou um projeto para a integração da América Latina – sua conversa é difusa. Chávez, obviamente, cumpriu.

É importante destacar que a América espanhola tem características bastante distintas do Brasil. Esse componente é pouco discutido. Na América espanhola um candidato a presidente que promete alguma coisa, se eleito, precisa cumprir seu programa. Quando isso não acontece, ele é invariavelmente deposto. Nesses países, os movimentos sociais e populares não só estão mais presentes, como também muitas vezes assumem posições mais violentas.

Figuras como Chávez, Morales e Kirchner se elegem com um discurso e são obrigados, pelo tempo político, a cumpri-lo. Portanto, não há nada de novo. Quando Evo Morales nacionalizou as empresas, a imprensa chiou. Entretanto, ele foi eleito prometendo nacionalizar. Morales nada mais fez do que cumprir uma promessa de campanha. Mais do que isso: se não cumprisse, corria o risco de perder legitimidade rapidamente e até de ser deposto.

Cláudio Schüller MacielMaciel – O índio Chávez está deixando uma marca de atuação profunda na Venezuela: leis de hidrocarbonetos, de bancos, de terras, de microfinanças, de cooperativismo, de pesca, da costa e da água. Afirma-se resolutamente contra o neoliberalismo e o imperialismo. Será importante que a aliança energética e petroleira se consolide cada vez mais na América do Sul, posição que ele parece endossar fortemente. Quanto às relações com o Império e sua retórica inflamada, a história dirá se ele avançou demasiadamente o sinal.

Silveira – O presidente Chávez tem a oportunidade – quase sempre perdida por ditaduras latino-americanas no passado – de mudar a situação de pobreza e desigualdade de seu país, aproveitando os rendimentos do petróleo, que são finitos, mas finitos como no poema de Vinícius, enquanto durem. Pelas estimativas, essas reservas durarão muito, assim como o gás boliviano. Se esses países têm recursos para um horizonte superior a várias gerações, não tem nenhum sentido racionar o produto para ganhar no preço, sob a alegação de que no passado foram explorados por sua própria elite e por seus amigos internacionais. A resposta de um dirigente com inteligência é capacitar sua empresa, como fez a Petrobras, e não trocar, de forma ridícula, combustível por médicos, o que simplesmente torna clara a precariedade latino-americana. A liderança do presidente Chavéz não cabe na dimensão de países como Argentina, México e Brasil.

JU – O nacionalismo ressurgiu com força em pronunciamentos de Hugo Chávez, Evo Morales e até mesmo de Lula. Na sua opinião, trata-se de um discurso anacrônico legado pelo caudilhismo populista ou um direito legítimo inerente à soberania de um país?

Dedecca – A retomada do nacionalismo na América Latina deve-se ao fracasso, nos anos 90, das políticas conservadoras. Mesmo timidamente, o próprio Lula expressa esse renascimento. Não acho um discurso anacrônico. Vejo como uma reação à política adotada nos anos 90 nesses países, cujos efeitos foram desastrosos. Foram políticas que provocaram desemprego em larga escala, regressão em termos de padrão de vida dessas sociedades, situações de miséria alarmantes – é o caso da Bolívia e até mesmo de certas regiões do Brasil.

Portanto, a sociedade reage à política liberal dos anos 90 buscando defender seus interesses, que lhe são próprios. O nacionalismo nada mais é do que a defesa desses interesses particulares, no bom sentido – trata-se da defesa daquilo que é caro na vida do cidadão. Essa onda vai nessa direção. As eleições no Peru e no México, por exemplo, sinalizam que o tema vem polarizando o debate. Não vejo caudilhismo.

Maciel – Em resposta anterior, já expressamos identidade com o discurso “anacrônico”. Interessante seria conhecermos mais os discursos de chineses, coreanos, etc, pois foram “anacrônicos” praticantes de políticas ativas de desenvolvimento nas duas últimas décadas, com notável sucesso, enquanto a “moderna” América Latina amargou pífio crescimento. “Moderno” foi o México, é claro: assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (1994); deterioração das condições sociais, aparelho produtivo desagregado e produtor de bens de baixo valor agregado, déficit infra-estrutural, Estado incapacitado de atender positivamente as demandas sociais crescentes...

Silveira – Recomendo a leitura do livro O Rei de Girgenti, de Andrea Camillieri. A idéia de que basta ter razão, coragem e algum suporte para exercer comando e controle sobre a sociedade é tão primitiva quanto destrutivos são seus resultados. Há realmente problemas comuns que fazem dos “rentistas” vilões odiosos. Vender a prazo no Brasil em 60 prestações com juros de mais de 2% ao mês é crime contra a economia popular perpetrado diariamente, com a colaboração da ignorância e impaciência do povão, que por vezes distorce seu padrão de consumo atraído pela promessa de conforto dos bens duráveis. O resultado é a inadimplência e uma sensação generalizada de ilegalidade. Isto não é resolvido por ditadores, nem de forma voluntariosa.

Há um tipo de esquerda que vê nessas lideranças o produto do neoliberalimo. Este tipo de opinião condescendente com a pobreza das soluções políticas desses líderes carismáticos não vale quando questões concretas estão em jogo, como a possibilidade de estabelecer uma estratégia comum entre Petrobras e Bolívia que favoreça os dois países no longo prazo.

JU – Há quem veja uma trama urdida por Chávez, com a retaguarda de Fidel, contra os interesses do Brasil no recente episódio do gás boliviano. A versão é fantasiosa ou Morales foi mesmo induzido e/ou sugestionado a adotar as medidas?

Cláudio Dedecca Dedecca – É fantasiosa. É ingenuidade acreditar que Chávez e Fidel não vão apoiar Morales naquilo que ele fizer na defesa dos interesses nacionais da Bolívia. É importante destacar a posição bastante ponderada de Lula, entre todas as manifestações que vêm sendo feitas sobre o que tem acontecido na Bolívia. Ele tem reconhecido que Morales está fazendo aquilo que deve. Essa posição acabou criando inclusive um atrito entre o presidente e a Petrobras.

Se o apoio de Chávez e Fidel atropela os interesses brasileiros, paciência. Quando falam na hipótese de trama contra o Brasil, fica parecendo que ambos estão querendo dar um golpe. Não é nada disso, muito embora seja óbvio que Chávez esteja querendo assumir a liderança na América Latina. Essa disputa está em jogo, mas Lula e Kirchner também querem assumir esse papel. Não há nada de ruim nisso.

Morales foi eleito prometendo nacionalizar e tem, pela frente, outra eleição. Ele precisa manter a sua legitimidade junto à sociedade boliviana. Se ele não tiver uma estratégia que seja adequada ao seu tempo político, provavelmente perde a legitimidade. Sua iniciativa, que exige rapidez, é compatível ao tempo econômico. Trata-se de uma iniciativa convergente aos interesses do Chávez. Já Fidel, na situação de isolamento em que viveu durante décadas, endossa a postura de Chávez e Morales por motivos óbvios. Os atritos com o Brasil fazem parte da democracia.

Maciel – Não podemos ir pelo caminho do palpite ou da mera repetição de hipóteses ventiladas pelos meios de comunicação. No fundo, temos de cuidar para não desmerecer gratuitamente a figura de Morales e de sua agenda indígena, não? O grupo Andino é bolivariano pela história; são países que se agregaram na Comunidade Andina de Nações; carregam o desafio direto ou indireto do tráfico de drogas e das pretensões “enclavistas” dos Estados Unidos na Colômbia; tal como em outros países da América Latina, são povos cansados do caráter predatório de suas elites, desconfiados agudamente do Estado imerso em corrupção. Quanto ao ponto específico gás natural, a Bolívia registra um passado de lutas em torno da exploração de seus recursos naturais. Aliás, muitos fatos recentes: derrubada de Sánchez de Lozada, vitória plebiscitária esmagadora em 2004. Será que o dirigente máximo precisa de alguém que assopre estratégias políticas nos seus ouvidos?

Silveira – É correto pensar que a PDVSA tem interesses e compete com a Petrobras. Todavia, Chávez parece testar perigosamente a teoria do dominó. Talvez acredite que como ocorrido na Ásia, em que o poder da China se afirma de maneira inexorável, e que tal situação poderia ocorrer novamente. É importante perceber que crise social não falta em todos os países envolvidos, incluindo o Brasil. Assim, ao ridículo ideológico de uma esquerda troglodita corresponde uma situação social e política em frangalhos na maioria dos países latino-americanos.

No caso brasileiro, o problema é que nossa complexidade social permite a manutenção da ordem democrática e a articulação do narcotráfico com movimentos ditos revolucionários. O curioso é que é um mercado em que um lado fornece drogas e o consumidor financia as armas do narcotráfico. Não mais que negócios, mas que podem ser de grande utilidade em uma situação de desorganização social intencionalmente planejada. Deste ponto de vista, o governo Lula está sendo realista ao reconhecer que é melhor envolver-se que fingir que o problema não existe.

JU – Qual a sua opinião sobre a cobertura da mídia no episódio?

Dedecca – Acho lastimável. A mídia está desinformando. Primeiro, porque pinta Evo Morales como um sujeito diabólico, quando não o classifica como desequilibrado. Não é verdade. Morales foi eleito democraticamente. Segundo, porque bate na tecla de que o populismo está renascendo. Não é verdade. O populismo era um regime no qual as elites se elegiam e manipulavam os interesses populares. Morales foi eleito e é um representante legítimo da maioria da população. Há problemas em suas posições? Sem dúvida que existem, assim como há em posições adotadas por todos os governantes.

Cabe à mídia informar 1) quais são as possibilidades de ele se mover de outra forma, e 2) mencionar as dificuldades em torno da negociação acerca do gás, mostrando que houve sim vantagens de fato por parte da Petrobras na exploração de gás, sobretudo em termos de preços, de condições de compras de ativos na Bolívia. É preciso mostrar que obrigatoriamente esses preços precisam ser ajustados. É imperioso alertar que a Bolívia não tem tecnologia para tocar um projeto dessa natureza. Aliás, interessa aos bolivianos a venda do gás para a Petrobras. Trata-se, inclusive, de uma posição contraditória. Mesmo sendo um jogo que tem contradições explícitas, a imprensa não tem informado isso. A mídia, na verdade, tem criado um Judas.

Maciel – Via de regra, a cobertura – principalmente televisiva – esteve dentro do padrão atual da mídia: identificação total com o pensamento “único” neoliberal, portanto defensora da irrestrita liberdade de movimento e ganhos para a banca nacional/internacional e profundamente anti-republicana quanto à Cidadania para todos. Comentou uma conceituada revista semanal, Carta Capital, que só faltaram pedidos de invasão da Bolívia por nossas tropas... No caso específico do gás natural, trata-se de expropriação, nacionalização, enfim vocábulos execrados pela paz liberal dos mercados.

Silveira – Foi bastante extensa. Deu até para conhecer melhor o setor de energia, que não é minha área. A imprensa opera como replicadora, como nos modelos de jogos evolucionários. Você sabe direitinho qual será o argumento da Veja, do Estadão e da Carta Capital. A Folha mistura tudo a seu jeito. Há quem goste.

A alegria da imprensa é que o Governo Lula tem posições contraditórias no que tange ao que seria um projeto de desenvolvimento econômico e social do Brasil. O mesmo governo que passa um gasoduto na Amazônia faz um escândalo cada vez que um pequeno besouro é “retirado ilegalmente” pelas multinacionais....

JU – Jorge Castañeda afirmou recentemente (O Estado de S.Paulo, 30/04) que há dois tipos de esquerda na América Latina. De um lado, “a boa esquerda”, que seria “reformista, moderna e aberta a novas idéias”, a qual, segundo ele, estaria presente no Chile, e em parte das esquerdas brasileira e uruguaia. De outro, aquela representada por Chávez, Morales, Fidel e Kirchner, que seria “a esquerda burra, nacionalista, barulhenta e mentalmente fechada”. O senhor concorda com essa avaliação?

Dedecca – A posição do Castañeda é típica da arrogância intelectual. Não reflete a dinâmica política da América Latina. Trata-se de uma posição que despreza a história recente do continente. Fazer uma dicotomia entre a “boa esquerda” – que seria refinada e culta – e a outra, é muita pretensão. O que tem de novo nesses movimentos de esquerda da América Latina é que quem faz não é a esquerda da gravata, dos representantes poliglotas, mas sim aquela que representa um povo que não teve oportunidade de se organizar e de falar o que pensa. A sociedade culta não só estranha como vê nisso uma imoralidade...

Essa posição conservadora do Castañeda não tem pé nem cabeça. Você pode até questionar os rumos que parte da esquerda está adotando, mas é inegável que as experiências brasileira, argentina, venezuelana, boliviana, além de outras, são avanços democráticos extremamente importantes para a América Latina, inclusive no sentido de conformar partidos políticos e esquerdas mais consistentes. Isso faz parte da democracia.

Maciel – É fato – aparentemente curioso – que se voltou a falar, a recordar nostalgicamente os anos do pós-guerra no Brasil, em particular a implantação do Estado moderno por Vargas e a concretização do Plano de Metas no Governo Juscelino. Isso tem ocorrido, seguramente, não para endeusá-los ou adjetivá-los de paradigmas, mas para tentar reviver o sentimento de construção de um novo país, que vibrava então nos mais diversos recantos do Brasil.

Celso Furtado, no seu belíssimo livro auto-biográfico “Fantasia Organizada”, relata-nos como jovens, ele próprio, com máquinas de calcular modelo carrilhão, com máquinas de datilografar mecânicas, lançaram obstinadamente no papel projetos e ações radicalmente renovadores. Organizaram a sua fantasia, materializaram o que a “boa” teoria econômica condenava veementemente; afinal, nossas vantagens comparativas, nossa “vocação” supostamente agrícola, não se coadunavam com tamanha ousadia. E como deu errado! Crescimento de 7% entre 1930 e 1980...

O pensamento único quer que se esqueça esse passado. Seus briosos “think tanks”, a Heritage Foundation, Hudson Institute, Brookings Institution, etc, nos dizem: reformas liberalizantes ontem e amanhã. E hoje? Bem, hoje se pode diagnosticar alguns problemas por erros cometidos, falhas na aplicação, doses insuficientes dos remédios. No fundo, sem vínculos de causalidade reformas realizadas e problemas. A esquerda “burra” é anti-Consenso de Washington. Mas, que grata surpresa, um renomado professor de Cambridge, Ha-Joon Chang, precisou vir aos trópicos para nos lembrar que os países centrais querem nos proibir, a qualquer custo, de executar um conjunto assemelhado de políticas que, eles próprios, implementaram para a consolidação de sua industrialização.

Castañeda não acredita mais na esquerda “burra”. Sem dúvida, é integrada por seres calejados pela penosa contraposição entre seus anseios de mudanças e a lentidão com que as reais mudanças têm se verificado no mundo. Contudo, o que podemos dizer, construtivamente, aos jovens? A única utopia distinguível, neste delicado período histórico da humanidade, é o consumismo, com suas derivações de hedonismo, individualismo e segmentação social. Assim a defendem lideranças tão medíocres quanto temerárias.

Silveira – Não acho que esta dicotomia seja correta. Ela passa a impressão de que a “esquerda responsável” controla um tipo de crise social que motiva inclusive a desagregação da ação política. Pior ainda é se tal divisão implique em aceitar que a “esquerda” tenha que ser sempre prisioneira de políticas ortodoxas, como a única expressão da necessidade e das possibilidades de ação do Estado.

Novamente, a questão é mais complexa. Em primeiro lugar, a esquerda tem que reconhecer que sua primeira tarefa é combater a precariedade: das condições de vida, das instituições e mesmo da organização dos mercados. Segundo, tem que conseguir domar a explosão de demandas que caracterizam o mundo moderno. Veja a ação das organizações não-governamentais. Elas têm o potencial pós-moderno de comprometer qualquer plano de governo, principalmente quando radicalizam na defesa de seu ponto de vista.

JU – Talvez a América Latina nunca tenha tido tantos governantes de esquerda. Na mesma proporção, entretanto, irromperam as dissensões e as divergências entre as diferentes vertentes. Isto confirmaria a tese de que a união da esquerda é uma utopia?

Dedecca – Essas divergências são naturais. Não podemos imaginar que as condições políticas sejam fáceis numa região onde a tradição democrática é tão recente. É o contrário. Na verdade, estamos hoje aprendendo a construir a democracia e a entender as clivagens políticas que existem na sociedade.

Se na Igreja Católica, cuja tradição é milenar, a escolha do papa demora até uma semana, porque nós, que temos uma tradição tão recente de gestão do Estado e configurações democráticas, temos que achar soluções tão rápidas? Isso muitas vezes nós dói, no sentido de achar que seria mais agradável se os resultados fossem mais próximos daquilo que esperamos mas, porém, faz parte do processo. As dissensões eram esperadas, mesmo porque esse é um aspecto normal num momento em que os interesses nacionais estão sendo restabelecidos. É natural que haja um grau de tensão entre as nações. Não vejo nada de novo; não esperaria algo de muito diferente daquilo que a gente tem observado.

Maciel – O que está legado? A radicalidade da destruição econômica pelas elites predatórias latino-americanas, depois de uma década de dívidas externas tratadas como dívidas de guerras e de outra década, de açambarcamento do patrimônio público. Vinte e cinco longos anos desde 1980: crescimento tímido sem inflação pronunciada é a marca positiva recente, ao lado da gigantesca concentração da renda e dos ativos; desaparelhamento do Estado para universalizar o provimento de serviços infra-estruturais. Por força de duras lutas pelas conquistas democráticas, realizam-se eleições livres. Na academia, desaprendeu-se de pensar projetos nacionais de desenvolvimento; levas de economistas, por exemplo, escrevem trabalhos e mais trabalhos microfundamentando tudo.

Desafortunadamente, o esgarçamento do tecido social foi muito longe, os laços de solidariedade estão severamente partidos no interior dos países, a desconfiança em relação à democracia não é pequena. Na outra parte, a heterogeneidade de situações é fato relevante: Brasil, Argentina, países andinos... Em uma realidade de vulnerabilidade social e instabilidade política, há um longo aprendizado a trilhar. Não é trivial “furar” as barreiras da globalização, e o poder americano estilo Bush filho é assombrosamente assimétrico no jogo global.

Silveira – Novamente, o desejável é ter governos que assumam combater persistentemente a precariedade, ao mesmo tempo que sejam capazes de identificar potencialidades econômicas e de arranjos sociais que gerem situações de progresso e prosperidade. Unir a esquerda não é, portanto, prioridade, uma vez que um governo de “direita”, em tese, poderia estar alinhado na tentativa de romper os gargalos para o desenvolvimento.

O problema é que a direita que importa está encastelada no muro das finanças, vendendo promessas de rendimento que só poderiam ocorrer se a economia do futuro estiver sendo engendrada por algum tipo de ação pró-ativa do sistema financeiro. O argumento de que bancos saudáveis evitam crises financeiras, de que a lei de falência permite o crescimento das empresas é típico da direita que age protegida pela “necessidade” do sistema, que no caso é o verdadeiro mercado. É interessante perceber que os mercados produtivos são cada vez mais regulados – a despeito das declarações em contrário da direita econômica – e os mercados financeiros, para funcionar, cobrem sua quase completa liberdade de movimentação.

JU – Uma das maiores apostas do governo brasileiro, o Mercosul acumula revezes e dá sinais de esvaziamento. O Uruguai, por exemplo, ameaça abandoná-lo para abraçar o livre-comércio, opção feita com relativo sucesso pelo Chile. Dá para afirmar que o bloco caminha para o esgotamento?

Dedecca – Não acho que o Mercosul caminhe para o fim. Na verdade, ele segue aos trancos e barrancos, como ocorre desde a sua criação. As dificuldades, enormes, passaram a existir desde a definição das características básicas do projeto. Entre 1995 e 97, por exemplo, vários trabalhos do Mercosul não andaram. Foram poucos os que tiveram avanços mais expressivos. Na verdade, em grande medida, o Mercosul tem conseguido avançar naquilo que diz respeito à regulação do comércio intra-bloco. Outros elementos, entre os quais migração e a integração dos trabalhos regionais, não andaram um milímetro.

Há razões para que os governos o mantenham. É uma tarefa que tem se mostrado muito mais complexa do que se imaginava originalmente. Numa situação de debilidade econômica e social, seu avanço é dificultado porque causa, às vezes, certos conflitos entre países, os quais são decorrentes da precariedade interna.

Maciel – A “financeirização” da riqueza privada mundial encurtou sobremaneira o “longo prazo” dos investimentos: a rentabilidade em períodos curtos virou palavra de ordem. Ora, o “curto prazismo” não é bom horizonte para se analisar o Mercosul. A história da União Européia é a de um processo que precisou 50 anos para a obtenção da unificação mais complexa, a monetária. Nesse período, foram várias as estruturas montadas: Serpente Européia, Sistema Monetário Europeu, tratado de Maastricht; países entraram no bloco, saíram, reentraram. Enfim, “eles” que são os países centrais, com moedas conversíveis, etc e etc, precisaram de 50 anos para que chegassem à União Européia e ao euro. Aliás, com largos beneplácitos dos EUA na sua constituição.

Pois bem, governantes latino-americanos introduziram o Mercosul na década de 80, trombeteando que, em uns tantos anos, “seríamos todos irmãos”, inclusive com uma mesma moeda! Ocorre que os requisitos macroeconômicos para tal desiderato são enormes, principalmente pela vulnerabilidade externa dos países, pela escassa margem de manobra dos governos para execução de políticas autônomas, em um ambiente de escancaramento financeiro atentatório à soberania dos integrantes. Os grandes países do bloco – Brasil e Argentina – precisam ter outro encaminhamento para suas políticas macroeconômicas, com vistas ao desenvolvimento sustentado: políticas para a taxa de câmbio, controle de capitais, etc.
Apenas assim, conseguirão pensar um longo prazo mais concertado e despreendido para o bloco. Ao contrário, viceja hoje a picuinha de curto prazo.

Silveira – O Uruguai não abraçou o livre-comércio e sim propõe-se a estabelecer mais um acordo bilateral, no mar de acordos deste tipo. Note que o livre-comércio, como forma de alocar competências e vantagens pelos diferentes países do mundo, não dá garantia de bons resultados para nenhum país que não esteja preparado para fazer parte do jogo. As dificuldades do Mercosul refletem não só as diferenças de políticas, mas as contradições e os percalços vividos pelos países do bloco em um mundo cada vez mais competitivo. A tentação para desviar do acordo a cada oportunidade de negócio é grande e a complementaridade de ativos entre países não é grande. O fato é que as empresas brasileiras estão integrando, na prática, alguns desses mercados, em parte, aproveitando inclusive das inconsistências de políticas do tipo “Lei Kandir”.


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