Fator Del Bosco
complica equação
política do mandarim
Oposição a Zeferino ganha aliado na
Assembléia do
Estado e esquenta
polêmica sobre
duração do mandato
EUSTÁQUIO GOMES
EM FEVEREIRO DE 1972, o deputado santista Joaquim Carlos Del Bosco Amaral soube que em Campinas, centro universitário emergente, havia uma confusão das boas: um grupo de professores da Unicamp questionava a permanência de Zeferino Vaz no cargo de reitor. Segundo os descontentes, os seis anos de Zeferino à frente da universidade contrariavam a lei da reforma universitária de 1968, que fixava em quatro anos o mandato de reitor nas universidades públicas, sem direito a recondução. A situação de crise numa instituição pública que, além de ser uma excelente caixa de ressonância, tinha no seu comando um homem de confiança do sistema, despertou a índole contestatória de Del Bosco, afinal um parlamentar de oposição. Telefonou para a redação de O Estado de S. Paulo e pediu detalhes ao jornalista Ethevaldo Siqueira, que cobria o setor de tecnologia e era seu amigo. Ethevaldo sugeriu-lhe que procurasse o filósofo Fausto Castilho, exonerado havia pouco da direção do Instituto de Ciências Humanas por discordâncias com o reitor.
A visita que Del Bosco fez à Unicamp em meados desse mês deu início a uma série de confabulações com o grupo dissidente, em Campinas e São Paulo, durante as quais se discutiam não só as minúcias legais do caso mas sobretudo o caráter do reitor “atrabiliário e protetor de cientistas sabujos e submissos”, segundo a dura linguagem que o deputado usaria semanas depois, num discurso feito na Assembléia do Estado. Zeferino foi-lhe descrito como um homem pertinaz, obcecado pelo poder e “despreparado para gerir a universidade por não ter características democráticas suficientes”. E quanto ao parágrafo da lei que em tese respaldaria sua permanência no comando da universidade, Del Bosco concluiu que não se aplicava a Zeferino: a Unicamp já estaria implantada, suas unidades funcionavam perfeitamente e “só estava faltando a festa”.
Para um parlamentar de 32 anos programaticamente empenhado em aborrecer mandarins do sistema, e que fora advogado de presos políticos em 1964 e 1965, ele mesmo tendo sido preso três vezes, aquela história de mandarinato era um prato cheio. Seu interesse pelo caso ganhou ares de cruzada depois que, um após outro, os amotinados da Unicamp foram sendo alijados de suas posições: Castilho, Damy, Brieger, Murgel, Pinotti. Em primeiro de agosto de 1972, Del Bosco decidiu atacar com rigor e método: fez uma indicação ao governador Laudo Natel sugerindo “a conveniência de examinar a situação do reitor da Unicamp, que deveria ter deixado o cargo em 21/12/70¨. Não obteve resposta. Um mês depois voltou à carga, desta vez com artilharia mais pesada, e conseguiu fazer aprovar na Assembléia uma moção à Presidência da República pedindo intervenção na Unicamp. Num discurso inflamado que impressionou a muitos, denunciava a situação de anomia que a Unicamp vivia naquele momento:
Passaram-se quatro anos desde que a lei da Reforma Universitária entrou em vigor; entretanto, a Unicamp é dirigida como se fosse uma propriedade particular. Funcionários são perseguidos; fazem-se promoções de patente favoritismo; existe uma inútil e dispendiosa frota de carros de passeio que fazem circuitos os mais inesperados, conduzindo os medalhões e funcionários da Unicamp; em uma palavra: sob o céu da Unicamp é o reitor Zeferino Vaz quem faz a chuva e o bom tempo.
Sabem acaso os senhores deputados que, apesar de a lei federal ser taxativa a esse respeito, não existe até o dia de hoje na Universidade de Campinas nenhum departamento que tenha fundamento legal? É que as atribuições que a Lei da Reforma transferiu para os departamentos na área administrativa, na área do ensino e da pesquisa e na área da alocação de pessoal são exercidas diretamente pelo sr. Vaz. Como na Universidade de Campinas não existe a cátedra e o sr. Vaz não permite que os departamentos sejam instituídos com as prerrogativas da lei, em lugar de termos uma estrutura flexível, como previu o legislador, deparamos com uma estrutura fluida, ou melhor, com a ausência de qualquer estrutura. Isso confere ao reitor todas as atribuições que a lei federal transferiu para o departamento.*
Para Del Bosco, o reitor da Unicamp é um “suserano feudal que se apossou, em pleno século XX, no estado mais adiantado da federação e sob as vistas do governo, de uma rica satrapia da qual é o régulo”, o qual “consagra todo o seu tempo a impedir que outros setores da universidade ganhem configuração legal”.
Zeferino, que era um par de ouvidos dado a nuances de linguagem, provavelmente encontrou semelhanças entre esse estilo barroco e aquele que, no Diário do Povo, o classificara de “senhor de baraço e cutelo” – aliás uma expressão que ele próprio costumava usar. Sinal disso foi que, alguns meses mais tarde, ele chamou a imprensa para acusar Del Bosco de valer-se de fontes indignas de crédito – “informantes bem conhecidos da universidade cujos interesses foram contrariados pelo Conselho Diretor”. Ao mesmo tempo, tratou de formar sua tropa de choque na Assembléia – alistaram-se imediatamente os deputados situacionistas Pinheiro Júnior, Ruy de Almeida Barbosa, José Felício Castellano e Astolfo Araújo – com a tarefa de rebater cada frase de Del Bosco assacada contra ele ou sua administração. Pinheiro Júnior e Barbosa chegaram a passar um dia inteiro no campus, percorrendo laboratórios e visitando obras em companhia de Zeferino.
De fato, o campus era um canteiro de obras. O prédio do Ciclo Básico acabara de ser inaugurado e lá se instalara, além do principal complexo de salas de aulas, a Faculdade de Educação com seu leque de disciplinas para os currículos de licenciatura. Entrara em funcionamento, também em prédio próprio, o Centro de Tecnologia com seus programas de prestação de serviços especializados à indústria e às unidades internas. E, em volta da grande praça que Zeferino imaginara como uma ágora grega, subiam as paredes dos edifícios dos institutos de Química e Matemática, além das faculdades de Engenharia e de Engenharia de Alimentos. E, no Instituto de Física, Zoraide Argüello e sua equipe produziam os primeiros cristais semicondutores da América Latina.
A Assembléia do Estado não se mostrou insensível a esse clima de “progresso americano” cantado em prosa e verso por Pinheiro Júnior em seu discurso de 20 de outubro. Outras vozes se levantaram em defesa de Zeferino, como a do deputado Sólon Borges dos Reis, para quem qualquer intervenção na Unicamp seria um agravo a São Paulo. Sólon, que presidia a Comissão de Educação da Assembléia, encontrou uma justificativa para a falta de rotatividade na Universidade de Campinas: “Zeferino Vaz não exerce mandato por inexistência de um corpo eleitoral que eleja o reitor”, disse. Isto é, nem mesmo o Conselho Diretor era oficial, pois não tinha a prerrogativa de deliberar sobre a escolha ou a indicação de reitores.
No final do ano, dando total crédito às informações que emanavam de Del Bosco, o Estadão iniciou uma série de reportagens e editoriais críticos a Zeferino. Antes, em setembro, não passara despercebido ao jornal que a Câmara Municipal de Campinas vinha encontrando dificuldades para fazer votar a concessão do título de cidadão campineiro ao reitor da Unicamp por obstrução sistemática dos vereadores do MDB. Dando generoso espaço ao vereador Adauto Ribeiro de Mello, o Estadão informava que Zeferino era considerado “o inimigo número um de Campinas” e que o título dormia nas gavetas da Câmara “da mesma maneira como a instalação da Faculdade de Medicina de Campinas dormiu em outras gavetas”; ou seja, setores políticos da sociedade campineira davam o troco, quase duas décadas depois, às dificuldades criadas por Zeferino para a instalação de uma escola de medicina na cidade.
Em 24 de novembro, o jornal critica acidamente o “excesso de publicidade” que cerca as realizações da Unicamp: “Parece-nos que já está atingindo os limites do razoável a promoção publicitária da Unicamp e do seu reitor, que recomeça agora com objetivos pouco claros”, escreve o editorialista, caracterizando como “promoção publicitária” a série de reportagens publicadas por seu próprio corpo editorial, nas semanas precedentes, sobre as novidades científicas e tecnológicas em desenvolvimento no campus de Campinas – o que torna a queixa no mínimo curiosa, senão indicadora de um conflito editorial no interior da redação. Mas reflete também a preocupação dos uspianos abrigados no coração do jornal, ou mais propriamente o inverso, pois alguns de seus jornalistas mais experientes eram também professores na universidade ou mantinham antigas relações de amizade com intelectuais ou dirigentes da USP – sem contar a ligação ainda mais visceral que ligava seu diretor-presidente, Júlio de Mesquita Filho, à própria história de fundação da universidade por Armando de Salles Oliveira.
(...) desde 1966 é possível acompanhar pela imprensa o enorme estardalhaço (em torno dos) repetidos anúncios de descobertas sensacionais da novel instituição. Acreditamos que esta supervalorização de objetivos e das metas realizadas tende a retirar do trabalho científico o equilíbrio e moderação que lhes são próprios.
Para agravar esta situação existe uma tendência peculiar na publicidade feita em torno da Unicamp, de não dar às demais instituições de ensino superior do País, principalmente à Universidade de São Paulo – sua verdadeira alma-mater – o merecido crédito. Com efeito, é da USP que saiu a maioria dos seus professores, atraídos às vezes por ofertas de remuneração em desacordo com o nível acadêmico do professor, situação tolerável, talvez, numa universidade em implantação mas não num centro estabelecido como a USP.
(...) Vemos perigos numa atitude que leva o público e o governo a esperar resultados fantasiosos que não têm condições de se materializar, com o risco de afastar os professores do trabalho sério e paciente – fundamental para o progresso científico – que há muitos anos se realiza em inúmeros outros locais, além da Unicamp, principalmente na maior das universidades brasileiras: a Universidade de São Paulo. **
Uma semana mais tarde, o jornal repercute os termos da moção apresentada por Del Bosco, que o Conselho Federal de Educação rejeitaria. Após uma pausa de quatro meses, volta à carga com um novo editorial em que contesta a legalidade da permanência de Zeferino à frente da Unicamp.*** O mesmo texto é reproduzido no Diário do Povo de Campinas, entre fios, com o subtítulo “A pedidos”. O editorialista repete a dose três semanas depois, repisando os mesmos argumentos e abrindo caminho para que no dia seguinte a reportagem destacasse, em três generosas colunas de alto a baixo, novas e contundentes declarações do vereador Ribeiro de Mello. Mello acusa o governador Laudo Natel de “impingir a Campinas, desde 1966, um homem que tinha trabalhado contra a criação da universidade e que, depois de criada a instituição, não teve pejo em abiscoitar-lhe a reitoria”.
Em julho de 1973, na esteira das informações fornecidas por Del Bosco, o Estadão dedica à Unicamp uma reportagem crítica de página inteira. Nela, afirma que em Campinas “uma universidade está sendo conduzida há seis anos e meio por um só homem, sem conselho universitário, sem regimentos válidos, sem a institucionalização essencial à vida de qualquer organização dessa natureza”; e termina fazendo uma grave acusação a Zeferino: a de que o custo das obras físicas em execução no campus teria sofrido um reajuste acumulado de 2.900% nos últimos três anos – isso numa época em que a inflação anual ficava por volta de 20%. No miolo da matéria, critica também a instabilidade dos dirigentes internos nos cargos (um autêntico turnover, diz o jornal) e faz as contas: nos mesmos três anos, cinco unidades tinham tido nada menos que 14 diretores. Não fortuitamente, a mesma reportagem aparece reproduzida no Jornal da Tarde – braço vespertino do Estadão – em sua edição do mesmo dia.****
A reportagem foi publicada uma semana depois que Del Bosco, de sua tribuna na Assembléia Legislativa, informou que estava solicitando à Unicamp comprovação de realização de concorrência para a escolha do escritório de arquitetura Bross dos Santos & Leitner, que projetara e supervisionava a construção de várias unidades do campus. Segundo relatava o Estadão, “210 mil metros quadrados de obras que deveriam custar no máximo 20 mil cruzeiros passaram a custar 594 mil cruzeiros em 1969 – 29 vezes mais que o autorizado no contrato inicial de 1967”.
Zeferino se defende. Em 17 de julho, o jornal publica uma extensa carta sua que começa por negar qualquer conturbação na universidade. Dá como prova em contrário a vasta produção científica em andamento e acusa os interlocutores de Del Bosco: “Conturbada, sim, está a mente dos informantes do Estado, por terem sido contrariados mesquinhos interesses pessoais”. Lamenta que o jornal tenha divulgado acusações sem previamente ouvi-lo – “contra alguém que há 47 anos vem trabalhando pela ciência”. Quanto à questão da remuneração do escritório Bross, argumenta que os edifícios originariamente destinados às salas de aulas “demonstraram não atender ao conforto necessário a prédios de ensino devido à alta temperatura reinante em Campinas durante o verão”, sendo por isso necessário construir outros. Curiosamente, é a outro jornal, o Diário de São Paulo, que Zeferino explica a inexistência de licitação para a escolha do arquiteto:
— A lei é clara: a prestação de serviços técnicos profissionais especializados independe de licitação.
No dia 14 de julho, ele convocara uma coletiva de imprensa em que fez um apelo dramático aos jornalistas:
— Ajudem-me a defender o nome da Unicamp, pois também está em jogo o nome de Campinas e de São Paulo. Ninguém se interessou pelos problemas da Unicamp enquanto era um embrião. Quando porém ela conseguiu adquirir reputação científica nacional e internacional, graças a centenas de trabalhos originais publicados em revistas científicas estrangeiras, passou a Unicamp a tornar-se presença incômoda e a despertar a agressividade das forças da inveja, da rotina e da mediocridade, que não suportam as realizações construtivas das forças do ideal.
Del Bosco, no entanto, não dá trégua. Um mês antes, ele acusara o chefe da Casa Civil do governo do Estado, Henri Aidar, de interceptar seus documentos dirigidos ao governador, num “esquema de apadrinhamento” de Zeferino; e desafiara Laudo Natel “a explicar publicamente por que não encaminhava ao Conselho Estadual de Educação consulta sobre a legalidade ou não do mandato” do reitor da Unicamp. Duas semanas depois, o Palácio dos Bandeirantes se manifesta formalmente a respeito: para o governador, não havia mandato, mas apenas o exercício das funções do cargo de reitor. Ou seja, o governo considerava que a Unicamp ainda estava em fase de implantação, sem necessidade legal de que ali houvesse, por ora, rotatividade de mando.
O impacto dessa declaração foi imediato. Em 15 de agosto, a Assembléia rejeita em definitivo a moção de Del Bosco que pedia intervenção federal na Unicamp, o que não o impede de apelar novamente ao presidente da República para que ordene “a apuração de irregularidades administrativas na Universidade de Campinas”. Em fins de setembro, indaga diante de seus pares e dos jornalistas que cobriam a Assembléia se não “estaria nascendo um novo J. J. Abdalla, desta feita no ensino superior”, numa referência ao empresário paulistano José João Abdalla, conhecido como mau patrão — “o mau patrão escorregadio e sediço que escapa sempre das investigações”, na comparação de Del Bosco.
Para Zeferino, que mandara pagar um salário de oito mil dólares a um diretor recém-contratado (era o que Berlinck recebia em meados de 1972, para espanto dos professores titulares da USP), a acusação de mau patrão já era um pouco demais. Em setembro, foi pessoalmente à Assembléia expor seus pontos de vista e exibir seus trunfos. Chegou acompanhado de Arlinda Rocha Camargo e logo à entrada ambos toparam com Del Bosco. Ao ser cumprimentado pelo deputado, o reitor voltou-se para sua secretária-geral:
— É este o senhor que quer me derrubar?
Del Bosco respondeu ele próprio que não. O que desejava era somente o cumprimento da lei e a apuração dos fatos sobre irregularidades administrativas. “Não há irregularidades”, ripostou Zeferino. Durante sua fala, que foi intercalada por aplausos da bancada arenista, contra um silêncio soturno da ala emedebista, sempre que se referia a Del Bosco substituía seu nome pela perífrase “o senhor deputado inconformado com o sucesso da Unicamp”. Del Bosco, toda vez que se dirigia a Zeferino, chamava-o de “o veterinário magnífico reitor”.
As investidas de Del Bosco, embora aparadas ou simplesmente ignoradas pelo governo, nunca deixaram de causar perturbação no CEE e mesmo no palácio. Na segunda semana de outubro, Laudo Natel tentou contornar o problema usando um método muito apreciado por Zeferino quando se tratava de defenestrar pupilos: fazê-los “cair para cima”. O governador convidou-o a ocupar a Secretaria de Educação no lugar de Oswaldo Muller, recém-nomeado para o Tribunal de Contas do Estado. Para surpresa de Laudo, Zeferino declinou do convite: a Unicamp era não só o lugar onde exercia seu mandarinato, mas também seu projeto de vida. E indicou para o cargo seu braço direito (ou “braço esquerdo”, no dizer de Damy”), o vice-reitor Paulo Gomes Romeo. No almoço de encerramento do ano
— Espero deixar a universidade o mais breve possível, e o farei imediatamente após perceber que ela atingiu sua maturidade. Afinal é preciso permitir que adquira sua própria identidade sem a influência de seu criador. No entanto – acrescentou, para não deixar ilusões aos que imaginavam esse momento para logo – enquanto forças externas puderem destruir ou prejudicar a Unicamp, eu aqui estarei para defendê-la.
* Discurso de Del Bosco Amaral na Assembléia Legislativa em 1 de setembro de 1972.
** “A Unicamp e a Universidade de São Paulo”, O Estado de S. Paulo, 24 de novembro de 1972.
*** “O mistério da Unicamp”, O Estado de São Paulo, 16 de março de 1973.
*** “Unicamp, uma universidade conturbada”, O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, 5 de julho de 1973.
Continua na próxima edição.