A conversa doméstica, relatada pela própria Anita, ocorreu em 1995, um ano depois de Francisco Genézio Lima de Mesquita, técnico administrativo do Instituto de Artes, ter inaugurado a Biblioteca Popular “Paulo Freire”. A unidade, que nasceu na sala de sua casa, no Jardim Santa Rosa, periferia de Campinas, já expandiu para outros sete bairros da cidade e está prestes a surgir em Hortolândia, com apoio da prefeitura local. Embalado pelo sucesso da idéia, ele realizará no próximo dia 17, no Centro de Convenções da Universidade, o IV Seminário Paulo Freire, que incluirá uma mesa-redonda para abordar as idéias do educador pernambucano.
Genézio já perdeu as contas das palestras que fez para falar sobre a biblioteca popular. Só no ano passado esteve em Belém, Manaus, Natal e Recife. Desde 1994, quando inaugurou a primeira unidade, ele vem liderando e divulgando um movimento que já colocou ao alcance dos moradores da periferia cerca de 10 mil livros. “Quando comecei ninguém dava nada pelo projeto”. Na época, o Jardim Santa Rosa era um dos bairros mais violentos da cidade. As cerca de 700 famílias conviviam diariamente com altos índices de criminalidade, evasão escolar e drogas. “Achei que uma biblioteca poderia ajudar na formação das crianças e mudar esse quadro”.
Mortadela Genézio inaugurou a biblioteca no dia 12 de outubro de 1994. “Foi intencional, porque a idéia estava voltada para as crianças”. Regada a suco de groselha e pão com mortadela, a festa foi um sucesso. Era a primeira vez que os moradores, mesmo os adultos, viam uma biblioteca. Nos 12 metros quadrados que delimitavam a sala de estar de sua casa, Genézio organizou 280 livros em prateleiras de madeira que ele mesmo montou. Os volumes, todos doados por alunos e professores da Unicamp, mudariam para sempre a vida de inúmeros jovens da comunidade.
Logo após a inauguração, Genézio sentiu necessidade de comunicar Paulo Freire que usara seu nome para batizar a biblioteca. Na verdade, era um pretexto para conhecer o educador, de quem se tornara fã incondicional. A oportunidade surgiu de um encontro com o professor Moacir Gadoti, biógrafo do educador pernambucano, que viera à Unicamp para participar de uma banca de mestrado. “Ele gostou da idéia da biblioteca e me deu o telefone do Paulo Freire”.
Genézio não perdeu tempo. Ligou no mesmo dia. Quando ouviu o educador do outro lado da linha não sabia o que dizer. “Professor Paulo Freire, aqui é o Genézio”. E Freire: “Que Genézio?”. A resposta foi longa. Genézio pôs-se a falar da tal biblioteca que havia inaugurado no Jardim Santa Rosa. Contou sobre o interesse dos moradores, da alegria das crianças, da festa da inauguração, dos problemas do bairro, da violência, de suas expectativas. No final, pediu um encontro com Freire. “Precisamos formalizar sua autorização para o nome da biblioteca”. Para surpresa de Genézio, o educador concordou.
O encontro No dia e horário combinados, Genézio apertava a campainha da casa de Freire no bairro Sumaré, em São Paulo. “Foi a experiência mais marcante da minha vida”. Dez anos depois, ele ainda traz vivos na memória todos os detalhes. “Ele estava de calça branca e camisa vermelha, na sala havia um monte de objetos indígenas e na varanda tinha um passarinho amarelo numa gaiola”. Genézio fotografou tudo. E se impressionou com a paciência do educador. “Ele não era de falar muito; gostava de ouvir”.
Freire ouviu muito. Mas Genézio queria mais. Pediu a ele que viesse a Campinas fazer uma palestra. “Genézio, meu filho, minha vida é muito corrida”. O visitante não desistiu: “Não tem problema, professor, marca para quando o senhor puder”. Freire consultou a agenda e marcou para dali a seis meses. De volta a Campinas, Genézio foi direto ao gabinete do então secretário municipal de educação, Ezequiel Theodoro da Silva. “Secretário, consegui trazer o Paulo Freire para Campinas”. Ezequiel duvidou: “Você, Genézio?”. Ele manteve a pose: “Pois é, estive na casa dele ainda há pouco e ele me garantiu que vem. Quero que o senhor me ajude com cartazes, folders e o teatro Castro Mendes”.
Ezequiel resolveu apoiar. O evento foi marcado, a divulgação foi feita, mas uma semana antes Freire liga para Genézio e avisa que não poderia vir. Problemas de saúde. Era o início da doença que o levaria à morte um ano depois, em maio de 1997. Ezequiel gelou, quis cancelar o evento, mas Genézio não arredou pé. Convidou Moacir Gadoti para substituir o educador. No dia marcado, 600 pessoas lotaram o Castro Mendes. O encontro foi um sucesso.
O roubo Nem sempre, porém, as coisas deram certo para Genézio. Uma vez entraram na biblioteca e furtaram cerca de 200 livros. “Quando vi a porta arrebentada e as prateleiras vazias, fiquei embasbacado”. Pior para os ladrões. Genézio podia suportar tudo, menos que mexessem com sua biblioteca. Conhecendo a comunidade, foi direto à casa de um morador cuja fama no bairro não era das melhores. “Sei que vocês roubaram meus livros, quero tudo de volta hoje mesmo ou então vou à polícia”. O tal morador riu na cara de Genézio. Ele foi à polícia.
Na delegacia, Genézio foi curto e grosso: “Delegado, roubaram meus livros e sei quem são os ladrões, quero que o senhor vá lá prendê-los”. Em questão de minutos Genézio estava no camburão levando a polícia à casa suspeita. Ao chegarem, os policiais surpreenderam quatro homens mal encarados. Tentaram fugir mas foram detidos. Dentro da casa, vários objetos furtados, entre eles os livros de Genézio. Minutos depois estavam todos de volta à biblioteca, de onde nunca mais saíram, a não ser para espalhar cultura entre os moradores do Jardim Santa Rosa.