Por que o shopping center foi inventado? O que sua existência significa hoje na vida das pessoas e das cidades? Por que as pessoas acham que não pode mais existir vida urbana sem shopping center? Valquíria Padilha, especialista em estudos do lazer, mestre em sociologia e doutora em ciências sociais pela Unicamp, lança o que chama de “um olhar sociológico” sobre esse espaço do consumo, no livro Shopping Center a catedral das mercadorias (Editora Boitempo, 2006). O livro é fruto de tese de doutorado defendida junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), sob orientação do professor Ricardo Antunes. “A sociologia me forneceu instrumentos para analisar o shopping center como um lugar que reserva mistérios que o senso comum não permite perceber, vê-lo como um espaço que não é apenas para comprar mercadorias, mas que esconde outras intenções. O olhar científico exige uma sistematização do conhecimento, movimentando técnicas de pesquisa para desvendar o que tem por trás da aparência. Nem tudo é como parece ser. Karl Marx disse que se toda essência coincidisse com a aparência, a ciência seria desnecessária. Acredito nisso”, afirma a pesquisadora.
A sociologia e as intenções ocultas neste espaço do consumo
Valquíria Padilha, atualmente professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP em Ribeirão Preto, observa que o shopping passa a ser objeto de estudo da sociologia já quando se transforma no lugar mais visitado de uma cidade, ou quando uma criança de rua é barrada na porta pelos seguranças. Para contar a história do shopping center, a pesquisadora remonta ao século 19, quando nasceram as lojas de departamento na Europa ocidental e começou-se a desenvolver a “cultura do consumo”. “Com essa nova forma de comércio, que passa da compra e venda de bens de extrema necessidade para a compra e venda de supérfluos, cria-se um ambiente de imagens e símbolos que se associam aos bens para torná-los atraentes e levar as pessoas a acreditarem que eles são necessários. Começa, então, a haver uma grande mudança na concepção das pessoas sobre o que é e o que não é necessário para ser feliz”, explica.
A socióloga acrescenta que tudo isso vai caracterizando a sociedade capitalista, que descobre no consumo a grande armadilha para aumentar os lucros dos donos das empresas. “Digo armadilha porque essa “cultura do consumo” fisga as pessoas a partir do uso de uma série de recursos que vão se aperfeiçoando até os dias de hoje, quando os publicitários se especializam em comportamento humano, por exemplo”, constata. Ela ressalta que o estudo da “Indústria Cultural”, desenvolvido originalmente na denominada Escola de Frankfurt, foi muito importante para que compusesse essa crítica à sociedade de consumo, associando-a ao fetichismo das mercadorias. “Essa palavra deriva da palavra francesa ‘fetiche’, que por sua vez deriva de uma palavra portuguesa, ‘feitiço’”, ilustra.
Segundo Valquíria Padilha, a idéia de fetichismo das mercadorias vem igualmente de Karl Marx, que via as mercadorias revestidas de um caráter misterioso, por duas razões. Primeiramente porque as mercadorias escondem nelas o trabalho humano, o que significa que o sapato ou bolsa que compramos carregam todas as relações sociais que se estabelecem no trabalho. Outra razão é que as pessoas trocam mercadorias e, nessa troca, tornam-se elas mesmas mercadorias sem perceber. “É o que implica o processo de ‘coisificação’ dos seres humanos que vivem na sociedade das mercadorias. O shopping center é o local mágico da troca de mercadorias. Tudo se converte em mercadoria, mesmo que alguém vá lá e não compre nada. Tudo que se olha tem um preço. As pessoas que se relacionam no shopping em meio às mercadorias acabam perdendo o que têm de humano que a gente nem sabe mais o que é”, lamenta.
Os Iguatemis Valquíria Padilha informa que o sistema de shopping center nasceu nos Estados Unidos, nos anos 1950, como tentativa de criar uma nova cidade sem problemas urbanos como trânsito, chuva, sol, pedintes, acidentes, falta de estacionamento nas ruas. A invenção dessa cidade artificial, entretanto, serviu para propagar um “modo americano de viver” que se espalhou rapidamente pelo Ocidente. “No Brasil, os shoppings foram construídos exatamente como nos EUA. A segurança, a facilidade de encontrar tudo no mesmo lugar e a idéia de modernidade e progresso aliada ao shopping foram os maiores atrativos para os brasileiros elegerem esse ‘templo do consumo’ como lugar privilegiado para compras e lazer”, diz a professora.
O primeiro e maior grupo de shopping centers no Brasil foi a Iguatemi Empresa de Shopping Center S.A., que pertence ao grupo Jereissati, do Ceará. O grupo Jereissati entrou no ramo em 1974, com a construção do Shopping Center Um em Fortaleza, e desde então vem se expandindo em todo o país, sendo a atual líder no setor. “Os proprietários de shoppings são normalmente grandes grupos de investidores, holdings ou construtoras. Para dar um exemplo, o Shopping Parque Dom Pedro, de Campinas (SP), pertence a um grupo português chamado Sonae, holding da área de telecomunicações, Internet e multimídia. Nos Estados Unidos permanece a tendência. O truste Simon Property Group possui cerca de 290 shoppings naquele país e dezenas na Europa, Japão, Porto Rico e México”, acrescenta.
Público ou privado Em seu livro, Valquíria Padilha analisa se o shopping center é um espaço público ou privado. Ela considera que no Brasil, como em todos os países onde a desigualdade social e econômica é mais visível, a violência urbana aparece como um complexo fenômeno que acentua a degradação do espaço público e empurra as camadas privilegiadas da população para lugares mais “protegidos” como o shopping. “A cidadania parte do princípio de que na vida em sociedade todos têm direitos. Assim, numa democracia, como pensar que na prática uns tenham mais direitos que outros?”, questiona a socióloga.
Na avaliação da pesquisadora, a cultura do consumo nasce e se estabelece pautada nos ideais da liberdade individual de escolha, o que gera uma equação complicada do ponto de vista da política e da cidadania, uma vez que a liberdade de escolha é maior, no capitalismo, para quem tem mais dinheiro. “Então, quanto mais se acentua a liberdade individual do consumidor, mais a vida pública vai se debilitando, porque os pontos comuns entre as pessoas que compõem a coletividade ficam reduzidos: ricos podem mais do que os pobres. A questão da pobreza e da cidadania está diretamente ligada à questão do consumismo, porque coloca frente a frente a carência com a abundância, a inclusão com a exclusão”, observa.
Hibridismo Valquíria Padilha atenta para o fato de que hoje o shopping center é medida de especulação imobiliária, visto que morar perto dele normalmente oferece certo status. Em seu estudo, ela indica que o shopping colabora para o declínio do espaço público quando ele redesenha as cidades. “Nossas políticas públicas vão deixando lacunas graves e os shoppings (assim como os mercados de forma geral) vão tomando conta desses espaços abandonados. A possibilidade de passear enquanto se faz compras, abrigado do sol, da chuva, do frio ou da neve, também ajuda para o sucesso da fórmula do que chamo de ‘shopping center híbrido’”, explica.
Para a pesquisadora, o hibridismo está no fato de o shopping se chamar “centro de compras” e, no entanto, ser uma nova cidade que reúne compras de mercadorias e também de lazer, serviços, cultura e alimentação. “Aí está, na minha interpretação, o hibridismo desse espaço, que é também uma cidade artificial, com ruas limpas, modernas, seguras, praças de encontros, cinemas, exposições de arte, bancos, academias de ginástica, escolas e até centros de saúde. Cada vez mais o shopping center se hibridiza”, atesta. A autora afirma que seu livro procura mostrar que o sucesso do “shopping center híbrido” como lugar privilegiado para a realização do capital traz consigo o fracasso da plenitude do ser social e freia o processo de emancipação humana. “Isso é muito grave do ponto de vista psicossocial. Eleger o shopping center como o melhor espaço para a nossa sociabilidade e vivência do tempo livre é escolher se ‘coisificar’”, insiste.
Caso Daslu Valquíria Padilha ainda teve tempo de redigir um apêndice sobre a Daslu, superbutique de marcas internacionais e espaço exclusivo para circulação de milionários, e que recentemente se viu envolvida em escândalos ao ser acusada de sonegação de impostos e contrabando. “Num país como o nosso, a existência de um lugar de encontro para pessoas que gastam uma pequena parte de suas fortunas em supérfluos e prazeres mundanos, é no mínimo afrontoso. A Daslu é um exemplo ímpar da opulência e da submissão total do valor de uso ao valor de troca das mercadorias: o que vale é o preço e a distinção social. É um dos ridículos exemplos brasileiros do desperdício de tempo e de dinheiro. A Daslu é o paraíso para 0,05% da população. O que apenas uma cliente gasta por mês na Daslu em média 15 mil dólares daria para sustentar uma família inteira por vários meses. Isso é inaceitável na minha opinião”, finaliza.