Como fiz num artigo que publiquei aqui há pouco mais de um ano (Qual é o seu tipo científico-tecnológico?), vou basear-me em minha experiência como professor da disciplina GT 001 Ciência, Tecnologia e Sociedade da graduação da Unicamp para mostrar como meus alunos, “fantasiados” de policy-makers, aprendem a detectar as incoerências desses modelos e a propor soluções para suas falhas.
Há quase dez anos que, no primeiro dia de aula, faço um exercício de mapa cognitivo em que peço a cada aluno que escreva uma frase curta numa folha, com letras bem grandes, respondendo à pergunta: “O que anda mal no Brasil com a relação Ciência, Tecnologia e Sociedade?”. A partir dessas cerca de 60 frases, eles montam um fluxograma da situação interligando mais ou menos 15 folhas (escritas a partir das 60), que são penduradas na parede, com flechas de causalidade, da esquerda para a direita. O fluxograma, partindo das causas fundamentais, termina por explicar a situação-problema da relação Ciência, Tecnologia e Sociedade no Brasil.
A disciplina transcorre a partir do modelo cognitivo que o fluxograma gerou. Vamos tratando nas aulas os meandros de problemas como “universidade está dissociada da sociedade”, “empresas não inovam”, “empresas preferem importar tecnologia a desenvolver”, “pesquisa e docência excessivamente voltadas para alta tecnologia”, “empresas não empregam pessoal qualificado que sai da universidade”, “recursos públicos para C&T mal administrados”. Vamos também mostrando porque são ingênuas frases como “empresas visam o lucro”, “empresários não percebem a importância da inovação”, “não existe empreendedorismo”, e porque algumas são inverídicas, como “governo gasta pouco em C&T”, “empresários são atrasados” e, outras, equivocadas, como “universidade não desenvolve tecnologia” ou “empresa não aproveita a tecnologia que universidade produz”.
Embora os alunos cheguem repercutindo o senso comum em que a neutralidade da ciência e o determinismo tecnológico se misturam para formar o cimento do triunfalismo em que se fundamenta a concepção divulgada na mídia, as leituras e as discussões vão desconstruindo este senso-comum, e sua visão se torna cada vez mais aguda, fundamentada e crítica.
Nas últimas aulas, os alunos assumem o papel de policy-makers da C&T e fazem um exercício de planejamento estratégico a partir de um fluxograma revisado, em que algumas causas foram descartadas e outras adicionadas. Nele aparecem, bem na esquerda, causas como: “o modelo econômico não precisa de C&T”, “os países desenvolvidos monopolizam a tecnologia”, “a comunidade científica tem uma visão neutra da C&T”, “má distribuição de renda não gera demanda por C&T”, “nossas exportações têm baixo valor agregado”.
No exercício, trabalhamos primeiro os conceitos de “causa-estrutural”. Isto é, as determinadas pela natureza da área de C&T, como “os países desenvolvidos monopolizam a tecnologia”, ou pela condição periférica de nosso país, como a “má distribuição de renda não gera demanda por C&T”. Em seguida, tratamos os conceito de “causa-institucional”, derivados do modelo das relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade utilizado para a elaboração da Política de C&T, de “governabilidade”, e de “causa-crítica”.
Melhoral para cobra – Em seguida discutimos porque as causas-estruturais – “empresas não inovam”, “empresas preferem importar tecnologia a desenvolver”, “empresas não empregam pessoal qualificado que sai da universidade” – por envolverem para sua supressão um processo de longo prazo que depende de uma abrangente e complexa interação politics x policy, e sobre o qual os policy makers da C&T têm escassa governabilidade, não são causas-críticas.
O recurso à abordagem multidisciplinar dos Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade lhes ajuda a entender porque nossa comunidade científica, que teria escolhido há 40 anos como causa crítica da situação-problema da C&T brasileira a insuficiência de pós-graduados, é hoje capaz de formar um “fluxo” de 40 mil mestres e doutores por ano. E, também, porque depois de 40 anos de ações sobre aquelas três causas (estruturais, mas não-críticas) através de políticas de cooperação universidade-empresa, as empresas públicas e privadas empregam um “estoque” de menos de 3 mil pós-graduados!
Depois, eles escolhem as causas-críticas. Isto é, aquelas que são importantes para resolver a situação-problema, são oportunas politicamente e sobre as quais se pode atuar definindo operações, os atores envolvidos, os recursos políticos, cognitivos e econômicos necessários, os prazos, os obstáculos e oportunidades etc.
Como é de se esperar, entre as causas-críticas escolhidas predominam as institucionais. Embora os alunos tendam a privilegiar as estruturais, uma vez que elas são a origem do problema e “não adianta tomar Melhoral para picada de cobra”, eles logo percebem que no mundo da policy-politics vale o “paradoxo do Melhoral” e que posturas voluntaristas tampouco funcionam.
Demandas sociais – No último ano, uma das favoritas, devido ao impacto em outras causas e sobre a situação-problema, à sua viabilidade política e à baixa intensidade de recursos econômicos, foi “pesquisa e docência não satisfazem demandas sociais” (ver o fluxograma nesta página). As operações que segundo os alunos poderiam ser desencadeadas pelos policy-makers foram: “envolver a comunidade científica numa discussão acerca do caráter não-neutro da ciência e não-determinista da tecnologia que lhe estimule a adequar sua agenda de pesquisa ao cenário da democratização do País”; “motivar os líderes e partidos políticos interessados em mudanças socioeconômicas progressistas a refletirem sobre as condições tecnocientíficas necessárias para sua viabilização”; “estimular os movimentos sociais envolvidos com a inclusão social, por um lado, e os professores e pesquisadores de Universidades e Institutos de Pesquisa públicos, de outro, a desenvolverem estratégias para a incorporação de seus valores, interesses e projetos políticos às atividades de ensino e pesquisa realizadas no País”.
A conclusão não poderia ser outra: se nossos alunos de graduação conseguem contrabalançar com sua capacidade de aprender e espírito crítico, e mediante o aprendizado de conceitos, conteúdos e metodologias que são ensinados numa única disciplina, a sua pouca experiência com área de C&T, o que não poderia se alcançar caso a comunidade científica se dedicasse seriamente e sem preconceito a refletir sobre os modelos cognitivos que pautam sua ação.