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4-5

 

À mercê dos humores do mercado


ÁLVARO KASSAB

O professor Ricardo Carneiro: boletim eletrônico tornou-se referência Acaba de sair do forno a primeira e mais abrangente análise da política econômica dos três primeiros anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Os estudos estão na sétima edição do boletim eletrônico Política Econômica em Foco, produzido por pesquisadores do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon), do Instituto de Economia da Unicamp (IE). Criado em agosto de 2003 e acumulando mais de 115 mil acessos, o boletim tem um público cativo calculado em 3 mil leitores. “Trata-se de um número impressionante, já que a publicação é segmentada”, atesta o economista Ricardo Carneiro, professor do IE e um dos idealizadores do formato atual. “O boletim é acessado por vários setores da sociedade e tornou-se referência na discussão da política econômica”.
Em linhas gerais, os onze artigos que tomam mais de 300 páginas da última edição da publicação concluem que o crescimento da economia ao longo do governo Lula deveu-se mais a fatores externos, entre os quais o cenário internacional favorável, do que à formulação de políticas. Os analistas alertam também para um outro componente: embora real, o crescimento não se sustenta por estar à mercê dos humores do mercado e de possíveis situações de desequilíbrio. Na entrevista que segue, Ricardo Carneiro traça cenários, analisa os riscos do modelo e vaticina: “O governo não conseguiu avançar na criação de um novo modelo de desenvolvimento”.

Boletim torna-se referência com 115 mil acessos

Jornal da Unicamp – Quais foram as conclusões mais importantes do conjunto de análises sobre os três primeiros anos do governo Lula?
Ricardo Carneiro – A conclusão mais geral é a de que houve ganhos que se deveram muito mais ao cenário internacional favorável do que às mudanças da política econômica. Ou seja, o impulso que veio de fora foi fundamental. Se essas políticas não mudarem, esses ga-nhos são reversíveis, não vão se sustentar. Eles não se deveram de fato a mudanças substanciais na política econômica.

JU – Em que medida a conjuntura internacional impulsionou o crescimento?
Carneiro – Além de muito favorável, ela é marcada por uma dupla característica: uma situação boa tanto do financiamento externo como do ponto de vista do comércio internacional. Trata-se, portanto, de uma conjuntura muito peculiar. Ao mesmo tempo em que é singular, entretanto, ela engendra um conjunto de desequilíbrios nas economias centrais. Esse cenário extremamente favorável já está inclusive se revertendo. Neste ano, já observamos uma inflexão. O grande ganho foi registrado entre 2002 e 2005.

JU – O que fazer então para evitar o desequilíbrio é tornar esse quadro sustentável?
Carneiro – Aí não tem jeito – as políticas precisam mudar, e isso não ocorreu no governo Lula. São dois os conjuntos de políticas importantes numa economia. Uma é a macroeconômica, que lida diretamente com a estabilidade; as outras são as políticas de desenvolvimento, responsáveis pelo crescimento de longo prazo. Não houve no Brasil modificação significativa em nenhum desses conjuntos ao longo dos últimos anos.

JU – Isto se deve à aposta na linha de continuidade dos governos anteriores ou porque faltou iniciativa?
Carneiro – Houve uma conjunção de fatores. Ao mesmo tempo em que não havia um projeto muito claro – e isso é importante –, a situação internacional muito favorável não forçou nenhuma mudança.

JU – O governo deixou o barco correr...
Carneiro – Sem dúvida. Mas isso, impreterivelmente, vai ter de ser trabalhado no caso de um eventual segundo mandato ou por quem quer que assuma o comando do país.

JU – Uma vez constatada essa fragilidade, quais os pontos que na sua opinião precisam ser revistos?
Carneiro – O primeiro deles é a vulnerabilidade externa. Os ganhos vieram sobretudo do aumento das exportações. Acontece que esse crescimento não está associado a nenhuma política específica praticada pelo governo. Ao contrário. A valorização do real, por exemplo, vai contra a corrente do aumento das exportações. Mais cedo ou mais tarde, cria-se um dilema para sustentar esse crescimento. A valorização da moeda barateia também as importações, o que implica no crescimento da compra dos produtos, o que aliás já está ocorrendo. Mais cedo ou mais tarde esse lado da fragilidade se manifestará.
Outro ponto é essa história de que a dívida pública e parte da dívida privada diminuíram. Entretanto, durante os 3 anos de governo Lula, perdurou a trajetória de ampliação da abertura financeira do país. São várias formas de investimento, inclusive de curto prazo, como bolsa de valores e os virtuais, conhecidos como derivativos, que se ampliaram de uma forma muito significativa, até pelo diferencial de rentabilidade que se tinha aqui dentro. Sobretudo por conta dessa taxa de juros estratosférica. Tudo isso é reversível, muito volátil. A fragilidade fiscal, nesse contexto, é um elemento fundamental.

JU – O que ela pode ocasionar?
Carneiro – Quando você olha o tamanho da dívida pública em relação ao PIB, ela diminuiu. Até melhorou. Hoje, por exemplo, você não tem mais dívida indexada ao câmbio. Mas o dado complicado é que, apesar disso, a dívida virou cada vez mais de curto prazo. Aumentou a percentagem da dívida que vence no período de um ano. Se você tiver uma mudança ou momentos de instabilidade, ela volta a se deteriorar. O ganho é muito frágil, não é permanente. O terceiro ponto que mereceu uma análise mais detalhada de nossa parte foi a distribuição da renda.

Carregamento de café no porto de Santos: ganhos vieram sobretudo das exportações (Foto de Alex Almeida/Folha Imagem)JU – Qual foi a constatação?
Carneiro – Houve de fato, ao longo desses três anos, um crescimento maior do emprego, embora tenha uma parte que não seja a criação de postos de trabalho. Por quê? Em razão de alguns fatores, entre os quais o crescimento da economia concentrado na atividade exportadora, e em atividades mais formais que geram de fato empregos de melhor qualidade. Registrou-se uma expansão das exportações, mas como houve uma mudança na posição da taxa de câmbio em 2002, você não ampliou substantivamente as importações. Não houve substituição, por exemplo, dos fornecedores ou compra significativa de produtos importados. Isso deu um impulso muito grande ao emprego. Poucos países tiveram um câmbio tão apreciado como o nosso. O problema é que a depreciação do câmbio já está desmanchando esse arranjo.

JU – De que maneira?
Carneiro – Ampliando as importações e transferindo o fornecedor interno para o externo. Essa história é engraçada porque, de certa forma, permite os ganhos salariais. É essa valorização da moeda nacional que amplia os ganhos. Parte do resultado da melhor distribuição de renda foi possível graças a uma situação cujo preço será cobrado lá na frente. Uma parte dos ganhos salariais, num mercado precário e sem dinamismo, não se deve à dinamização do mercado de trabalho, que está há 10 anos praticamente estagnado.
Os ganhos são, portanto, resultado da valorização do câmbio. Para preservá-la, porém, há um preço. Do nosso ponto de vista, trata-se de uma política que não se sustenta.

Cecom divulga a primeira e mais abrangente análise da política econômica dos três anos do governo Lula

JU – Qual a receita para dinamizar o mercado?
Carneiro – Teríamos de crescer numa taxa de câmbio mais desvalorizada e durante muito mais tempo. O que está por trás de tudo isso, que seria o quarto ponto, é que o governo não conseguiu avançar na criação de um novo modelo de desenvolvimento.

JU – Não investiu na questão estrutural...
Carneiro – Sem dúvida. Tem a ver com as políticas de infra-estrutura. Essas políticas sinalizam para um horizonte um pouco mais longo. É isso que resulta no crescimento com menos oscilação. Cria capacidade que vai ser absorvida em cinco, dez anos. Sinaliza para o investidor privado que vai ter energia elétrica, portos e estradas para os próximos dez anos. Uma análise mais acurada indica que o governo e o setor privado não fizeram esse investimento.

JU – Em que medida essa é uma atribuição do setor privado?
Carneiro – Em qualquer lugar do mundo, não é uma atividade predominantemente do setor privado. Aonde ele poderia fazer, inclusive, ele fez. Mais especificamente na parte de telecomunicações, setor cuja natureza tecnológica sofreu mudanças expressivas. Nas áreas de infra-estrutura, essa é uma atividade típica do governo. Aqui, o obstáculo foi fiscal.

JU – A obrigação de fazer o superávit primário entrou na conta.
Carneiro – Sim. O governo até chegou a fazer alguma coisa na área de energia; na verdade, foi um investimento muito concentrado no setor. Além da infra-estrutura, há o problema da política industrial. O governo chegou a anunciá-la mas não criou de fato os mecanismos para operá-la. É outro ponto em que falta sustentabilidade. Em um ano pode-se crescer 4%; em outro, nada... O governo não delineou um horizonte de longo prazo.

JU – Pela análise, faltou um modelo próprio. Que tipo de política alternativa pode ser implementada?
Carneiro – O boletim enfatiza as políticas de desenvolvimento. Elas se referem, invariavelmente, à relação Estado-mercado. Nós temos uma postura clara em relação à questão. Achamos que, em países da periferia do sistema capitalista, o processo de desenvolvimento não pode ser conduzido exclusivamente pelo mercado, como prega o projeto liberal. É preciso ter políticas ativas, de organização do horizonte de crescimento.

JU – Teria alguma semelhança com o projeto nacional-desenvolvimentista? Se sim, o modelo não pressupõe uma política intervencionista?
Carneiro – Guarda semelhanças, mas eu não chamaria de nacional-desenvolvimentista porque teria um componente social muito maior do que no passado. Chamaria de neo-desenvolvimentismo. Aí, no caso, o Estado não substituiria o mercado. Teria, sim, de definir os grandes eixos do crescimento, do desenvolvimento social e criar políticas para isso.

JU – Eventualmente, contando com a ajuda do próprio mercado...
Carneiro – Claro. O que prega a concepção liberal? O que ela diz? Preconiza que basta promover a estabilidade e reformas que façam funcionar melhor o mercado que o desenvolvimento virá. De um certa forma, isso foi feito nos dois mandatos de Fernando Henrique; Lula continuou nessa política. O resultado disso, na minha opinião, foi um crescimento medíocre.
O Estado precisa ter uma atuação mais clara, mais decisiva. Precisa sinalizar quais são os setores prioritários, criar incentivos de crédito, tarifários e fiscais. É preciso manter também certas políticas de desenvolvimento social. Se não houver uma política de crescimento acelerado, a política social isoladamente não se sustenta. Você tem que dar conta de problemas cada vez maiores.

JU – Como fica a política macroeconômica nesse contexto?
Carneiro – Ela não pode ser contra o crescimento como é hoje. É preciso implementar uma política mais favorável, com juros menores, com taxas de câmbio mais desvalorizadas. Cabe ao governo fazer uma gerência mais adequada tanto dos juros como das taxas de câmbios. Essas são as condições: uma é a condição necessária e a outra é de suficiência. É preciso manejar com eficiência e urgência esses dois conjuntos.

JU – Por que, na sua opinião, o governo não levou em conta essas variantes?
Carneiro – Trata-se de uma explicação muito difícil porque ela não está no domínio da economia. Está no âmbito da política. A primeira coisa a ser considerada é que existe um sistema internacional regido por visões liberais cuja hegemonia remonta ao final dos anos 70. Hoje, acredito, esse modelo está perdendo força.
Além desse componente, houve o desmonte do socialismo, das políticas keynesianas, das políticas de bem-estar social. Registrou-se uma onda de impacto liberal que bateu na periferia do sistema nos anos 90. A América Latina, sem exceção, fez isso. A Ásia, não – apostou em políticas mais intervencionistas, não entrou na onda liberal. A China e outros países asiáticos tinham uma correlação de forças interna diferente. Alguns governos asiáticos entraram no processo de globalização mas com políticas formuladas para se integrar de maneira virtuosa.

JU – Não havia a supremacia do mercado.
Carneiro – Exatamente. Aqui, não. No Brasil, o processo foi inaugurado por Collor e perdurou nos mandatos subseqüentes de FHC. É preciso analisar quais foram as correlações de força interna. Havia a promessa de virar Primeiro Mundo, todos os sonhos de consumo da classe média....Qual é o problema do governo Lula, vendo a partir dessa perspectiva? Ele foi eleito, em parte, por uma classe média que se decepcionou com esse modelo que prometia a mercadoria mas não entregava...
O problema é que esse modelo estava socialmente derrotado, mas politicamente continuava presente. Foram preservados o centro real do poder, as grandes finanças, a força de setores da mídia... O governo Lula não enfrentou de frente esses componentes. Quando enfrentou, foi pelo lado que muda muito menos: na margem, pela política social, que também não é sustentável se a economia não crescer.

JU – O senhor entende que as mudanças foram cosméticas?
Carneiro – Sim, embora ache que mudou um pouco a correlação de forças. Hoje já não há, como houve até 1996/97, a hegemonia da ideologia liberal. Acho que a eleição de Lula marca uma ruptura, mas os grandes interesses continuam aí. Esses interesses, na verdade, embora muito poderosos, são cada vez mais minoritários na sociedade. O campo está preparado para a reversão. Agora, se é o Lula que vai fazer, já não sei...

JU – Esse quadro pode ser revertido?
Carneiro – Sim, mas sou mais pessimista. O momento de ter transitado para outra política econômica era aquele no qual o governo tinha mais prestígio e uma maior base de sustentação no Congresso, embora ela fosse precária. Caso haja um segundo mandato, será marcado por uma base de sustentação pior, porque a esquerda em geral deve perder importância na representação do Congresso. E a conjuntura internacional certamente estará pior, com menos margem de manobra. Acho que vai adotar aquela linha de ir tocando...Em termos de probabilidade, aposto mais numa tendência de acomodação.

JU – Em que medida as chamadas forças sociais podem mudar esse estado de coisas?
Carneiro – Entramos aí no campo da especulação. Talvez possa vir da classe média uma demanda muito significativa por mudança, depois de tantos anos sem crescimento. São várias as possibilidades. Não descarto também o surgimento de posturas mais conservadoras. Por outro lado, existe a deterioração do padrão de vida.

JU – E como ficam, na sua opinião, os acordos assumidos com o mercado?
Carneiro – O exemplo da Argentina é emblemático. Kirchner, que é mais conservador que o Lula, foi obrigado a promover mudanças porque o quadro chegou à ruptura. Mas a mudança ocorreu efetivamente. Eventualmente, você pode ter uma reversão no Brasil que leve ao ponto de ruptura. As fragilidades da economia brasileira estão longe de serem superadas.
Um aprofundamento desse quadro pode abrir campo para que esse modelo seja sepultado, como foi o caso da Argentina. A idéia da mudança progressiva, uma das aspirações do governo Lula, não se realizou. Não houve uma mudança substancial. O quadro é o mesmo há pelo menos 20 anos. Estamos entrando na terceira década perdida.

JU – Quais são seus efeitos?
Carneiro – Na sociedade brasileira, o problema é mais grave do que em outros países, até em razão da estrutura etária da população. Temos um quadro em que muitos jovens procuram emprego. O tecido social vai mudando, a questão é muito complexa. Temos o crescimento das periferias, o surgimento de regiões onde o Estado não manda, entre outras distorções. Como a sociedade vai reagir? Talvez esses processos sejam até mais lentos, mas uma hora isso vai se manifestar.
Duas coisas nesse modelo, na minha opinião, são imperdoáveis. Uma é a idéia de que o Estado não precisa estar presente para fazer funcionar um país sem tradição de instituições políticas fortes e que é formado por uma sociedade heterogênea, de muita desigualdade. Isso não vai a lugar nenhum. É o desmonte do Estado e, de uma certa forma, da sociedade. Se você tirar o Estado do conjunto de setores da vida nacional, a coisa não funciona.
A combinação desse componente à falta de dinamismo, às formas precárias de sobrevivência, ao emprego que não cresce, dá nisso que estamos vendo...Esses são os dois pontos importantes. Vem daí a idéia do neo-desenvolvimentismo, da relação Estado-mercado.

JU – Por que os defensores do papel do Estado passaram a ser vistos com desconfiança?
Carneiro – No campo internacional, associou-se muito a intervenção do Estado ao fracasso do socialismo real, muito embora esse modelo, durante um certo tempo, tenha sido importante para as populações dos países que o adotaram. Mais do que isso: o socialismo foi fundamental para estabelecer um sistema “concorrente” e fazer com que, nos próprios países capitalistas, fosse criado um conjunto de políticas que contemplasse a população. As pessoas falam pouco disso. Várias políticas de bem-estar social foram implementadas porque o vizinho prometia entregar uma parte desses benefícios. A derrocada do socialismo tem, portanto, muito a ver com esse quadro.
No caso do Brasil e da América Latina, os anos 80 foram marcados por uma crise fiscal muito grave. Esse fator não tem a ver exatamente com a questão da gestão do Estado, que é uma espécie de subproduto da crise externa e a forma com a qual isso foi administrado. No imaginário do cidadão, porém, essa distorção passa a ser associada à ineficiência do Estado. É como se você jogasse a criança, a água e a bacia fora...É claro que havia ineficiência. O problema maior, entretanto, é que esse papel não foi reformulado.

JU – Ao mesmo tempo, muitas vezes o Estado é visto como a salvação da lavoura. O que o senhor acha disso?
Carneiro – Minha opinião é clara: do ponto de vista da economia, esse modelo liberal precisa ser superado. Deu errado. O outro modelo funcionou durante 50 anos e, em algum momento, entrou em crise. Quinze anos de modelo liberal, entretanto, não resolveram. O Estado, portanto, tem de ter um papel nessa história, sobretudo como elemento de coordenação.
Por outro lado, em países como o Brasil, sem crescimento e desenvolvimento, a vida social não é sustentável, deteriora-se como aliás estamos vendo. Espero que essas questões venham à tona no debate eleitoral que se avizinha.


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