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6-7



Debelada a crise,
o mandarim colhe
seus primeiros louros

CAPÍTULO 25

Limpo o caminho, Zeferino centra forças naquilo que mais gostava de fazer: administrar.

EUSTÁQUIO GOMES


Inauguração do Ciclo Básico em 28 de julho de 1972, com a presença do governador Laudo Natel (Fotos: Acervo Histórico do Arquivo Central (Siarq))NAS ELEIÇÕES GERAIS de 1974, o MDB, partido de oposição ao regime militar, obteve 59% dos votos para o Senado e 48% da Câmara dos Deputados, fez 335 deputados estaduais e conquistou a maioria das grandes cidades. Embora, na soma das cadeiras parlamentares, isto ainda fosse insuficiente para desbancar a maioria governista, os números traduziam o avanço da insatisfação popular e pareciam sinalizar para uma aceleração da distensão defendida pela ala moderada do regime. No entanto, o que aconteceu de imediato foi o oposto: a derrota provocou inquietação nos quartéis e amargor no governo. Em março de 1975, a mando do ministro da Justiça Armando Falcão, o Exército desmantelou umas quantas gráficas em São Paulo e no Rio de Janeiro, sob o argumento de que imprimiam material subversivo — em geral, jornais e panfletos para a esquerda clandestina. O clima de retaliação dominante na linha-dura do sistema passou a funcionar como um salvo-conduto para carcereiros e torturadores e, em São Paulo, resultou no enforcamento do diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, numa cela do Doi-Codi no dia 25 de outubro. O episódio, que se revelaria deletério para a ditadura nos anos seguintes, enfraquecendo-a e abrindo caminho para protestos de rua e manifestos de toda ordem, não serviu de empecilho para uma outra arbitrariedade grossa: o assassinato do operário Manoel Fiel Filho em 17 de janeiro de 1976, no mesmo porão da polícia política paulista. A morte do operário levou ao afastamento do general Ednardo d’Ávila Mello do comando do II Exército. E quando se imaginou, mais uma vez, que essa demissão era finalmente um sinal de que o presidente Geisel não toleraria excessos que pudessem comprometer o regime, associações paramilitares como a Aliança Anticomunista Brasileira, agindo por conta própria ou em conluio com facções extremistas do Exército, fizeram explodir uma série de bombas entre agosto e dezembro de 1976: primeiro, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro; depois, no Centro Brasileiro de Análises e Planejamento, o Cebrap, em São Paulo; e, por último, na sede carioca da Editora Civilização Brasileira, um dos redutos de difusão do pensamento brasileiro de esquerda. Nesse entremeio, em setembro, um comando da direita seqüestrou e seviciou o bispo de Nova Iguaçu, Dom Adriano Hipólito, enquanto seu carro explodia na porta da sede da CNBB no Rio de Janeiro.

Aspecto da área central do campus em meados da década de 70, com o Ciclo Básico em primeiro planoPor essa mesma época agentes da Operação Bandeirantes, a sinistra OBAN organizada pelo governador Abreu Sodré como um braço paramilitar do regime, passou a percorrer as universidades e a abordar dirigentes e professores. Mais de uma vez, com o conhecimento ou não de Zeferino, o diretor do Instituto de Ciências Humanas, Manoel Tosta Berlinck, foi interpelado em pleno campus sobre o paradeiro de professores que estavam na lista da OBAN. Era preciso astúcia para livrar-se dos olheiros e, depois, correr e avisar sorrateiramente os professores para que se protegessem. Foi o caso do cientista político Carlos Estevam Martins e do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que até pouco tempo antes era assessor do secretário da Fazenda Dilson Funaro. Quando informado a respeito, Zeferino mandava Camargo reclamar com o pessoal do Dops, que recolhia as armas por um tempo e voltava a agir com discreta vigilância, não raro passando pela sala de Camargo para polidamente pedir permissão para “acompanhar” este ou aquele evento.

Foi o que aconteceu no dia de uma concorrida palestra do sociólogo francês Alain Touraine, cujo recém-lançado As sociedades dependentes, um livro de ensaios sobre a América Latina, andava nas mãos de todos os estudantes de ciências sociais. Alertado por Camargo de que um agente da OBAN viera com orientação de assistir à palestra, Berlinck preocupou-se: seria inapropriado tentar convencer Touraine a abrandar sua fala, mas deixar de avisá-lo era imprudência. Diplomático, Touraine tranqüilizou Berlinck: manteria o assunto e mudaria a abordagem. Em vez das questões brasileiras, falaria dos problemas de afirmação que enfrentava Angola, nação que recém conseguira sua independência, e concentraria suas críticas na herança deixada pela ditadura portuguesa. Ao cabo, falou tudo o que queria sem tocar no mote esperado pelo observador indesejado.

José Serra, cuja vinda para a Unicamp em 1978 esbarrou de início na intransigência de Sérgio PortoLimpo o caminho, Zeferino centrou forças naquilo que mais gostava de fazer: administrar. Adorava a ebulição, desde que não atrapalhasse seus planos. Amava a turbulência, desde que não perturbasse o conceito de “normalidade construtiva” que era seu ideal de governo. O clima no campus continuava sendo de otimismo. Os salários eram bons e as contratações, livres. Além disso, fora do círculo do mandarinato, pouca gente estava ao par das razões pelas quais alguns mandarins haviam sido defenestrados. A ninguém passava pela cabeça que, no lugar deles, fosse defenestrada a “alma” da instituição, isto é, seu fundador.

O biênio 1973-1974 foi fecundo. Entrou em funcionamento a Faculdade de Educação, inaugurou-se o Centro de Tecnologia e o grande edifício do Instituto de Biologia. O prédio do Ciclo Básico, recém-construído, já um formigueiro de alunos, tornou-se o coração do campus. Um convênio com a Telebrás para a realização de pesquisas com lasers e fibras ópticas colocou a Unicamp no eixo da política nacional de telecomunicações. A Faculdade de Medicina realizava experiências com hormônios de crescimento e o Centro de Tecnologia pesquisava o uso do álcool-combustível para substituir os derivados de petróleo, tendo construído o primeiro motor a álcool puro — um primeiro movimento no jogo de xadrez que foi a política do álcool na década de 80, implantada com êxito pelo governo brasileiro para fazer frente à crise internacional do petróleo, e depois abandonada por largo tempo. Lattes apresentava a “partícula J”, um desdobramento de suas pesquisas com a bola-de-fogo iniciadas em 1967. Placas de metal dispostas num telheiro chamavam a atenção de quem se acercava do prédio da Engenharia de Alimentos: era o recém-instalado laboratório de energia solar para uso em agricultura. E os alunos de 1974, ao chegarem para o início das aulas, foram informados de que pela primeira vez no país uma universidade processaria as matrículas pelo computador. Uma tremenda novidade!

O físico Sérgio Porto no papel de coordenador dos Institutos da Unicamp, em 1978Zeferino, como era de esperar, começava a colher os frutos da árvore plantada seis anos antes. O ano de 1973 foi uma temporada de louros. Houve uma seqüência de homenagens que, se algo deviam à tradição áulica das instituições brasileiras, também refletiam a sólida presença de Zeferino num cenário, o educacional, carente de homens de ação. Em julho, foi homenageado pela Academia Nacional de Medicina, em outubro pela Sociedade Brasileira de Reumatologia, em novembro recebeu um diploma honorífico da Sociedade Geográfica de São Paulo e em dezembro foi paraninfo de uma turma de coronéis e tenentes-coronéis da Polícia Militar do antigo estado da Guanabara. Alguns meses mais tarde receberia a Ordem do Ipiranga, uma medalha de ouro do governo da Guanabara (a última conferida pelo estado antes de sua absorção pelo Rio de Janeiro) e, em 1975, reconciliou-se com a classe política de Campinas ao receber o tão esperado título de cidadão municipal. Essas homenagens ele as acolhia com prazer e instruía Arlinda para que fossem incluídas em seu currículo. No plano do reconhecimento público não regateava homenagens, mas aceitava-as de bom grado.

— O juízo que nos interessa, escreveu ele uma vez, é o juízo que fazem de nós os homens de ciência, o povo que custeia os gastos da universidade, os estudantes de boa fé e, sobretudo, o juízo da posteridade.*

Era particularmente sensível ao juízo do campus. Aborrecia-se quando professores à esquerda o acusavam de abrigar gente com currículo de direita, como o diretor da Faculdade de Engenharia, Theodureto Souto, um dos assinalados do Livro Negro da USP, enquanto outros, à direita, murmuravam contra a profusão de marxistas contratados para os cursos de humanidades; ou quando chegava a seus ouvidos que teria fechado os olhos à demissão de um professor da Faculdade de Educação, Rodolfo Caniato, supostamente por este ter sido diretor da União Cultural Brasil-URSS e por sustentar com o diretor Marconi Freire Montezuma uma querela sobre distribuição de aulas.

Zeferino (centro) com o governador do antigo estado da Guanabara (esq.), Carlos Chagas, em 1974: paraninfo em formatura de policiais Berlinck, que estava no olho do furacão das humanidades, onde se respirava uma densa atmosfera marxista, defendia o reitor dessas investidas. No seu entender, Zeferino, ao contrário de outros reitores tutelados pela ditadura, dava prova de sua boa-fé ao não impor critério ideológico para a compra de livros. “Compre livros atuais”, foi a orientação básica que deu a Berlinck. Atuais, para os padrões do IFCH, eram Marx, Engels e seus amplificadores ao longo dos séculos XIX e XX. Consta que a Unicamp foi a primeira escola de ensino superior do Brasil a introduzir Gramsci, o pensador marxista italiano, em seu currículo de ciência política.

— Um curso de ciências humanas ou de economia que não expõe o marxismo é um curso de economia pífio, dizia Zeferino a seus “ademarxistas”. — Mas as outras doutrinas hão de ser expostas com igual dignidade para que fique à escolha do aluno a direção e o sentido que há de tomar.

Tampouco havia restrição aos pedidos de contratação que subiam de todas as unidades, sobretudo das humanidades, que eram, nessa altura, as unidades em processo de formação. Na gestão de Berlinck à frente do IFCH, o corpo docente saltou de 23 para 125 professores. Em boa parte esses professores vinham de apaixonada formação marxista, num tempo em que não ser de esquerda era sinal de má-fé ideológica. É grande a fornada de intelectuais de talhe marxista – sociólogos, antropólogos, filósofos, lingüistas, cientistas políticos e economistas – que aportaram na Unicamp entre 1972 e 1975, vindos sobretudo da Universidade de São Paulo. Alguns vieram diretamente de países comunistas, como o economista Jorge Miglioli, que chegou com um doutorado em macroeconomia obtido na Polônia. Ao cientista político Plínio Dentzien, que era doutorando na Universidade de Michigan quando Fernando Henrique Cardoso lhe recomendou a Unicamp, ninguém pediu folha corrida apesar de haver sido condenado pela justiça militar, anos antes, por fazer política estudantil no Rio Grande do Sul. Na Medicina, Pinotti lutava para trazer o ginecologista chileno Aníbal Faúndes, um allendista exilado na República Dominicana pela ditadura Pinochet. Zeferino, depois de pensar durante alguns dias e medir as conseqüências de seu gesto, autorizou a contratação.

Se Zeferino transigia ora para um lado ora para outro, numa oscilação própria de esgrimista habilidoso, na esquerda o clima de radicalidade não deixava espaço para muitas concessões. Embora Zeferino não abrisse mão da prerrogativa de autorizar pessoalmente cada contratação, dificilmente uma contratação seguia adiante se enfrentava a resistência de grupos dominantes de professores. Quando se tratou da vinda do filósofo Rubem Alves, autor de livros pouco ortodoxos sobre educação e erótica, uma definição a seu respeito percorreu o IFCH: “Pensamento religioso deformado pelo pragmatismo americano”. Acabou contratado graças à teimosia de Zeferino, o que naturalmente foi considerado uma violência, mas logo mudou-se para a Faculdade de Educação, onde, segundo ele, “podia ler Berdiaeff sem que ninguém levantasse as sobrancelhas”.

O jornalista Vladimir Herzog, morto numa cela do Doi-Codi em outubro de 1975A historiadora e demógrafa Maria Luíza Marcílio não teve a mesma sorte. Maria Luíza fora recomendada a Zeferino, que, bem impressionado com sua tese de livre-docência sobre demografia agrária defendida na USP em 1974, mandou chamar o chefe do Departamento de História, José Roberto do Amaral Lapa, e pediu a contratação da jovem professora. O reitor ignorava que durante seu doutoramento na Sorbonne, como bolsista do governo francês, sob orientação de Fernand Braudel, Maria Luíza se desentendera com colegas brasileiros que, como ela, residiam na Casa do Brasil na Cité Universitaire. E estava mais longe ainda de imaginar que alguns desses desafetos eram, agora, professores no Departamento de História da Unicamp. Lapa, ciente do imbróglio parisiense, alertou o reitor para os problemas que a contratação levantaria.

— Mas vocês não podem levar em conta só a competência?, indagou o reitor.

Lapa fez ver ao reitor que, dadas as condições inóspitas que reinavam no departamento para aquela contratação, consumá-la equivaleria a acender um fósforo num paiol. Cansado de crises, Zeferino cedeu. Como cederia outra vez algum tempo depois, quando, em circunstâncias parecidas, convocou o lingüista Carlos Vogt, coordenador associado do projetado Instituto de Letras (depois Instituto de Estudos da Linguagem), e tentou um arranjo para trazer dois amigos a quem devia favores: um professor de latim e hebraico e um professor de grego que era funcionário da burocracia da Caixa Econômica Federal. Os lingüistas reuniram-se e optaram por uma solução salomônica: que venha o professor de latim. Zeferino deu-se por satisfeito e disse a Vogt que arranjaria outra maneira de pagar o favor ao professor de grego. E fez dele seu assessor por algum tempo.

Quando se tratou da vinda do economista José Serra, as dificuldades passaram por outros caminhos. Serra constara de listas negras da USP desde o tempo de estudante da Escola Politécnica, estivera exilado no Chile de Allende e, com a ascensão do ditador Pinochet em 1973, refugiou-se nos Estados Unidos, onde fez carreira acadêmica. Em 1978, podia ser encontrado na Universidade de Princeton como professor visitante. Os economistas, liderados por João Manuel Cardoso de Mello, ansiavam pela contratação do colega, mas o processo estava parado na gaveta do coordenador dos Institutos, o físico Sérgio Porto, que tinha birra dos intelectuais de esquerda.

— Aposto que ele é igualzinho a vocês, pilheriou Porto.

— Sim, igualzinho, retrucou João Manuel com ironia.

— Ah, então vai ser difícil sair o contrato. Não vou recomendar.

Zeferino é homenageado na Academia Brasileira de Medicina Militar, no Rio de Janeiro, em abril de 1972E fez uma advertência a João Manuel:
— Vocês precisam admitir professores de outra linha ideológica. Por que só gente de esquerda?

Mas quando João ameaçou armar um escândalo em torno do que considerou uma interdição moral inaceitável (metendo de permeio a informação corrente de que Porto representava uma empresa americana de vendas e assistência técnica de intrumentos analíticos sofisticados, a Spex, para a qual havia desenvolvido um espectrofotômetro anos antes), o físico mais que depressa desengavetou o processo. E Serra foi contratado.

No início de 1974, o vento estava inteiramente a favor de Zeferino. No oitavo ano de sua administração, as contestações sobre seu mandato haviam silenciado. Seus adversários, inclusive o deputado Del Bosco Amaral, tinham-se cansado de malhar ferro frio ou estavam entregues a outras causas. Até mesmo o Estadão, que tanto o acossara nos dois anos anteriores, parecia indiferente à controvérsia quando noticiou de maneira neutra, em 23 de março, que estava “tudo pronto para Zeferino Vaz permanecer mais quatro anos” na reitoria da Unicamp. Meses antes, por sugestão do governador Laudo Natel, o reitor havia convocado o Conselho para propor a modificação do estatuto e dar-lhe prerrogativa de colégio eleitoral. Preparava assim sua recondução tranqüila ao cargo de onde nunca saíra. No dia 25, o Conselho pariu uma lista tríplice onde constavam, além de Zeferino, o dentista Plínio Alves de Moraes e o químico Giuseppe Cilento. A lista era uma mera formalidade, pois a indicação do mandarim eram favas contadas. A votação no Conselho só registrou um voto contrário, o do médico Carlos Eduardo Negreiros de Paiva, a quem, a partir de então, não mais dirigiu a palavra.**



* “Razões de uma atitude”, 12/9/1962.

** Negreiros renunciou à função de representante dos professores titulares no Conselho Diretor e justificou-a “por dissentir das posições assumidas pelo então reitor Zeferino Vaz e inclusive por não querer participar da pantomima que foi sua eleição para reitor no período 1974-78”, e também em face da “escalada dos físicos nos postos-chave da administração superior da Unicamp”.


Continua na próxima edição.

 

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