Já contamos nesse jornal sobre a reação de Zeferino Vaz quando o professor Rubens Murillo Marques, em 1968, propôs a criação de um curso de computação na Unicamp. “Ciência da computação? Que negócio é esse?”. Ao que Murillo foi sucinto: “É o futuro, Zeferino”. Hoje aposentados, os professores Tomasz Kowaltowski e Cláudio Lucchesi juntam as cadeiras da sala que dividem no Instituto de Computação para contar a história que o futuro lhes reservou, e que se mistura à da unidade que ajudaram a construir – ambos estavam entre as primeiras forças arregimentadas por Murillo na Escola Politécnica, a fim de encarar aquela empreitada que a comunidade científica considerou coisa de malucos.
Emancipação
em 1996 gerou
disputa por
siglas que
virou troça
Cláudio Lucchesi percebeu bastante cedo que naquele mundo havia doidos para tudo, quando foi convidado a manipular um dos raros computadores científicos existentes no país, o IBM-1620 da USP. Sua tarefa era desenvolver o programa de correção do primeiro vestibular unificado, o Cescem da área médica, em 1965. A proeza impressionaria menos se Lucchesi não tivesse apenas 18 anos de idade e se aquela não fosse a primeira correção computadorizada de vestibulares realizada na América Latina. Ele guarda as listagens até hoje. Entre os responsáveis pelo Cescem estavam Walter Leser, Isaías Raw e, claro, Murillo Marques.
Já contratado pela Unicamp, Cláudio Lucchesi viabilizaria outra idéia precursora de Murillo, um sistema de matrículas por computador, usando para isso o venerado IBM-1130 de 200 mil dólares (e de outras histórias também já contadas neste jornal). Para chegar até o equipamento, instalado nos fundos do Colégio Culto à Ciência, era preciso afastar os lençóis pendurados nos varais pela mulher do zelador. Depois de duas noites sem dormir, a Lucchesi não restou forças nem para um “oi” ao rever a namorada.
Tomasz Kowaltowski trabalhava com o IBM-1620 na USP, quando Murillo pediu a ele, Imre Simon e Valdemar Setzer que elaborassem uma proposta de currículo para o bacharelado de ciência da computação na Unicamp. Zeferino dera uma semana de prazo. Mesmo antes da implantação do curso aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, Tomasz e Imre passaram a vir uma vez por semana a Campinas para dar aulas de programação, dentro da disciplina de cálculo numérico. Criado o departamento dentro do Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação, em 1969, os dois ensinaram por apenas dois semestres, seguindo depois para o doutorado no exterior.
Tomasz só seria contratado efetivamente pela Unicamp em 1977 e não viu a introdução do DEC-10, que ficou sob responsabilidade de Nelson Machado, professor no Imecc e também diretor do Centro de Computação. O DEC-10 foi notícia no Brasil inteiro, pois quem entendia de computação sabia o que o equipamento representava. Ele não trazia apenas uma gigantesca capacidade, mas um sistema operacional muito avançado conceitualmente, oferecendo o acesso compartilhado a usuários de todo o campus: na realidade, foi um predecessor das redes de computadores. O DEC-10 significava a quebra do domínio da IBM, que impunha ao mundo um sistema arcaico que não conversava com ninguém. Tomasz ressalva que se refere à IBM daquela época, pois a companhia hoje é outra, atuando como parceira importante no ensino e pesquisa da Unicamp.
Área cinza – A Unicamp disputa com a Universidade Federal da Bahia o privilégio de ter criado o primeiro bacharelado em computação no país, mas foi o curso do Departamento de Ciência da Computação do Imecc que serviu de modelo para muitos implantados posteriormente. Seu catálogo continua sendo disseminado, visto que sempre pode apresentar novidades na grade curricular. O DCC dividiu o espaço com os departamentos de Matemática, Matemática Aplicada e Estatística até 1986, quando o Imecc mudou-se para o prédio atual. Prevendo-se o aperto, todo o DCC, então chefiado por Cláudio Lucchesi, transferiu-se para o galpão chamado de Pavimecc (Pavilhão do Imecc).
Esta separação física fez emergir um sentimento até então velado de incompatibilidade entre os matemáticos e os autodenominados “computeiros”. Tomasz lembra que o coordenador de graduação, quando representava a unidade junto à comissão central, defendia muito bem os interesses de matemáticos e estatísticos, mas mostrava-se pouco convincente em relação aos problemas da computação por não compreender este mundo. Os computeiros, segundo Lucchesi, encontram-se na “zona cinza” entre a matemática e a engenharia. Não havia briga política ou mesmo ressentimentos, mas foi nessa época que o DCC apresentou um primeiro projeto de desmembramento do Imecc, desconsiderado pela reitoria. Na prática, o Departamento já era tratado como subunidade: tinha relativa independência financeira, assento em comissões de informática e seu domínio na Internet já era “dcc” e do Imecc, “ime”.
O sobrenome – O filho do Imecc só conseguiu sua emancipação dez anos depois, em 1996, mantendo orgulhosamente o sobrenome: Instituto de Computação. Mas isto exigiu negociações. Tomasz Kowaltowski, que foi o primeiro diretor, observa bem humorado que 30 anos depois da pergunta de Zeferino – “Que negócio é esse?” –, certas unidades passaram a fazer questão de ter “computação” no nome, para não falar de centros de pesquisa e departamentos. O próprio Imecc matutou para manter sua sigla, substituindo “Ciência da Computação” por “Computação Científica”, o que faz sentido, já que muito da matemática aplicada, por exemplo, tem a ver com computação científica.
Já a Faculdade de Engenharia Elétrica incluiu um “C” de computação na sigla (FEEC), justificando com sua presença na tal zona cinza. Um tipo de competição saudável, na opinião de Tomasz, pois a FEEC tem a eletrônica e as telecomunicações como parte central, mas também mantém atividades básicas da computação, assim como o Instituto de Física, com o desenvolvimento da computação quântica. As zonas cinzas marcam cada vez mais os trabalhos em áreas como medicina e biologia, física e química, biologia e química.
Justificativas à parte, o fato é que uma febre da computação assolava o campus em 1996, a tal ponto que dois professores do IC, Jorge Stolfi e João Carlos Setúbal, faziam circular em abril “Uma cronologia computacional”. Pelo texto espirituoso anunciando a mudança nos nomes de várias unidades, surgiam o Instituto Computacional de Química (ICQ), a Faculdade de Engenharia Mecânica Computacional (FEMC), o Instituto de Biologia Computacional (IBC), o Instituto de Filosofia Computacional e Ciências da Automação Humana (IFCCAH), a Faculdade de Engenharia de Software Civil (FESC), e a própria Unicamp passava a se chamar Unicomp.
Os dez anos – Tomasz Kowaltowski dirigiu o IC temporariamente por um ano e por mais quatro anos em mandato regular. Sua primeira preocupação foi procurar pró-reitores e gente experiente da administração, simplesmente porque não tinha a mínima idéia dos procedimentos burocráticos para realizar contratações de funcionários e professores, reformas e manutenção do prédio, compra de materiais e equipamentos. Basicamente, foram cinco anos para a implementação do Instituto. Agradece a sorte, pois já pôde contar com o galpão vizinho, até então ocupado pelo Centro de Computação, antes mesmo da criação da unidade, e depois com um terceiro prédio, onde hoje funcionam os laboratórios de aula com centenas de microcomputadores – em boa parte doados.
O IC possui atualmente cerca de 800 alunos na graduação, 150 no mestrado e 60 no doutorado. Tomasz lamenta a proliferação de escolas de segunda e terceira linhas, que despejam profissionais que serão contratados a baixos salários no mercado, mas ressalta que as empresas que buscam qualidade conhecem a fonte. Nesses dez anos, o Instituto também gerou seus filhos, entre eles empresas de razoável porte, fundadas por ex-alunos. Outra contribuição da unidade que tem atraído muita atenção são as contribuições à organização das Maratonas de Programação e das Olimpíadas de Informática, estas últimas coordenadas por Ricardo Anido, que foi o segundo diretor do IC.
No Projeto Genoma, os holofotes brilharam sobre o Instituto. A Fapesp, ao convidar vários laboratórios da área biológica para a formação da rede, deu-se conta de que talvez precisasse procurar no exterior os especialistas para desenvolver a parte computacional. E soube de dois docentes do IC que escreveram um livro sobre biologia computacional de circulação internacional: um deles é João Meidanis e o outro é João Carlos Setúbal, o autor da cronologia ironizando a febre da computação.