A Lei brasileira que trata dos refugiados (1997) é considerada uma das mais avançadas e inovadoras da América do Sul. Na região, o Brasil foi o primeiro país a regulamentar a complexa questão do acolhimento de perseguidos em decorrência de nacionalidade, raça, religião, opiniões políticas, pertencimento a determinado grupo social ou de violação dos direitos humanos. A posição brasileira caminha na contramão dos países europeus e dos Estados Unidos, que cada vez mais criam empecilhos para o processo de reconhecimento dessas pessoas. Na opinião de Julia Bertino Moreira, mestre em relações internacionais pela Unicamp, uma justificativa para a limitação ocorrida nos países desenvolvidos a partir da década de 1970 e mais duramente nas de 1980 e 90 seria o choque cultural, uma vez que os refugiados basicamente têm sua origem em países com características diferentes do Estado que os abriga.
“A partir da década de 1950, os interesses dos Estados desenvolvidos tornaram-se diversificados. O debate em torno da definição do que seria um refugiado passa a ser fervoroso”, explica Julia Moreira. Do final da Segunda Guerra Mundial até os anos 70, a maioria dos refugiados era de origem européia, sendo que os países acolhedores, como Estados Unidos, Austrália e Áustria não mantinham diferenças culturais significativas em relação a eles. Além disso, no contexto do pós-guerra, havia interesse no acolhimento de uma mão-de-obra barata e abundante para estimular o crescimento econômico. “Com a diminuição dos conflitos da Guerra Fria e a recessão econômica nos países desenvolvidos, a situação se inverte. Nos anos 80 e 90 esses países começam a receber refugiados latino-americanos, vietnamitas, africanos, asiáticos e as comunidades locais já não os vêem com bons olhos”, esclarece a pesquisadora.
Atualmente, as limitações são ainda maiores. Os países da Europa e Estados Unidos recebem um número considerável de refugiados, mas seu reconhecimento esbarra em várias implicações burocráticas. “Quando o país reconhece um refugiado, o custo econômico e social é grande. É preciso oferecer garantias até que a situação de perseguição termine e o indivíduo tenha condições de retornar ao país de origem. O refugiado tem inclusive o direito de trabalhar. Essa proteção pode durar anos, dependendo do caso”, informa Julia Moreira. Por isso, esses países começam a adotar a proteção temporária e estabelecem cotas para o acolhimento e limite de tempo para que o refugiado permaneça em seus territórios.
Depois de um primeiro contato com o tema em trabalho de iniciação científica na PUC de São Paulo, Julia Moreira partiu para o mestrado na Unicamp a fim de produzir um resgate histórico dos refugiados no contexto internacional. Ela fez entrevistas e acompanhou os procedimentos na Cáritas entidade ligada à Igreja Católica que inicia e monitora o trâmite desses processos e analisou os arquivos do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Obteve assim uma visão geral que levou à dissertação intitulada “A questão dos refugiados no contexto internacional de 1943 aos dias atuais”, orientada pelo professor Shiguenoli Miyamoto, no âmbito do programa de pós-graduação interinstitucional San Tiago Dantas, que reúne Unicamp, Unesp e PUC-SP.
O trabalho detalha a primeira convenção criada no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), trazendo a definição clássica de refugiado. Nela, os refugiados são enquadrados em apenas cinco categorias, que correspondem à perseguição por raça, nacionalidade, religião, opiniões políticas e pertencimento a determinado grupo social. No final da década de 1960, mais precisamente em 1969, a África estendeu o abrigamento a indivíduos perseguidos em função de conflitos armados. “Esta elaboração se dá na época de guerras pela independência de inúmeros países africanos, como Argélia e Angola”, esclarece. A declaração dos países latino-americanos, de 1984, segue a definição ampliada, mas por conta dos conflitos em países como Argentina, Chile e El Salvador acrescentam a violação massiva de direitos humanos.