O sociólogo Renato Ortiz foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a estudar a mundialização. Um pioneirismo que remonta ao final dos anos 80 e início dos 90, quando, juntamente com estudiosos do calibre de Milton Santos e Octavio Ianni, organizou seminários e debruçou-se sobre o tema. Mais do que identificar o fenômeno, Ortiz logo constataria à época que a nova temática –negada, no início – exigia uma espécie de ruptura com o pensamento mais convencional das ciências sociais.
Sua análise procedia: novas categorias de conceitos iriam irromper ao longo dos anos seguintes. A reboque da profusão de visões e estudos inéditos, entretanto, emergiria o senso comum. “Não houve mediação de qualquer espécie entre esses diferentes momentos”, avalia Ortiz. O primeiro e mais visível efeito da ausência dessa ponte foi a banalização do termo em escala planetária.
Causas e conseqüências dessa distorção são analisadas por Renato Ortiz no livro “Mundialização: Saberes e Crenças” (Brasiliense). A obra, recém-lançada, reúne cinco ensaios e textos esparsos. Os escritos não só aprofundam e dão seqüência aos inúmeros estudos que o intelectual empreendeu no terreno da cultura ao longo de sua trajetória, como debatem temas pouco explorados, entre os quais a supremacia do inglês nas ciências sociais, a noção do público entre o nacional e transnacional, religião e globalização, imperialismo cultural, e o senso comum planetário. Uma amostra da obra de Renato Ortiz, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, está na entrevista que segue.
“Hoje é reconhecido que o processo tem raízes históricas e dificilmente se fala da globalização enquanto ideologia”
Jornal da Unicamp – A academia vem dando conta de estudar a globalização a contento?
Renato Ortiz – Sim e não. O debate da globalização é muito recente. Somente no final dos anos 80 e início dos 90, as ciências sociais começaram a se ocupar da problemática. Foi um período difícil no qual o tema não tinha um direito pleno de cidadania. Havia um conjunto de preconceitos e entraves.
JU – De que natureza?
Ortiz – Talvez a dificuldade maior dizia respeito ao reconhecimento da existência do próprio processo. Muitas vezes ele era confundido com uma mera ideologia. Tratando-se pois de uma ideologia, “uma falsa consciência” e não de um processo social com raízes históricas, não haveria a necessidade de dar a ele a devida atenção. Tornava-se assim difícil compreender as mudanças atuais e sua relação com temas como modernidade e Estado-nação.
JU – Por que essa dificuldade?
Ortiz – Por colocar em causa não só as realidades específicas existentes na sociedade mas também os conceitos para a análise e compreensão desta nova realidade. As disciplinas acadêmicas tendem a ser um tanto conservadoras. Estamos hoje num outro patamar. O processo é reconhecido, poucos o negam, e dificilmente falaríamos da globalização enquanto ideologia. Evidentemente existem ideologias (inclusive uma dominante) no seu interior mas a relação unívoca globalização=ideologia deixou de ter sentido. Os próprios movimentos “anti-globalização” mudaram sua auto-denominação; eles se consideram “alter-globalistas”. Quer dizer, se antes eles se achavam fora do processo, agora estão dentro e buscam um caminho alternativo.
Pode-se dizer ainda que o debate sobre a pós-modernidade, predominante nos anos 80 e parte dos 90, hegemônico nas ciências sociais, declinou. Creio que este refluxo ocorreu devido a um conjunto de problemas que se tornaram evidentes e não possuem uma solução parcial. O elogio indiscriminado da diferença foi obrigado a se recentrar.
JU – O senhor poderia exemplificar?
Ortiz – A discussão sobre a pós-modernidade trouxe a meu ver um elemento positivo, uma valorização do particular e uma desconfiança em relação a um certo discurso eurocêntrico sobre o universal. Entretanto, ao focalizar-se demasiadamente no elemento identitário, perdeu-se uma visão mais cosmopolita do mundo. Dificilmente, no quadro do pensamento pós-moderno, poderíamos compreender fenômenos de amplitude mundial, menos ainda buscar respostas para questões como o problema ambiental, a financeirização da economia, a flexibilização do trabalho etc. Durante este período, as ciências sociais caminharam lentamente, tateando um pouco, buscando construir bases mais sólidas para uma reflexão. Entretanto, ao longo deste percurso houve, novamente, uma inversão dos sinais da discussão. O que era negado, a globalização, passou a ser afirmado sem nenhuma perspectiva crítica. Surge assim o que eu chamo no livro de senso comum planetário.
JU – O fenômeno banalizou-se?
Ortiz – Exatamente. Nós passamos de um momento no qual a globalização era ocultada para outro no qual “tudo se globalizou”. O tema está na televisão, nas revistas de moda, nos jornais, nos movimentos ecológicos...Digamos que as ciências sociais não tiveram tempo ainda para trabalhar de maneira crítica, com uma relativa distância, esse fenômeno que, apesar de novo, já se impõe como senso comum. As explicações são dadas como se fossem verdades e sobre elas não pairam dúvidas.
JU – O senhor disse recentemente em entrevista ao Jornal da Unicamp que, quando surgiu, a globalização era um fenômeno que exigia uma ruptura com o pensamento mais convencional das ciências sociais? Isto aconteceu? Se sim, em que medida?
Ortiz – A exigência permanece. Só que, agora, com um problema a mais: além de uma ruptura com o pensamento tradicional das ciências sociais, é necessário também romper com o senso comum. Por exemplo, quando são usadas explicações do tipo “vivemos numa sociedade em rede”. Não existe sociedade em rede. Uma sociedade em rede é uma sociedade que work as a net. Ora, nenhuma sociedade “funciona” desta maneira.
As sociedades são compostas de diversas dimensões e instituições – família, religião, política, cultura, artes – que certamente não podem ser subsumidas à noção de rede. O conceito pode ter utilidade quando analisamos alguns aspectos como o capitalismo financeiro, a gestão das empresas, mas seria insensato qualificar toda uma sociedade através de uma noção que apenas a apreende parcialmente.
JU – Quais os fatores que contribuíram para essa distorção e quando esse senso comum passou a predominar?
Ortiz – Existe uma série de diagnósticos elaborados na esfera da administração, da economia, dos homens de marketing, do jornalismo, que tomam o mundo como objeto e que desfrutam de uma autoridade certamente indevida. Por isso utilizo, em um dos ensaios, como fonte básica de análise, esses livros, muitos deles best-sellers vendidos em todos os aeroportos do planeta. Eles materializam um senso comum planetário que constrói uma narrativa coerente e infundada sobre nossa contemporaneidade. O debate das ciências sociais com o senso comum é antigo, porém, o interessante é que hoje, devido à existência de instâncias sociais transnacionais, ele se mundializa.
Constrói-se assim uma versão da globalização que, ao ser difundida e celebrada, na mídia mundial, no jornalismo especializado, em escritos tipo Peter Druker, passa a ser considerada como o retrato fiel da realidade. É necessário trabalhar com uma certa distância essas versões e entender como elas são construções específicas do mundo contemporâneo. Daí o título de meu livro, “Saberes e Crenças”, pois várias dessas narrativas transformam-se em crenças.
JU – Nessa linha de raciocínio, parece haver uma certa confusão entre as esferas da macroeconomia e os conceitos de natureza ideológica, relegando a um plano secundário outras conseqüências do fenômeno. Por que o senhor acha que ocorre isto?
Ortiz – Certamente, desde o início de minha reflexão sobre a problemática, procurei estabelecer uma distinção entre mundialização da cultura e globalização técnica e econômica. Há certamente uma relação entre esses níveis mas não uma homologia. Não existe, e tampouco existirá, uma “cultura global”, uma única concepção de mundo. Enquanto se fala de mercado global ou de tecnologia global, na esfera cultural somos obrigados a enfrentar o tema da diversidade. Para mim, a globalização é uma situação, uma totalidade que envolve as partes que a constituem, mas sem anulá-las.
Neste contexto, o velho e o novo estão presentes; o local, o nacional e o tribal não desaparecem. O “velho” é re-significado e o novo marca as mudanças ocorridas. Trata-se de uma realidade na qual convivem e entram em conflito espaços e temporalidades distintas. É essa riqueza da análise que às vezes se perde quando o quadro atual é analisado apenas do ponto de vista econômico.
JU – O senhor quer dizer que ele, por si, não explica a sociedade?
Ortiz – Sim. Ele nos dá apenas a ilusão.
“O inglês não é mais norte-americano ou britânico. A pessoa de qualquer nacionalidade pode manipulá-lo”
JU – Além de ser, invariavelmente, hegemônico.
Ortiz – Ele é hegemônico e ilusório. Por ser hegemônico, nós acreditamos, ao falarmos de economia, estarmos explicando os fatos que nos cercam. Isto não significa que a dimensão econômica não seja importante e constitutiva dos fenômenos atuais. Não tenho dúvidas a este respeito. Porém, ela está longe de explicar o conjunto de fatos vivenciados por nós. É curioso, como a colonização do debate atual pela economia tende a ter um valor terapêutico; ao se hipertrofiar uma dimensão da análise ela permite sempre a busca de uma solução, econômica, dos problemas enfrentados. O pensamento atua como uma espécie de pacificador dos conflitos conceituais e uma compensação psicológica diante das contradições do mundo real.
JU – Anestesia o debate...
Ortiz – Creio que até mesmo entre os economistas.
JU – Em um dos ensaios, o senhor analisa a supremacia do inglês no mundo contemporâneo. Como surgiu o interesse pelo tema?
Ortiz – Queria entender, de forma crítica, como se dá esta hegemonia e quais as implicações disso para as ciências sociais. Queria entretanto evitar uma armadilha usual e escapar de um tipo de análise vinculada a duas categorias – imperialismo cultural e raiz nacional. Creio que realizei minha intenção.
Primeiro, entendendo o inglês como uma língua que adquiriu um status e uma legitimidade de cunho mundial. No campo de forças das línguas existentes, ele ocupa uma posição hierarquicamente superior. Isso significa que o inglês não é uma língua franca, neutra, utilizada apenas em benefício de uma melhor comunicação, pois o atual mercado de bens lingüísticos é constituído por relações desiguais entre os idiomas.
JU – E quais são suas implicações para as ciências sociais?
Ortiz – O inglês transformou-se na língua da modernidade-mundo. Neste sentido ele não é mais norte-americano ou britânico; ele se des-territorializa para se re-territorializar no espaço da modernidade do mundo. Qualquer um, independentemente de sua nacionalidade e de sua localização, pode manipulá-lo. Existe, portanto, uma variação de ‘ingleses” re-trabalhados em diferentes contextos culturais.
JU – Que resulta na diversidade de sotaques.
Ortiz – Sim. É o preço pago pela centralidade da língua. Porém, se você não sabe inglês, você é um analfabeto na modernidade do mundo, encontra-se excluído de suas fronteiras. Isso implica em novas relações de poder e de força entre os idiomas. No caso das ciências sociais, ao contrário das ciências da natureza, o objeto sociológico é construído através da língua. O idioma não é acidental, secundário, ele é constitutivo da construção do objeto. A mesma realidade, trabalhada em inglês ou em outras línguas, apresenta versões finais não necessariamente coincidentes. Pois as categorias de compreensão da realidade se espelham na língua.
JU – E como fica o papel da tradução?
Ortiz – Quando traduzo conceitos, não posso esquecer que eles estão enraizados em determinados contextos, lingüísticos e sociais. E é sempre bom lembrar que as ciências sociais estão sempre referidas a contextos.
JU – O senhor poderia exemplificar?
Ortiz – A diferença entre nacionalism e questão nacional. Nacionalism é uma coisa, questão nacional é outra. As duas configurações expressivas se cruzam mas não coincidem. Quando eu falo sobre a problemática da questão nacional na América Latina, não estou falando necessariamente de nacionalismo. Refiro-me a temas como: modernidade incompleta, construção do Estado nacional, identidade, cultura popular, relação entre o estrangeiro e o autóctone etc. Esta é uma discussão tradicional nos escritos dos modernistas, dos arquitetos, dos políticos, e também das ciências naturais. O nacionalismo é uma dimensão, entre outras, nesta constelação expressiva.
JU – Os conceitos não batem.
Ortiz – Exatamente. Escrevendo em inglês, opto por um determinado recorte. Caso houvesse um abandono da construção do objeto sociológico em outras línguas, a favor do inglês, teríamos uma versão empobrecida da realidade. Ela perderia em diversidade e em acuidade.
JU – Em que medida o mundo da cultura foi atingido pela globalização?
Ortiz – As implicações são várias. Há uma des-territorialização de certos símbolos e signos, que perdem seu significado local e nacional e adquirem uma dimensão mundial. Por exemplo, Madona já não é mais americana, Pokemon japonês, e Pelé brasileiro. Todos têm uma origem geográfica qualquer, no entanto, enquanto símbolos eles integram um imaginário coletivo mundializado que transcende seus países de origem. Transforma-se também nossa concepção de espaço, e principalmente as noções de autóctone e estrangeiro.
O que antes era visto como “alienado” – estranho à nossa concepção nacional – torna-se agora interno à modernidade-mundo. As marcas dessa cultura mundializada, sobretudo na sua versão do entretenimento, pode ser vistas na arquitetura dos hotéis de turismo, nos shoppings center, nas novelas, artigos de jornais, publicidade etc. Dificilmente poderíamos entender esta realidade restringindo-se ao debate tradicional entre cultura nacional e modernidade, cultura popular x cultura erudita, imperialismo cultural x autenticidade nacional.
JU – Teóricos colocam a internet como a tábua de salvação de manifestações culturais locais e/ou regionais, sobretudo aquelas que se mantêm isoladas. O senhor concorda com essa visão?
Ortiz – Não há dúvida que os meios informáticos conectam grupos diferentes. Entretanto, é falsa a idéia de que conexão seja sinônimo de integração. Eu até discuto isso num dos textos do livro. O mundo atual encontra-se conectado mas não necessariamente integrado. A noção de integração nos remete a um outro universo, cultural e social, e não meramente técnico, como a de conexão. Posso escutar uma rádio da Croácia pela internet, mas preciso entender servo-croata para saber o que está acontecendo.
JU – Mas existe também a opção de não se integrar.
Ortiz – O problema não é tanto a questão de não se integrar, é que os processos de integração não são coincidentes. Por exemplo, os grupos islâmicos fundamentalistas. Eles são distintos dos grupos islâmicos tradicionais e utilizam os recursos da informática para se conectarem entre si e organizarem suas atividades. O que os aproxima não é a internet, mas uma concepção de mundo calcada numa determinada interpretação do Alcorão, que lhes dá “fundamento” para agirem da maneira que agem.
A utilização dos meios de comunicação, na situação de globalização, tem sinais diferenciados. Muitos estudos cometem um equívoco simples quando falam de nossa contemporaneidade. Eles estabelecem uma homologia entre a cultura e o sistema técnico. Daí, após uma análise exaustiva da expansão planetária dos meios de comunicação, eles concluírem a existência de um “mundo integrado”.
JU – É consensual que a internet democratizou as relações no mundo globalizado. O senhor concorda?
Ortiz – Acho que há um equívoco de base nessa discussão. O equívoco é vincular a técnica a questões de ordem ideológica. Isso é uma constante na história dos meios de comunicação. Por exemplo: a imprensa, em determinado momento, foi vista como um veículo democrático, em contraposição ao universo elitizado dos livros. A invenção da televisão, por causa de sua abrangência, foi percebida como um meio “mais” democrático do que a imprensa. Novamente, os adventos do computador e da internet são valorizados como instrumentos que incentivam a pluralidade e a democracia. O problema é que cada um desses exemplos supõe uma equivalência entre meio técnico e valor político. Mas democracia é um conceito que em hipótese alguma poderia ser reduzido à dimensão técnica dos fenômenos sociais. Nesse sentido, para mim, a internet em si não é um avanço nem um retrocesso democrático. A questão seria: quais são as concepções políticas dos diferentes grupos que a utilizam e em que medida elas contribuiriam ou não para o fortalecimento da democracia?
“O Estado perdeu o monopólio sobre o conjunto de questões culturais, que agora são regionais, étnicas ou mundiais”
JU – Mas, por outro lado, é inegável que foi facilitado o acesso a determinadas mídias. É possível, por exemplo, ouvir uma música sem necessariamente ter de comprar um CD. Há sites que armazenam e disponibilizam músicas de milhares de bandas.
Ortiz – Certamente, mas não devemos confundir acesso com democracia. É perfeitamente possível vivermos numa sociedade autoritária que nos dá acesso a um conjunto de bens materiais. O fato de termos uma escolha maior, na sua pergunta, de músicas, é evidentemente bom. Não vejo porque indignar-me quando posso escolher entre roupas de cores e modelos diferentes, ou estilos arquitetônicos diversos para reformar minha casa. Mas isso não significa um incremento de democracia. Senão deveríamos pensar como esses manuais muito utilizados nas escolas de administração de empresa nos quais a liberdade transformou-se em sinônimo de “livre” escolha no mercado.
JU – Em que medida alguns conceitos derivados da economia globalizada, entre os quais a produtividade, têm peso na academia?
Ortiz –A idéia de produtividade, infelizmente, transformou-se num valor. No mundo científico, a partir dos Estados Unidos, ainda na década de 60, um sistema de avaliação, que posteriormente se desenvolveu através de vários organismos internacionais, passou a fazer parte de diferentes governos, na Europa e na América Latina. São essas idéias que implementaram as reformas na Capes e no CNPq. Mesmo as universidades passaram a integrar esses valores de maneira pouco crítica.
No fundo, este sistema de avaliação responde, não tanto a questões de ordem científica, mas é utilizado como instrumento para guiar o planejamento das fontes financiadoras de pesquisa e a gestão das universidades (o que em si é um objetivo válido). Por exemplo, a contagem de artigos e publicações como meio de aferição do conhecimento produzido, ou importância dada às citações e seu “impacto” na produção do conhecimento. Isso favorece, primeiramente, um determinado tipo de visão específica do trabalho científico; em segundo lugar, o inglês.
JU – A academia, na sua opinião, foi também obrigada a render-se à supremacia da língua?
Ortiz – Sim. As bases de dados são majoritariamente em inglês. Basta consultar o portal Capes, praticamente tudo que é estrangeiro encontra-se em inglês, ou seja, produzido nos Estados Unidos e na Inglaterra. Isso é uma distorção grave – alimenta um certo provincianismo globalizado. Como a afirmação da produtividade passou a ser uma forma de distinção no contexto nacional, e como o sistema favorece o inglês, o círculo se fecha – somente o que é escrito em inglês torna-se importante (quero dizer, é visto como importante). Acredita-se que se faz a “melhor” ciência quando na verdade está se reproduzindo uma ordem da organização científica, pouco explícita, inclusive, para os próprios praticantes das diversas disciplinas.
JU – Com a dimensão das “crenças e saberes” do título do livro na mundialização?
Ortiz – Sim, os temas dos ensaios são distintos mas todos dialogam com uma mesma problemática, marcada no título. Em que medida estamos falando de saberes ou de crenças? Meu objetivo é desembaralhar as linhas deste novelo para enxergar melhor as contradições e os impasses da atualidade.
JU – Ao desembaralhá-las, o que o senhor conclui?
Ortiz – Apenas desembaralho. Não tenho ilusões em relação a isso. Não creio que as ciências sociais sejam um guia para a ação política, elas devem simplesmente contribuir para o esclarecimento e o conhecimento. As ações propriamente políticas derivam de um conjunto de outras coisas – interesses, visões ideológicas, circunstâncias históricas. O trabalho intelectual não substitui esta pluralidade de sentido e de intenções. As ciências sociais, felizmente, não são capazes de estabelecer normas de condutas para os diversos grupos da sociedade. As normas de condutas são negociadas e trabalhadas em conflito pela sociedade.
Enquanto indivíduo, evidentemente participo disso, mas não possuo nenhuma vocação messiânica para “corrigir” a realidade. Sobretudo nos tempos atuais, quando falar em ética tornou-se um tema banal. Um pouco como se “pimenta só arde nos olhos dos outros”. Todos falam da ética sem situá-la em nenhum lugar. Como se existisse um espaço da pureza no qual o discurso que a enuncia estive seguro e imaculado para sempre. Desconfio dessas coisas.
JU – Que avaliação o senhor faz do papel do Estado nesse cenário de banalização de conceitos?
Ortiz – O Estado-nação já não tem a mesma força de antes. Marx dizia que a burguesia de sua época não tinha mais um papel heróico, de criadora de uma civilização. O Estado-nação, parafraseando Marx, já não tem mais o mesmo papel heróico. Isto não significa que ele desapareceu ou vá desaparecer. Ele ainda tem uma enorme importância, mas os tempos são outros.
JU – Em que medida?
Ortiz – Por exemplo, dentro de seu território, arbitrando a ordem e o destino dos seus cidadãos. E também, em escala transnacional, atuando como uma entidade importante na constituição de consenso e normas internacionais.
SERVIÇO |
Mundialização:
Saberes e
Crenças
Autor: Renato Ortiz
Editora Brasiliense
Páginas: 214
Preço: 32,00 |
JU – E na esfera da cultura?
Ortiz – Nesta área, definitivamente, ele perdeu muito de sua “jurisdição”. O Estado já não mais consegue organizar o que seria a “identidade nacional”, ele também perdeu o monopólio que tinha em relação a um conjunto de questões culturais, que são agora, regionais, étnicas ou mundiais. Sua presença é certa, mas não mais com a mesma força. O Estado-nação guarda também o monopólio da violência, e em termos políticos, a capacidade de equacionar diversos conflitos, embora não todos.
JU – E a capacidade de implementar políticas públicas?
Ortiz – Não tenho nenhuma dúvida de que o Estado tem a capacidade de promover algumas políticas públicas no interior de seu território. Se não o faz, isso se deve a outros motivos. Porém, na discussão da globalização, tampouco tenho dúvidas de que seu poder de ação se restringiu. Já não é mais possível pensar a política em termos exclusivamente nacionais; somos obrigados, a pelo menos imaginá-la, em âmbito mundial. Do contrário, ficaremos aprisionados a esquemas que já não mais dão conta da realidade.
JU – Que análise o senhor faz do papel da religião nesse contexto?
Ortiz – Mostro em que medida as religiões universais – catolicismo, islamismo etc – têm um estatuto diferente no contexto da globalização. Sua condição é distinta do momento de emergência da modernidade, no século XIX, com a Revolução Industrial. Por serem transnacionais, essas religiões têm uma capacidade de atuação muitas vezes superior à do Estado-nação. Neste movimento de ação planetária, as religiões estão bem municiadas, pois conseguem agregar as pessoas e não simplesmente conectá-las.
JU – Isso foi potencializado pela globalização?
Ortiz – Sem dúvida. A jurisdição do Estado-nação está restrita a seu território, o terreno da religião é “universal”. Visto sob essa perspectiva, eu diria que as religiões e as grandes corporações atuam em escala global. No contexto da modernidade, a religião perde espaço para o Estado-nação; com a globalização, isso muda de figura.
JU – Quais são as implicações dessa mudança de paradigma?
Ortiz – Na definição da política moderna, o Estado-nação tinha a primazia do fazer política. Agora, ele é curto-circuitado por forças que se legitimam por causa de sua natureza e amplitude, transnacionais.
Quem é Renato Ortiz |
Professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), Renato Ortiz é graduado em Sociologia pela Université de Paris VIII. Fez mestrado em Ciências Sociais e doutorado em Sociologia na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Escreveu, entre outros livros, A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Ed.Vozes, 1978. Reedição Ed.Brasiliense, 1991); Cultura Brasileira e Identidade Nacional (Ed. Brasiliense, 1985); A Moderna Tradição Brasileira (Ed. Brasiliense, 1988), Cultura e Modernidade (Ed. Brasiliense, 1991); Românticos e Folcloristas (Ed. Olho d’Água, 1992) e Mundialização e Cultura (Ed. Brasiliense, 1994). Um Outro Território: ensaios sobre a mundialização (Olho d’Agua, 1996); O Próximo e o Distante: Japão e a modernidade-mundo (Brasiliense, 2000); Ciências Sociais e Trabalho Intelectual (Olho d’Agua, 2004). |