Cadernos de desenhos
Os dois primeiros volumes de coleção lançada
pela Editora da Unicamp trazem obras de
Tarsila do Amaral e Eliseu Visconti
LUIZ SUGIMOTO
Tarsila
do Amaral e Eliseu Visconti são os artistas enfocados nos
dois primeiros volumes da coleção Cadernos de Desenho,
lançamento da Editora da Unicamp em co-edição com a Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo (Imesp). [O desenho] “É
onde o pensamento do artista se materializa, organiza, expressa
e constrói. (...) Esses cadernos guardam momentos de cumplicidade
únicos, quase nunca divulgados (...). Seu uso recorrente,
como bloco de anotações, carnês de viagem ou diários
de artistas, guarda o pensamento construtivo que norteia
o processo de criação e da construção das imagens”,
escreve na apresentação a professora Lygia Eluf, do Instituto
de Artes (IA) da Unicamp, idealizadora e organizadora da
coleção.
Segundo Lygia Eluf, a maioria dos artistas tem o hábito
de manter cadernos de desenho, que nem sempre vêm a público
no Brasil, enquanto que em outros países existem belas
obras fac-símiles da intimidade criadora. “Eu também
funciono assim: preservo duas estantes cheias de cadernos
e tenho sempre um à mão, como uma espécie de ateliê
portátil que levo na bolsa para anotações, pensamentos, desenhos,
preparação de aulas. É mania antiga”.
Igualmente antiga é a ideia da professora de publicar estes
desenhos no país, desde que viu paisagens e figuras humanas
de Lasar Segal numa impressão barata e no formato de pequenas
cadernetas de bolso intituladas Confetes. “Depois,
em 1995, fiz uma exposição na Itália e encontrei amigos
de infância que moraram no Brasil e são colecionadores
de obras de arte. Fiquei encantada quando vi os desenhos
de Visconti e Tarsila que eles tinham em seu acervo. Trouxemos
os desenhos para o Brasil e desde então a idéia de publicá-los
não saiu mais de minha cabeça”.
Os amigos que confiaram o acervo a Lygia Eluf, com os quais
estudou, são filhos do proprietário da antiga Galeria
Collectio, importante casa de leilões de São Paulo que
agitou o mercado brasileiro das artes nos anos 1970. “Quando
Tarsila estava velhinha, doente e pobre, eles compraram
tudo o que havia em seu ateliê e os desenhos foram empilhados
para que ela assinasse – a coleção traz a figura de
um lustre que estava de ponta-cabeça e assim foi autografado”.
Os dois volumes iniciais de Cadernos de Desenho
mostram registros de viagem de Tarsila do Amaral pelo oriente
e de Eliseu Visconti a bordo de um navio para estudar na
Europa. Para escrever sobre os desenhos, a organizadora
da coleção convidou pessoas muito próximas aos dois artistas:
Antonio Carlos Rodrigues (que assina Tuneu), único aluno
de Tarsila e hoje professor do IA; e Ana Maria Tavares Cavalcanti,
que defendeu tese de doutorado em Paris sobre Visconti.
“Queria manter o espírito e a intimidade dos cadernos
de desenho e, por isso, escolhi quem pudesse escrever desse
modo."
Em seu texto, Tuneu cita Paul Klee – “Nenhum dia sem
uma linha” – e Degas – “O desenho não é forma,
é maneira de ver forma” – antes de lembrar uma das
lições que recebeu de Tarsila sobre o desenho: “Numa
das nossas tardes de sábado, quando levei novos trabalhos
e, como sempre, não desenhara sistematicamente como precisava,
ela disse: ‘Quando você não puder desenhar, escreva
seu nome 20 vezes!’. O que me impressionou é como a disciplina
mais uma vez aparece como a palavra de ordem do pensamento
e da organização dos processos criativos no procedimento
de Tarsila”.
Ana Cavalcanti já conhecia desenhos de Visconti, mas não
os da coleção italiana, aos quais foi levada pelo filho
do artista, Tobias D’Angelo Visconti. Ela escreve: “Não
contemplamos obras acabadas, mas trabalhos em andamento.
É justamente por isso que esses desenhos nos atraem. Eles
mostram a agilidade do traço, as variações de texturas
e tracejados, as experiências com diversos enquadramentos.
Por meio deles, acompanhamos as tentativas, hesitações
e descobertas de Visconti. É como se abríssemos o diário
íntimo do pintor”.
Fonte de pesquisa – Como desenvolver
pesquisa a partir de uma mera sequência de imagens? Diante
da indagação que poderia vir de um acadêmico não afeito
ao mundo das artes, Lygia Eluf responde que, para quem é
alfabetizado visualmente, é possível entender o que o
artista está buscando de um desenho ao outro. “Desenho
é pesquisa e é muito interessante ver que em um de seus
desenhos, Visconti anota: ‘pesquisa para o quadro Maternidade’,
importante obra em exposição permanente na Pinacoteca
do Estado”.
Para a docente do IA, os cadernos trazem à tona um trabalho
invisível, reforçando a ideia de que um artista pode fazer
pesquisa na universidade sem abrir mão da natureza da arte,
que é sua área de conhecimento. Sobre isso, Tuneu lembra
uma afirmação de Mário de Andrade: “O verdadeiro limite
do desenho não implica de forma alguma o limite do papel,
nem mesmo pressupondo margem”. E Ana Cavalcanti resgata
uma declaração de Visconti: “O desenho deve preceder
o próprio alfabeto. Ele é a porta por onde a criança
tem a revelação do mundo”.
Lygia Eluf observa que o desenho não é um recurso utilizado
apenas pelos pintores para o desenvolvimento de suas idéias
no processo criativo. “Cartier-Bresson, meu fotógrafo
favorito, desenhava muito para treinar o seu olhar e pensar
a fotografia, que é algo instantâneo. Da mesma forma,
há cineastas que desenham as cenas antes de filmar, num
exercício mental que ninguém vê. Como já dizia Da Vinci,
desenho é pensamento, explicita o processo de construção
da obra”.
Próximos volumes
A
coordenadora editorial de Cadernos de Desenho explica
que a demora entre a concepção e a publicação da coleção
deveu-se à prerrogativa de que o material fosse de qualidade
e, ao mesmo tempo, acessível aos estudantes e leitores
leigos. “Desde o início, insisti numa publicação bem
mais barata do que normalmente são os livros de arte, que
a pessoa pudesse gostar e dar de presente. A parceria da
Editora da Unicamp com a Imesp permitiu esta redução no
custo sem nenhum prejuízo na qualidade das imagens. Os
volumes estão sendo muito elogiados e expostos com destaque
nas livrarias, ao preço de R$ 35 cada”.
A
expectativa da professora da Unicamp é de lançar entre
três e cinco volumes por ano, sempre no formato quadrado
que caracteriza a coleção e que permitiu a reprodução
dos desenhos nos tamanhos originais. Em sua opinião, a
fonte parece inesgotável e o conselho editorial está já
em busca de novos acervos. “O próximo livro será com
Renina Katz – que já autorizou a publicação dos seus
desenhos – e comentários de Ferez Khoury, professor da
FAU/USP, amigo e uma espécie de discípulo da artista”.
Os seguintes, segundo Lygia Eluf, deverão ser com Marcello
Grassman e Vilanova Artigas, e talvez um outro volume de Visconti,
contendo desenhos de um bordel. “Também estamos pensando
em Maria Bonomi, Lasar Segal e Araújo Portoalegre. Com o
tempo, poderemos abrir a coleção para que pesquisadores
e artistas possam apresentar seus próprios projetos para
publicação, a mesma abertura que a Editora da Unicamp já
oferece em relação a livros”.