E
a esquerda,
para onde vai?
ÁLVARO
KASSAB
|
Na foto acima, Lula, José
Dirceu e o deputado João Paulo, presidente
da Câmara, durante cerimônia de assinatura
do projeto de lei que estabelece medidas de incentivo
ao setor da construção civil, no
Palácio do Planalto, no último dia
4. |
O governo estaria adotando
uma linha de ação que contraria fortemente
o ideário da esquerda brasileira ao alinhar-se
com as instituições financeiras internacionais,
submeter-se às exigências das organizações
multilaterais, deixar em segundo plano os problemas
sociais e optar por uma postura ética no mínimo
ambígua no recente episódio envolvendo
o ex-subchefe de Assuntos Parlamentares, Waldomiro
Diniz, assessor do ministro-chefe da Casa Civil, José
Dirceu. A avaliação é de quatro
renomados intelectuais de esquerda, dois dos quais
filiados ao partido que hoje comanda o governo.
A convite do Jornal da Unicamp, os
sociólogos Octavio Ianni e Ricardo Antunes,
e os economistas Wilson Cano e Plínio de Arruda
Sampaio Júnior, todos professores da Unicamp,
analisam nesta e nas três páginas seguintes
a atuação do governo. As conclusões
passam longe de qualquer lisonja. Se de um lado os
docentes colocam a questão ética como
crucial no atual momento vivido pelo Planalto, de
outro lembram que os indicadores econômicos
divulgados nos últimos dias servem de alerta
a um governo que, para alguns, esteve mais preocupado
em mimetizar a cartilha do marketing político
e compor alianças duvidosas do que enfrentar
os problemas surgidos nos últimos 14 meses.
Os intelectuais avaliam que não serão
pequenos os estragos no interior da esquerda.
Na página 8,
a professora Eni Orlandi, do Instituto de Estudos
da Linguagem (IEL) e do Laboratório de Estudos
Urbanos (Labeurb), analisa o silêncio adotado
pelo governo após o caso Waldomiro. “O
silêncio do Lula é o de quem caiu na
real”, conclui.
1-
Se o governo insistir na atual política econômica
atrelada às metas das instituições
financeiras internacionais e, sobretudo, se se instalar
uma crise de credibilidade ética como a que
se configura,
em que medida isso afetaria uma opção
de esquerda para o futuro?
Octavio
Ianni – A minha avaliação
é a de que o governo não está
plenamente senhor dos graves e difíceis problemas
da sociedade nacional. E, claro, das implicações
desses problemas no âmbito das relações
transnacionais. Se é que alguns membros do
governo tenham alguma clareza sobre a importância
das organizações multilaterais ou dos
processos econômicos, financeiros e tecnológicos
que ocorrem em escala mundial, esse entendimento não
está se traduzindo em decisões ou avaliações
que demonstrem uma compreensão desse quadro
complicado.
Por sua retórica vazia e pouco relacionada
com a realidade, o governo demonstra que a percepção
do que realmente está acontecendo no país
está muito frouxa, muito débil. O governo
está se comportando de uma maneira epidérmica,
impressionista, ao acaso das situações.
Inclusive, caminhou muito rapidamente para o teatro
da política, para o espetáculo das manchetes,
como uma técnica de conseguir a onipresença.
Isso demonstrou rapidamente que é vazio, inócuo
e enganoso.
A pergunta que muitos se fazem no Brasil é
a seguinte: quantas foram as horas em que Lula de
fato exerceu a presidência? Outra indagação:
será que Lula nunca se perguntou o que o José
Dirceu está fazendo e quem é essa figura
[Waldomiro Diniz] que estava funcionando como braço
direito do ministro-chefe da Casa Civil? Quer dizer,
esse quadro momentoso tem a ver com o fato de os governantes
estarem funcionando na base das representações,
das impressões e do espetáculo político.
Não há nenhuma diretriz que demonstre
que os governantes tenham um entendimento inteligente
do que realmente está acontecendo no mundo
e no país.
Plínio de Arruda
Sampaio Júnior – São
muitas as lições que as esquerdas precisam
tirar do governo Lula. Quero destacar uma. É
uma perigosa aventura eleitoral comprometer-se com
transformações econômicas e sociais
sem construir a correlação de forças
que permita sua efetiva realização.
Impotente para enfrentar os interesses externos e
internos que sustentam o modelo econômico brasileiro,
o governo Lula acomodou-se ao status quo. Por isso,
está condenado a frustrar as esperanças
dos milhões de brasileiros que apostaram na
mudança. A esquerda está obrigada a
explicar esta situação para o povo brasileiro.
Está obrigada também a construir as
condições políticas, sociais
e ideológicas que permitam uma efetiva ruptura
com o capitalismo dependente. Só assim, a esquerda
será capaz de dar uma resposta construtiva
à gravíssima crise institucional que
deve resultar da profunda frustração
popular.
Ricardo Antunes –
A opção de esquerda já foi afetada.
Na verdade, a esquerda construída no país,
sobretudo nos últimos 20 anos, estruturou-se
em torno do PT. Há outros setores que não
estão no PT, mas o amplo leque de esquerda,
desde a década de 70, com a emergência
do novo sindicalismo, das oposições
sindicais, dos movimentos sociais, do movimento dos
trabalhadores do campo, da esquerda que vinha da luta
armada, da dissidência dos partidos comunistas
tradicionais, tudo isso confluiu no PT. Uma das principais
conseqüências do governo do PT hoje no
poder foi ter destruído essa esquerda, à
qual ele era o principal instrumento.
Por isso é grotesco ver na
imprensa certas figuras do aparato burocrático-partidário
saírem dizendo por aí que o PT ainda
continua como sendo de esquerda, quando sua práxis
é conservadora. A política econômica
que o PT sempre pregou era uma política econômica
alternativa e contrária a essa inserção
subordinada do Brasil à globalização.
O PT e esse amplo e heterogêneo leque da esquerda
abrigada em seu interior, por meio de seus grupos,
tendências, intelectuais, movimentos sociais,
sempre disseram que um outro modelo econômico
alternativo e contrário a esse é possível
e necessário.
E o que aconteceu? O PT assume o poder, dá
continuidade ao governo anterior, do Fernando Henrique,
e, em alguns pontos, é mais duro no ajuste,
como na questão do superávit, do pagamento
dos juros da dívida, no desmonte da previdência
pública... Isso tem conse–qüências
profundas no interior da esquerda. O PT, a julgar
pelo seu núcleo dominante hoje no poder, não
pode mais ser tomado como partido de esquerda. Se
por esquerda se entender como aquela que propugna
mudanças substanciais e profundas da ordem.
Qual seria o desenho da política econômica
política alternativa? Primeiro: o país
tem 170 milhões de habitantes, sendo que a
força humana de trabalho chega na casa dos
80 milhões. É evidente então
que o país tem uma força interna que
foi inclusive o sustentáculo do projeto de
desenvolvimento nacionalista da época do getulismo,
que começa em 1930 e vai até o golpe
militar. Até mesmo a ditadura militar, nefasta,
integradora e servil ao capital externo, que veio
para quebrar o projeto nacional-desenvolvimentista,
soube preservar um espaço para uma expansão
com base em setores internos. Mas a ditadura desmontou
o esquema getulista. O país passou a ter uma
economia bifronte, que se acentuou, produtora de manufaturados
ou agrícolas prioritariamente para o mercado
externo.
É preciso, então,
redesenhar a estrutura produtiva do país. O
seu pilar de sustentação deve ser a
massa consumidora brasileira. Era preciso desenhar
um projeto de expansão voltado para a produção
de bens de consumo de massa, para a integração
desses 58% da força de trabalho que hoje estão
precarizados. Ao contrário, isso só
tem aumentado nesse governo do PT. Todos os dados
indicam que isso vai continuar aumentando porque as
medidas não foram no sentido de incentivar
o mercado interno, de travar a sucção
de recursos para o pagamento da dívida in–terna
e externa e investir pesado na infra-estrutura do
país – habitação, transporte,
saneamento, ciência, que implica incentivo à
universidade pública. É preciso fazer
uma reforma agrária que redunde na criação
de cooperativas no campo, de molde coletivo, de tal
modo que você possa ter a produção
de bens de consumo agrícola, incrementando
a produção alimentar para dar o salto
para diminuir esse nível de miserabilidade.
É preciso travar o fluxo de capitais globalizados,
forçando-os a investir. É preciso uma
recusa da subordinação estrutural ao
FMI.
Da mesma forma, torna-se necessário
incentivar o processo de publicização
da res publica que foi privatizada e desmontada. Se
o governo fosse corajoso, iniciaria um processo de
desprivatização de empresas que não
poderiam ser privatizadas, como energia elétrica,
telecomunicação, para não falar
da previdência pública. Era preciso instituir
um sistema de previdência pública universal
no país e não desmontá-la para
criar um sistema calcado em fundos privados de pensão
que só beneficiam o sistema negocial financeiro.
Esses seriam os pontos básicos, só para
começar. Por que o PT não fez isso ?
Não fez porque sua opção hoje
é por um outro modelo, a da subordinação
às intempéries do mercado financeiro
global e seu capital destrutivo.
Wilson Cano –
Uma crise de ética (decorrente de fundamentos
reais ou falsos) é sempre ruim a um governo,
principalmente quando o crescimento econômico
é débil, como o do atual governo. É
ainda pior, quando atinge o centro do poder do PT,
partido que sempre se pautou por posturas éticas,
denunciando a corrupção, exigindo sua
investigação legislativa (CPIs) e se
batendo, radical e vigorosamente, pela justiça
social (distribuição de renda, salário
mínimo, saúde e educação
públicas, etc.). O que se nota no momento,
são atitudes só em parte coincidentes
com aquelas posturas. É óbvio que a
esquerda nacional (independentemente de vínculo
partidário) se sente hoje frustrada, e terá
dificuldades enormes para, no futuro, voltar ao discurso
ético perante a opinião pública.
Por outro lado, como a esquerda partidária
faz parte de uma coligação partidária,
penso que a crise será ainda mais dura, pois
não haverá nenhum partido de esquerda
“fora do poder”.
CONTINUA