Leia nessa edição
Capa
Pesquisa com seres humanos
Estudos : anemia falciforme
Pesquisa : café solúvel
Alcalóides de grãos
Para onde vai a esquerda?
Hermetismo : o viés autoritário
A persistência do marasmo
O silêncio que silencia
Unicamp : C&T no Amazonas
Painel da semana
Unicamp na mídia
Oportunidades
Teses da semana
Acervo da comédia nacional
Arte moderna : alma do negócio
 

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‘A persistência do marasmo
é contagiante e embotadora’

5- Ao adotar posições políticas e ideológicas afinadas com o neoliberalismo, o governo não corre o risco de jogar por terra todo um projeto que as esquerdas tinham construído para o país? Ainda há espaço e tempo hábil para uma depuração e para uma correção de rota?

Plínio de Arruda Sampaio Júnior – O governo Lula é a negação de todo um passado de luta social que, com maior ou menor intensidade, caracterizou a atuação do PT e de seus aliados de esquerda nos últimos 25 anos. Ao contrário do que o “marketing” político procura vender, o governo Lula não tem nem o mais remoto comprometimento com as bandeiras da esquerda e do socialismo. Não haverá correção de rota. Não existe Plano B. Portanto, não há como esconder o Sol com a peneira. O governo Lula representa uma grande derrota para as esquerdas. Foram anos de acúmulo político perdido e, agora, só nos resta contabilizar o prejuízo, tirar as lições da trombada e dar a volta por cima. Vai ser um processo lento e doloroso.

Ricardo Antunes – É triste dizer isso para quem vota no PT desde 1982. Não falo nem mais como intelectual, mas como filiado ao PT, desde 1983: é triste constatar que o PT dominante, aquele que está no poder, não tem mais nada a ver com a esquerda. Claro, alguém poderá dizer que é uma esquerda tipo Tony Blair. Mas, assim como Blair, não dá para imaginar que se trata da esquerda. Se a esquerda pressupõe mudanças e, que, portanto, essas mudanças ferem interesses, o PT deixou de ser um partido de esquerda. Ele tem uma esquerda importante em seu interior que está completamente refletindo, pensando seu presente e futuro. É evidente que não faz mais sentido a esquerda ser o “discreto charme” do PT.

A esquerda teve seus melhores parlamentares expulsos, seus melhores quadros silenciados e pior, que só podem se candidatar se se subordinarem a uma máquina partidária que é virulenta, que tem em seu núcleo indivíduos de formatação stalinista desde sua origem, com uma cabeça oscilando entre a social-democracia e uma pragmática neoliberal. Só isso explica o por quê do desmonte da previdência pública. É inaceitável. Resta um espaço? É imperioso que haja uma alternativa para as esquerdas. Mesmo que a contextualidade social e política seja diferente; em 1980 nós estávamos lutando contra uma ditadura militar. A luta social estava ressurgindo com vigor – CUT, PT, MST... A década de 90, década da desertificação neoliberal, que é um título de um livro que estou terminando, mudou esse quadro. As formas partidárias estão hoje muito desgastadas, mundialmente falando. Aquelas que foram bem-sucedidas, como é o caso do PT, têm agora final melancólico como partido de esquerda. Está no poder, agindo como um Partido da Ordem, com uma moderação que assusta até os moderados. Até o Soros, um saqueador internacional, disse recentemente que a política econômica do PT é demasiadamente recessiva. É inegável, portanto, que mesmo estando desgastada a forma partidária, as esquerdas do PT – sindicatos e movimentos sociais - buscam alternativas.

O PT vem se mostrando tão privatista como o PSDB. Não voltou atrás sequer naquelas privatizações que, por questões éticas, deveriam merecer uma revisão. Isso para não falar dos transgênicos e da Alca. Não é de estranhar que, nesse quadro, a esquerda tenha sido abalada. É evidente que setores descontentes dos movimentos sociais e do sindicalismo vão se mexer. Tudo precisa ser recomeçado. Esse quadro da esquerda brasileira, que vigorou no último quartel do século passado, acabou. O PT não é mais o partido anticapitalista, não é mais o partido de socialistas que pretendiam mudar o mundo. O PT no poder não se alinha mais à bandeira imperiosa de que um outro mundo é possível. Lula imagina poder estar com um pé no Fórum Social Mundial e o outro em Davos. É triste, mas é esse o quadro atual.

Wilson Cano – Não se trata de “correr um risco”, pois o desastre da adoção do neoliberalismo é uma realidade concreta, que só não vê e entende quem não quer, ou pelo menos os economistas, a elite e os políticos. O risco não é apenas passageiro; não representa apenas um fracasso parcial. Ele já foi suficientemente longo (como 1990/2002 com Collor/Itamar/FHC e a continuidade atual) para causar um enorme estrago à esquerda. Assim como ficamos “na fila” da democracia entre 1964 e 1985, a esquerda pode ter que amargar outra longa e sofrida espera, até que uma nova oportunidade histórica surja. A persistência do marasmo é contagiante e embotadora das consciências críticas.

Sim, há espaço, desde que as lideranças políticas possam se reunir, com a coragem necessária, para dar um basta ao neoliberalismo e retomar o caminho de uma maior soberania nacional, coisa que nossas elites abandonaram em troca do “canto de sereia” do neoliberalismo. Mas isso não é fácil, pois são sempre os mesmos os que financiaram e aplaudiram a abertura de Collor, o “grande governo” de FHC e este reinício de “austeridade fiscal e monetária” que praticamos desde 1/1/2003. Esta política, convém frisar, não nos vai levar a lugar algum: continuaremos com crescimento medíocre, alto desemprego, gradativas pioras na distribuição da renda, e crescente tumoração do orçamento público, que continua engordando os rentiers estrangeiros e os da República.

O silêncio que silencia

A professora Eni Orlandi: “O silêncio é uma forma de não dar satisfação à nação”

O silêncio em que mergulhou Lula após o episódio Waldomiro Diniz, quase em paralelo à divulgação das más notícias sobre o desempenho de seu governo, sobretudo aquelas relacionadas aos indicadores econômicos, é ao mesmo tempo real e estratégico. Real em razão dos resultados negativos e da crise de credibilidade que se instalou. Já o recuo estratégico, que jogou no limbo as metáforas e as parábolas do primeiro ano, é uma tentativa de silenciar outros discursos que começaram a fazer eco e passaram a ocupar a faixa até então exclusiva do governo, entre eles os dos parlamentares da oposição e da imprensa. A análise é da professora Eni Orlandi, pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp. “O silêncio do Lula é de quem caiu na real”, avalia a docente, uma especialista em análise do discurso e também titular do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

Mesmo abrupta, a mudança de comportamento teve uma passagem manifestada no recuo, revelador de que o governo “está no risco”, de acordo com Eni. A professora lembra que uma das características do discurso de Lula, até adotar o silêncio dos últimos tempos, era a falta de mediação. Em suas falas, o ex-sindicalista discursava com tanta familiaridade e intimidade que apagava deliberadamente sua imagem de presidente. “Essa postura dava um efeito de proximidade mas tirava a característica, importante, de o governo ser governo, de falar como governo”, esclarece a especialista.

Segundo Eni, Lula não só apagava a representação de presidente, que era pressuposta mas não dita, como deixava a voz aos ministros mais proeminentes do governo, no caso Antonio Palocci, do Planejamento, e José Dirceu, da Casa Civil, que assumiam, em suas falas, posições do governo, “muito embora a vacuidade fosse a marca comum em seus respectivos pronunciamentos. Ambos não configuravam esse lugar centralizado, falavam de maneira dispersa e, com freqüência, diziam ‘que essa era a vontade do presidente Lula’”.

Tal estratégia, na opinião da professora, configurava-se numa maneira de Lula não entrar em contato direto com uma realidade que poderia desgastá-lo perante a opinião pública. Para a especialista, dois instrumentos deixaram o presidente à vontade nesse papel, caracterizado, segundo ela, pelo excesso: o marketing político e a cumplicidade da mídia. No caso do primeiro, a tarefa foi facilitada pelo dom natural que Lula tem de ser espontâneo, o que acabava acentuando o efeito – positivo – da encenação. Nesse palco, até os excessos, verborrágicos ou de outra natureza, eram relegados. “Não havia uma preocupação em convencer o interlocutor. A aceitação desse discurso estava implícita”, avalia a docente.

A mídia, por sua vez, fechou os olhos e entrou no clima de deslumbramento, reproduzindo falas permeadas por doses maciças de otimismo e um quê de messianismo, que invariavelmente eram carregadas de componentes recorrentes da ideologia pequeno-burguesa. “Lula aparecia como um guia que conseguiu chegar lá, vencendo obstáculos instransponíveis”. Qual é, então, a diferença do Lula presidente para o sindicalista? Para Eni, a falta de um projeto marca as duas fases. “O Lula sindicalista tinha convicções sedimentadas, consistentes e coerentes com as bases políticas. O Lula presidente habituou-se a pôr panos quentes para não ter de explicitar seus projetos”.

Na avaliação da professora, embora uma das funções do silêncio estratégico adotado por Lula é a de manter em evidência, sobretudo para o povo em geral, a antiga imagem de que as coisas estavam funcionando, a assessoria de marketing do presidente será forçada a encontrar uma saída. A especialista em análise do discurso enfileira os motivos que resultaram no esgotamento da fórmula: 1) o caso Waldomiro Diniz provocou um rombo na imagem “impoluta” do PT; 2) a falta de resultados positivos e os indicadores econômicos negativos deixaram o governo sem argumentos concretos; 3) as críticas ao governo anterior não ressoam mais; 4) o governo perdeu a hegemonia do discurso.

Autora do livro As formas do silêncio, Eni Orlandi explica que mesmo o mutismo tem seus limites. “O silêncio do governo é mais forte do que a fuga porque é uma forma de não dar satisfação à nação, de silenciar outras falas, de não suscitar perguntas, mas na medida em que a realidade cada vez mais venha à tona, serão necessárias palavras que correspondam a essa realidade”. Resta saber qual será o próximo repertório. (Á.K.)

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