Dentro
de um reator nuclear, durante todo o processo de fissão
do urânio para geração de energia elétrica, é emitido um
fluxo elevado de neutrinos – partículas subatômicas de carga
neutra e de massa extremamente pequena que, por causa da
sua fraca interação com a matéria, escapam livremente pela
cúpula de concreto. Convém esclarecer ao leitor que esta
radiação é inócua para o ser humano e a natureza. Mas por
que, então, cientistas estão instalando detectores de neutrinos
a 60 metros do reator de Angra 2?
“Um dos objetivos é utilizar os neutrinos para monitorar
o estado de atividade do reator nuclear, fornecendo medidas
da potência liberada para a queima do combustível [o urânio]
e alertando quanto a níveis críticos. Esses parâmetros podem
ser colhidos de forma independente da central de controle
e contribuiriam para garantir a eficiência e a segurança
da usina”, explica o professor Ernesto Kemp, do Departamento
de Raios Cósmicos do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW)
da Unicamp.
O outro objetivo do projeto, acrescenta o pesquisador,
está ligado com uma questão de segurança mundial: a de salvaguardas
para a não-proliferação de armas nucleares. “No ciclo de
queima de urânio para gerar energia, vai-se produzindo plutônio,
que é a matéria-prima para bombas atômicas. A partir da
quantidade inicial de urânio e medindo as potências com
que o reator trabalhou durante o processo, saberemos o quanto
resultou de plutônio”.
Segundo Ernesto Kemp, as operadoras de usinas, mesmo em
países que não assinaram o tratado para uso pacífico da
tecnologia nuclear, como os Estados Unidos, seguem a regra
de informar a quantidade retirada e armazenada de plutônio
à Agência Internacional de Energia Atômica (organismo da
ONU que reúne os países signatários). “O detector de neutrinos
permitiria averiguar a consistência das declarações prestadas
à Agência”.
O docente do IFGW recorda que desde o fim da corrida armamentista,
os restos da queima de combustível são acondicionados em
contêineres protegidos contra radiação e geralmente estocados
em túneis cavados nas montanhas – ou mesmo em grandes piscinas
protegidas dentro da contenção de concreto, como em Angra
dos Reis. Bastariam vinte quilos para fabricar uma bomba.
“Mas é bom deixar claro que o reator que temos no Brasil,
ao contrário de outros no mundo, não produz o plutônio pronto
para uso bélico. Ele precisa ser processado e o país não
tem condições, nem interesse nisso”.
Liderança
da Unicamp
O projeto Neutrinos-Angra é liderado pela Unicamp e pelo
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e foi viabilizado
em convênio tripartite com a Eletronuclear, subsidiária
da Eletrobrás criada para construir e operar as usinas termonucleares
do país. Participam do projeto pesquisadores da USP, Universidade
Federal do ABC, PUC-RJ, Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Incluindo
os pós-graduandos, o grupo brasileiro chega a 30 pessoas,
havendo ainda colaboradores da Itália, França e EUA.
Ernesto Kemp informa que o principal do financiamento da
pesquisa vem da Finep: quase R$ 1 milhão para apresentar
os primeiros resultados científicos até 2010. “Os recursos
foram liberados no final de 2007, mas ainda utilizamos pouco,
devido à dificuldade de adequar o projeto aos níveis de
segurança de Angra 2, que são altíssimos. Não era possível,
por exemplo, se aproximar do reator com dispositivos que
dependam de alta tensão ou produtos inflamáveis, quando
os nossos são todos com essas características”.
Somente em outubro passado, depois de a Eletronuclear avaliar
criteriosamente a questão da segurança, é que se iniciou
a montagem de um laboratório dentro de um contêiner quase
colado à redoma de concreto. “Este projeto interessou pessoalmente
ao presidente da Eletronorte, almirante Othon Luiz Pinheiro
da Silva, que tem interesse por pesquisas e liderou o desenvolvimento
do motor do submarino nuclear brasileiro. Ele gostou da
idéia de usar a estrutura da empresa para uma aplicação
científica”.
De
acordo com o pesquisador da Unicamp, o grupo desenvolveu
um sistema de controle remoto das sondas do laboratório
e algumas atividades de monitoramento já foram iniciadas.
“Estamos medindo, por exemplo, toda a radiação ambiente
que não venha do reator. É preciso conhecer muito bem o
que acontece ao redor, a fim de diferenciar o fluxo de neutrinos
que vem realmente da queima do urânio. Ter um laboratório
funcionando depois de três anos de projeto no papel é um
marco”.
Tecnologia nacional
Um aspecto importante do projeto Neutrinos-Angra, como ressalta
Kemp, é a geração de uma demanda por produção de tecnologia
nacional. “O detector que estamos instalando é um aparato
com vários subsistemas: o detector de neutrinos na parte
central, seguido de uma blindagem contra radioatividade
externa e uma última camada para detectar eventos de raios
cósmicos que poderiam falsear um evento de neutrinos. Trata-se
de um cubo com 3,5 metros em cada face”.
O professor do IFGW afirma que o objetivo é compactar este
aparato para facilitar seu transporte, sem prejuízo da robustez,
precisão e funcionamento que dispense a assistência constante
de um operador. Um avanço obtido é um módulo que capta os
sinais elétricos vindos do detector de neutrinos, transformando-os
em arquivos de dados para análise em computador. “Este equipamento
de eletrônica é encontrado no mercado, mas em três módulos
individuais, ao preço de três mil euros cada. Produzimos
um único módulo que engloba as três funções, com custo muito
menor”.
O
módulo em fase final de testes foi projetado por engenheiros
do CBPF, em parceria com Kemp, com a colaboração do Cenpra
(Centro de Pesquisas Renato Archer) na parte de microeletrônica.
“Além disso, há empresas privadas de Campinas interessadas
em produzir layout de circuitos, atendendo à nossa expectativa
de promover demandas tecnológicas para impulsionar a indústria
local. Muito do que importávamos, já produzimos aqui”.
De qualquer forma, Ernesto Kemp observa que não se deve
desviar o foco do experimento, que está na chamada física
de anti-neutrinos aplicada para monitoramento de reatores
nucleares. “Vejo uma valiosa oportunidade de aplicar os
conhecimentos sobre um fenômeno que estava apenas na esfera
da ciência básica, que se interessa pelas propriedades
da matéria. É o ciclo natural da ciência: por vezes,
não temos a menor idéia do porquê de um fenômeno; tempos
depois, inevitavelmente, tiramos dele uma aplicação tecnológica”.
O grupo brasileiro envolvido com a física aplicada de
anti-neutrinos organizará um workshop internacional em
Mangaratiba (RJ), nos dias 19 e 20 de março. Esta oficina,
que vai girar em torno da aplicação desta técnica e
do desenvolvimento de novas tecnologias, antecede um grande
congresso previsto para julho na Europa. “Os convidados
do exterior chegarão ao Brasil com alguns dias de antecedência,
a fim de discutir o projeto Neutrinos-Angra. Esta área
da física está ganhando grande visibilidade mundial”,
diz o professor Ernesto Kemp.
O pesquisador da Unicamp explica que há neutrinos cósmicos
que nos atingem vindos do sol, de supernovas ou de outras
galáxias; e há neutrinos que emanam do centro da Terra,
onde também se registra atividade nuclear. “Existe
uma série de detectores para estudá-los, cada qual com
suas características peculiares. Já o reator nuclear
surge como uma fonte de pesquisas bastante sedutora, pois
podemos estudar o fluxo de neutrinos sem precisar construir
equipamentos tão caros como um acelerador de partículas”.
Segundo Kemp, experimentos em reatores nucleares estão
sendo montados na usina de Chooz , na França (este com
a participação do grupo brasileiro), e no complexo de
Daya Bay, na China. “O objetivo principal, no campo
da pesquisa básica, é encontrar e medir uma grandeza
chamada ‘ângulo de mistura quântico teta13’, o parâmetro
físico que falta (de um total de seis) para a descrição
teórica das propriedades de oscilação dos neutrinos”.
Trocando os detalhes complexos em miúdos, o professor
explica que este parâmetro pode ser a chave para compreender
por que existe muito mais matéria do que antimatéria
no universo. “A descoberta das causas desta assimetria,
que em física denominamos violação de carga e paridade,
traria novas luzes, por exemplo, sobre a evolução e
a formação das estruturas do universo”.
Kemp acrescenta que, quanto mais fechada a descrição
das propriedades dos neutrinos, eles deixam de ser objeto
para se tornar ferramenta de estudo. “Sabendo como essas
partículas interagem com a matéria e como se comportam
durante a propagação, teremos informações importantes
sobre o que está acontecendo no sol, em estrelas que
explodem, nas vizinhanças de buracos negros, em núcleos
ativos de galáxias e também no centro da Terra. Já
se especula, inclusive, o uso do fluxo de neutrinos para
identificar jazidas minerais e de petróleo”.
Candidatura
O professor recorda que em outro workshop internacional
realizado aqui, em 2005, quando os especialistas ainda
organizavam um esforço internacional para medir o ‘ângulo
de mistura quântico teta13’, os brasileiros se candidataram
para construir um detector em Angra para este fim. “Um
ano depois, decidiu-se que a pesquisa seria abrigada na
França, que já tinha um projeto em estágio avançado
e devido a aspectos relacionados com experiência anterior,
logística e financiamento. Nessa ocasião ocorreu a fusão
dos vários grupos de pesquisadores de diferentes países”.
Entretanto, como o grupo brasileiro já havia iniciado
negociações com a Eletronuclear para realizar experimentos
em Angra 2, buscou-se um novo enfoque para o projeto.
“Na época, já se discutia a possibilidade de utilizar
os neutrinos como ferramenta de estudos e é isto o que
estamos fazendo. Dependendo dos resultados que colhermos,
a pesquisa poderá ser prorrogada para bem além de 2010”.