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O violão camaleônico de Almeida Prado
MARIA
ALICE DA CRUZ
Manuscritos
de Khamailéon (Camaleão), primeira obra para violão de
José Antonio Rezende de Almeida Prado, compositor brasileiro
e professor aposentado da Unicamp, foram recuperados e revisados
pelo violonista e pesquisador Fabio Scarduelli. O resultado
da revisão possibilita a primeira execução da obra, que
foi escrita em 1970, quando o compositor realizava seus estudos
com Olivier Messiaen (1908-1992), em Paris. A peça é de
grande complexidade, segundo Scarduelli, e exige que o solista
esteja muito bem preparado para executá-la.
O pesquisador tira Khamailéon
de um esquecimento de quase 39 anos. O próximo passo, depois
da análise interpretativa realizada durante o doutorado no
Instituto de Artes (IA) da Unicamp, orientado por Carlos Fiorini,
é organizar o concerto de estreia.
Classificada por Scarduelli
como uma obra de vanguarda, Khamailéon recebeu este nome pelo
fato de o violão imitar os sons lançados pela orquestra, assim
como um camaleão imita as cores na natureza. “A orquestra
é o meio ambiente, e o violão, o camaleão, que repete tudo
o que ela faz”, explica o musicista.
Almeida
Prado começa a compor obras de vanguarda quando rompe com
Camargo Guarnieri (1907-1993), uma de suas principais influências
no início da carreira. Neste momento, explora mais a música
serial, inspirado em vários acontecimentos na Europa de 1970.
Mais tarde, numa síntese de suas influências, entra na fase
pós-moderna, que envolve movimentos diversificados de sua
trajetória.
Há poucas obras no Brasil
para violão e grande orquestra. Num levantamento de obras
concertantes para violão presente na tese de doutorado de
Scarduelli foram encontradas apenas 15 composições brasileiras.
Dentre elas há obras de Radamés Gnatalli (1906-1988), Villa-Lobos
(1887-1959), Ernst Mahle, todas marcadas pelo nacionalismo.
Dentro da grande produção
de Almeida Prado, Khamailéon é um laboratório. “Foi uma obra
germinal. Ao fazer análises, constato que ela influenciou
muitas obras subsequentes. Muitos elementos que encontrei
em Khamailéon se desenvolvem em obras posteriores do mesmo
autor”, revela Scarduelli.
“Khamailéon
faz parte da fase “universal” (1965-1983) de Almeida Prado,
marcada por uma linguagem que tende ao atonalismo, à liberdade
formal, dentre outras características que nortearam o autor
após seu rompimento com a estética guarnieriana”, explica
Scarduelli. Ele ainda observa que a concepção deste estilo
foi estabelecida em seus estudos com Gilberto Mendes, Olivier
Messiaen e em sua vivência com as mais novas correntes da
música europeia entre as décadas de 1960 e 1970 em Paris.
Foi diante destas constatações, a partir de uma pesquisa detalhada,
que o pesquisador concluiu que Khamailéon é a única obra concertante
para violão de autor brasileiro escrita até o final da década
de 1970 que não apresenta traços nacionalistas. Sendo assim,
conclui o autor da tese, é a primeira obra de vanguarda no
gênero.
A peça foi composta para o
violonista espanhol Alberto Ponce, que lecionava, na época,
no Conservatório de Paris (França). Porém, foi perdida em
uma editora alemã e só foi resgatada há poucos anos pelo violonista
brasileiro Fábio Shiro, que não se aventurou em revisá-la.
“O violão só é chamado assim no Brasil – em outros países
usa-se ‘guitarra’ – e como o título era Fantasia para Violão
e Orquestra, ela se perdeu entre as obras de viola, em uma
confusão causada pelo nome”, explica Scarduelli.
A
revisão foi essencialmente importante, pois, de acordo com
Scarduelli, o manuscrito encontra-se numa espécie de rascunho
e contém um número grande de pequenas inconsistências relacionadas,
especialmente, à parte rítmica. “É uma obra inédita e complexa,
além de ser a primeira peça do compositor para violão, exigindo
assim que fossem feitas adequações para sua execução”, explica
o pesquisador.
Além do trabalho de adequação
da partitura, Scarduelli faz sugestões de interpretação para
Khamailéon. Várias questões interpretativas são abordadas
na tese, como diálogo entre os instrumentos, timbre, articulação
e dinâmica.
De acordo com o autor, Almeida
Prado ficou feliz em tornar viva a sonoridade de Khamailéon.
A obra deverá causar impacto pela sonoridade e, principalmente,
na história do violão brasileiro. “São poucos os novos concertos
de autores brasileiros que permitem ao violonista solar com
grande orquestra”, enfatiza o musicista.
O
resgate de manuscritos tornou-se mais numeroso pela criação
de cursos de pós-graduação em música, nos quais os alunos
buscam novas experiências e aprofundamento. “Há uma grande
tendência neste sentido”. As ferramentas tecnológicas também,
segundo Scarduelli, têm sido importantes nesse resgate. Mas
agora fica a expectativa de ouvir a execução da obra. “Isso
está sendo viabilizado”, conclui.
Compositor elogia pesquisa
A obra de Almeida Prado
é tema de projetos de mestrado e doutorado no curso
de música da Unicamp. O próprio Scarduelli dedicou sua
dissertação de mestrado “Obra para violão solo de Almeida
Prado”, realizada em 2007, aos aspectos interpretativos
da obra do compositor, que não hesita em tecer elogios
ao pesquisador: “Ele realizou um excelente e brilhante
trabalho a partir de minha obra”. O que para ele, além
de contribuir para a produção acadêmica, não deixa de
ser uma homenagem.
Almeida alegra-se ao
falar de mais uma dissertação sobre sua obra em andamento
no Instituto de Artes da Unicamp, onde trabalhou por
muitos anos. “Há mais uma pesquisa dedicada a uma obra
de piano minha que deverá ser defendida este ano”, revela.
Ver uma obra complexa
como Khamailéon, tanto tempo esquecida na Alemanha,
depois da rejeição de Ponce, é motivo de prazer e felicidade,
na opinião de Prado. “Dediquei a obra a Ponce, que não
quis tocar. Há muitas obras dedicadas que o instrumentista
não toca. Não faço mais isso. Tocou bem, entrego a obra”,
declara Prado.
Na opinião do compositor,
Scarduelli realiza um trabalho importante para a música
brasileira e principalmente para violonistas, pois além
de ele mesmo poder tocar, também coloca a partitura
à disposição de outros solistas. “Eu costumo dar liberdade
para os pesquisadores de minhas obras, porque é o momento
deles, é o doutoramento deles. Não pude acompanhar o
projeto, mas estou na expectativa de ouvir a obra ainda
este ano”, declara o compositor.
Na Unicamp, a revisão
de partituras é tratada como música e não se restringe
aos musicólogos, segundo Almeida Prado. A pesquisa permite
aos musicistas resgatar manuscritos e torná-los executáveis,
como fez Scarduelli.
Pianista, Prado tem
sua musicografia constituída principalmente por concertos
para piano, violino e violoncelo. O autor lembra também
que compôs várias canções para canto. Khamailéon é uma
das poucas peças dedicadas ao solo de violão. “Meu repertório
para violão é pequeno. Minha especialidade é o piano,
mas o Brasil tem autores maravilhosos como Villa-Lobos,
Francis Hime, que mescla erudita com popular”, diz.
Manuscritos
Os manuscritos ainda fazem parte do dia-a-dia de Almeida
Prado. Aos 68 anos, mesmo com tantos recursos eletrônicos,
ele confessa gostar de escrever suas músicas à mão.
“Anda não me rendi às novas formas de compor. Tem professores
excelentes hoje em dia que utilizam bem esses recursos
tecnológicos. Eu não quero mudar”, declara. Mesmo tendo
se aposentado das atividades acadêmicas em 2000, na
Unicamp, continua compondo e recebendo prêmios. O último
deles foi concedido pela Academia Paulista de Críticos
de Arte (APCA), em janeiro deste ano, na categoria música
erudita, como “melhor obra experimental”.
Em 2007, estreou no
Carnegie Hall a sua peça “Hiléia, Um Mural da Amazônia”,
uma cantata para baixo e orquestra, inspirada em poema
homônimo de Ives Gandra Martins, com a “Orquestra Bachiana
Filarmônica” de São Paulo, regida pelo maestro brasileiro
João Carlos Martins. Atualmente ministra alguns cursos
de análise musical e cursos sobre sua obra, em São Paulo,
além de apresentar um programa de música contemporânea
na rádio Cultura FM chamado Kaleidoscópio.
Acervo
Entre as várias pesquisas da Unicamp dedicadas à obra
de Almeida Prado, está o trabalho de iniciação científica
de Cristiano Mello, realizado em 2002, que culminou
na catalogação do acervo do compositor localizado no
Centro de Documentação de Música Contemporânea Brasil/Unicamp
(CDMC). O acervo se constitui de partituras originais,
cópias, edições, gravações, fotos, programas de concerto,
cartas e artigos de jornais e revistas. Foram catalogadas
587 partituras, além de teses e dissertações defendidas.
Durante o projeto, Mello preparou algumas partituras
do artista para difusão na mídia digital.
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