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Crianças têm altas concentrações de
chumbo nos dentes em cidade na BA
Detecção foi possível graças a
método
conhecido como Cálculo de Regressão Linear
Pesquisa
de doutorado desenvolvida pela odontopediatra Carolina de
Souza Guerra na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP)
mostrou que foram altas as concentrações de chumbo encontradas
nos dentes de crianças moradoras de Santo Amaro, cidade situada
no Recôncavo Baiano. A autora da tese escolheu essa cidade
para avaliar, por ser conhecido o seu histórico de contaminação
por chumbo, o que foi corroborado na investigação. O resultado
foi propiciado, pela primeira vez, por uma equação matemática
– chamada Cálculo de Regressão Linear, capaz de calcular,
para uma dada profundidade do dente, a quantidade de chumbo
encontrada no esmalte, que é o tecido mais superficial e externo.
Ao desenvolver
essa equação matemática, a pesquisadora conseguiu avaliar,
além do chumbo no esmalte, também na dentina, que é o tecido
interno do dente. A pesquisadora conclui ainda que houve uma
nítida tendência a existir uma maior incorporação de chumbo
nos dentes decíduos, de leite, no período pós-natal, ou seja,
após o nascimento da criança.
O estudo
comparou os dentes de crianças de 28 escolas de quatro municípios
de três Estados brasileiros: Rio Grande do Sul (Mato Leitão),
Bahia (Santo Amaro) e São Paulo (Ribeirão Preto e Cubatão).
Segundo a autora da tese, além de Santo Amaro, Cubatão também
foi estudada porque, desde a década de 1980, a Prefeitura
e o governo do Estado vêm trabalhando ali num projeto de preservação
ambiental, juntamente com a Organização das Nações Unidas
(ONU), obrigando as fábricas a não despejarem resíduos nos
rios. Dez anos depois disso, a cidade, que já foi considerada
“a mais poluída do mundo”, se tornou sinônimo de “exemplo
de recuperação ambiental”.
É fato
que poucos grupos de estudo hoje relacionam o chumbo ao dente.
O marcador que tem valor preditivo desse elemento químico
mundialmente aceito é o sangue, cujo limite tolerado de chumbo
é de 10 microgramas por decilitro. Para o dente, não existe
ainda este limite estabelecido, informa a odontopediatra.
Neste estudo, as concentrações de chumbo chegaram a 530 μg/g
de chumbo no esmalte dental.
Carolina
Guerra coletou os dentes, levou-os ao laboratório e fez a
limpeza necessária antes de analisá-los. Procedeu a uma intervenção
nos dentes, colocando-lhes uma solução ácida. Deixou agir
por 20 segundos, para depois fazer a análise dessa solução
que permaneceu em contato com o material avaliado.
Esse
ácido, conta ela, tem o mérito de extrair o chumbo, o fósforo
assim como todos os componentes inorgânicos presentes nos
dentes. De acordo com a quantidade de fósforo extraída, também
é possível deduzir o quanto de esmalte foi removido.
A amostra
estudada foi composta de 102 crianças na faixa etária entre
6 e 12 anos, por nesta etapa elas estarem perdendo os dentes
decíduos. Cada uma precisava doar pelo menos três dentes para
o estudo, o que foi consentido pelos seus responsáveis.
Em geral, Carolina Guerra fazia uma reunião com os pais explicando
a importância do trabalho, ministrava palestras abordando
o motivo da pesquisa sobre contaminação por chumbo, ensinava
por que ele é tóxico, por que estava sendo solicitado o dente
de leite e como seria feita esta pesquisa.
Na investigação,
nenhum procedimento era realizado na boca da criança, esclarece
a dentista. A análise permeou tanto dentes molares como incisivos
e caninos. “E pudemos perceber que cada tipo de dente tem
um padrão particular de distribuição de chumbo, ou seja, ele
não se acumula da mesma forma em diferentes classes de dentes
(incisivos, caninos e molares)”, expõe.
A
pesquisa descobriu que, “quanto mais profundo no dente, o
metal tende a ter uma quantidade menor, ficando mais na superfície.
Desta forma, entende-se que, para comparar uma criança com
outra, o ideal seria utilizando a mesma profundidade. “Só
que isso a gente ainda não sabia como fazer, porque não dispúnhamos
de dados suficientes acerca desse procedimento”, recorda a
dentista.
Efeitos
A pesquisadora imaginava que Cubatão (onde foi encontrado
116,7 μg/g de chumbo no esmalte) deteria então altas concentrações
do metal. Não foi o que se concluiu, ao passo que em Santo
Amaro foram encontradas, estas sim, as maiores concentrações
de chumbo nos dentes que foram alvo do estudo, confirmando
o seu histórico de contaminação e comprovando a ideia de que
realmente o dente pode ser utilizado como marcador de contaminação
ambiental.
Segundo a autora do trabalho,
na época em que os dentes decíduos estão sendo formados, como
o chumbo tem bastante semelhança química com o cálcio, ele
também entra na formação dos dentes. Mas o chumbo, em oposição
ao cálcio, não tem função biológica. É tóxico nas mínimas
concentrações, por isso o interesse em estudar o tema.
Apesar de não fazer parte do seu estudo, que foi conduzido
no período de 2007 a 2011, Carolina Guerra relembra os efeitos
amplamente difundidos da ação carcinogênica do chumbo, o mesmo
metal que é empregado na indústria de cosméticos, a priori
na composição de produtos como as maquiagens. Este elemento
químico também pode ser encontrado em alguns tipos de tintas,
especialmente aquelas de uso doméstico.
Absorção
O chumbo pode ser absorvido por inalação da poeira emitida
na atmosfera ou pela ingestão de resíduos deixados no solo.
O adulto somente absorve 10% do metal, já a criança pode reter
de 40% a 50%, percentuais sobremodo preocupantes para aquele
organismo frágil, ainda em fase de desenvolvimento. Neste
caso, o elemento pode representar efeitos neurotóxicos de
muita gravidade.
Ele pode atacar o sistema
nervoso central (SNC), ocasionando riscos de lesão cerebral,
embora isso seja imprevisível. Dentre os efeitos no sistema
nervoso central, a contaminação pelo elemento químico em grandes
proporções pode levar a distúrbios de comportamento, retardo
mental, dificuldades de concentração e de aprendizagem, e
hiperatividade, os quais muitas vezes passam despercebidos
em sua ampla relação com esse metal.
A intoxicação por chumbo com
frequência é uma perturbação crônica. O risco de apresentar
sintomas aumenta à medida em que se elevam os valores de chumbo
no sangue, onde ele permanece por no máximo 30 dias. Mas basta
um tempo e ele vai sendo distribuído para os tecidos moles
e duros do organismo. Dentre os tecidos duros em que é depositado,
estão os dentes e os ossos. Ocorre que nos ossos, como a criança
está em fase de crescimento, ele vai sendo recirculado para
o sangue, à medida que vai acontecendo a remodelação óssea.
Com o dente, não existe remodelação.
Uma vez o chumbo depositado nele, fica cravado de modo tal
como se fosse uma marca permanente. Vêm outros dentes, desta
vez os permanentes, e se o chumbo continuar no sangue, e a
criança prosseguir tendo contato com alguma fonte de deposição,
o metal ali vai permanecendo.
Carolina Guerra visitou Santo
Amaro. O município, ao invés de tratar a escória (resíduo
da indústria) para inativar o elemento químico, jogava-a nos
rios e nas ruas. Assim, a criança que estivesse brincando
descalça, inalasse os resíduos desse metal ou levasse a mão
à boca ficaria mais suscetível a contrair este tipo de contaminação.
A resposta dada pelo adulto
à contaminação é diferente, compara a pesquisadora. O chumbo
não afeta o seu desenvolvimento por estar, a essa altura,
já bem estabelecido. “Os efeitos não deixam de existir. São,
porém, outros, desde hipertensão arterial a nefropatias. Quando
se diz que, na criança, o efeito é mais grave porque ele está
mais relacionado ao SNC, é porque tal sistema é responsável
pelo ajustamento do organismo ao ambiente. Sua função é perceber
e identificar as condições ambientais externas, bem como as
condições do próprio corpo, e elaborar respostas que se adaptem
a essas condições”.
Brasil não dispõe
de programa de detecção
No Brasil, não existe um
programa sequer de detecção de chumbo em crianças contaminadas.
Nos Estados Unidos, é obrigatório que elas realizem anualmente
exames de sangue para averiguar se têm chumbo no sangue.
“Estamos tentando criar uma alternativa para esta verificação,
pois retirar sangue da criança é mais trabalhoso, e o custo
laboratorial é maior”, declara a dentista. Se houvesse informação
a partir de quanto esse metal é tóxico e a partir de quanto
é tolerável, acredita-se que seria mais fácil incorporar
essa medida no atendimento da população.
O teste de esmalte é feito
colocando-se uma fita mágica no dente, no qual se faz uma
perfuração circular no meio. Introduz-se uma gotinha de
solução ácida dentro dela, permanecendo 20 segundos em contato
com o dente. Após este tempo, a solução é aspirada e colocada
num tubinho, que contém um pouco de água ultrapura, a qual
dilui a solução ácida em contato com o dente. Tal procedimento
também pode ser feito na boca da criança. E o resultado
é aferido a seguir.
No estudo de Carolina Guerra,
segue a perspectiva de tentar definir o padrão aceitável
de toxicidade para o dente, a partir do qual seria possível
predizer o quanto a criança necessitaria de tratamento ou
de mais investigação. Isso ainda é inédito. “Fato é que
o chumbo não é encontrado naturalmente no organismo. Ele
é simplesmente um estranho”, afirma a odontopediatra.
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Publicação
Tese de doutorado: “Utilização de dentes decíduos
de regiões com diferentes históricos de poluição ambiental
para detecção de grupos de crianças expostas ao chumbo no
Brasil”
Autora: Carolina de Souza Guerra
Orientadora: Raquel Fernanda Gerlach
Unidade: Faculdade de Odontologia de Piracicaba
(FOP)
Financiamento: Fapesp
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