Jornal
da Unicamp – Na introdução de Emily Dickinson: Não sou
ninguém, o senhor observa que “tudo em Emily é paradoxo”
e que “a integridade poética que a caracteriza assume radicalismos
extremos”. Nesse contexto, quais foram os maiores desafios
encontrados na tradução dos poemas deste livro?
Augusto de Campos – O maior desafio, sem dúvida,
foi encontrar uma fórmula para tentar capturar, com “duende”
(Garcia Lorca, “Teoria e Jogo do Duende”) a linguagem extremamente
sintética da grande poeta, sabendo-se que o português leva
muita desvantagem em confronto com o monossilabismo do idioma
inglês, e considerada a meta de produzir poemas palatáveis
em nossa língua. Não me cabe julgar o que consegui.
Desacostumada com traduções artísticas, muita gente me
acusou, durante a minha carreira literária, de só dar valor
aos problemas estéticos. Realmente, mas transponho para
as traduções a consideração mais genérica de Pound: “a técnica
é o teste da sinceridade”. Se uma tradução não merece uma
boa técnica, é porque ela é de valor inferior. Mas sempre
acreditei, sem ser acreditado, que tradução é uma questão
de forma & alma. Arte & duende. Niña de los Peines,
Billie, Janis, “canta’oras”. No mais cf. no CD “Badu Live”,
a frase da cantora Erykah Badu que precede a faixa 12 (“Tyrone”):
“Now keep in mind that I’m a [sic] artist and I’m sensitive
about my shit…”, infelizmente suprimida do vídeo que pode
ser visto no YouTube. “Mme Bovary c’est moi”, disse o perfeccionista
Flaubert. Tento “ser” Emily. E, acreditem-me ou não, “I’m
a soul man.”
JU – O senhor traduziu obras que integram um leque que
vai de poetas provençais a Pound, passando por Donne, Mallarmé,
Cummings, Joyce e Khliébnikov, entre tantos outros. Muitos
desses autores eram praticamente desconhecidos no Brasil.
Em que medida a tradução cumpre no país uma missão, digamos,
didática?
Augusto de Campos – Creio que a função didática é muito
importante, não apenas no sentido de apresentar ao leitor,
em transposições artísticas, autores desconhecidos, alguns
considerados impossíveis de traduzir. É relevante, também,
em termos de ensinamento estético. Por exemplo, até professores
universitários não passam no teste da métrica. Foi uma tradição
poética que se perdeu nas gerações mais novas e que, paradoxalmente,
“os concretistas” Décio, Haroldo e eu, desde o início, dominamos.
De uns tempos para cá, o pé-quebrado é a regra até em traduções
eruditas, ainda que meritórias no que concerne a informações,
notas e dados biográficos. Não foi por outra razão que Décio
Pignatari, para surpresa de muitos, recomendou aos poetas
jovens que lessem Bilac… Olavo Braz Martins dos Guimarães
Bilac já era um alexandrino perfeito até no seu nome. Esse
não errava a mão nos sonetos que escrevia: “Última flor
do Lácio, inculta e bela…”.
No início, as nossas traduções foram amorosamente programáticas.
Era preciso reabilitar e fazer conhecer de verdade Mallarmé,
os Cantos de Pound, o Finnegans Wake de Joyce, os poemas
mais radicais de Cummings. Devotamo-nos a isso conscientemente,
com a idéia poundiana da crítica-via-tradução, além de enfatizar
esses grandes criadores em nossos artigos e manifestos.
Isso foi imprescindível até para o entendimento da virada-de-mesa
que estávamos tentando dar na poesia brasileira. Fazia-se
imprescindível encontrar um “paideuma” – um elenco de autores
básicos para que se pudesse regenerar a linguagem poética.
Pensar que a própria crítica francesa (sem contar, “entre
nous”, os francófilos, como o simpático Sérgio Milliet,
mentor da revista Clima), consideravam “Un Coup de Dés”
um fracasso. Foi um crítico americano, Robert Green Cohn
(L’Oeuvre de Mallarmé — Un Coup de Dês, 1951) que fez o
primeiro estudo conseqüente do poema. E os poetas franceses
da badalada revista Change só vieram a se dar conta da importância
do “Lance de Dados” em fins dos anos sessenta, mais de dez
anos depois de nós. Mesmo assim, quem se debruçar sobre
as nossas primeiras traduções lá encontrará, entre outras,
as de Villon (na estupenda e irreverente tradução que Décio
fez da “Balada da Gorda Margô”), Donne, Marvel, Marino,
Ungaretti, Wallace Stevens e muitos outros.
O grande Mário Faustino (este entendia do riscado) revirou,
um dia, a minha pasta de traduções e foi marcando, com uma
cruz a lápis, as de que mais gostava. Publicou algumas delas
na sua admirável página “Poesia Experiência”, no Suplemento
Literário do Jornal do Brasil, entre 1956 e 1958, na fase
da poesia concreta que denominamos “ortodoxa”. Depois dessa
primeira fase do movimento, restabelecido o “equilíbrio
ecológico” da recepção dos “inventors” da poesia do nosso
tempo, fomos abrindo ainda mais o leque. Com o generoso
apoio lingüístico de Boris Schnaiderman, nosso querido professor
de russo, Haroldo e eu publicamos em 1967, pela Editora
Tempo Brasileiro, nossas traduções de Maikóvski. E no ano
seguinte, pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira,
abominado pela ditadura, a antologia da poesia russa moderna.
Inclusive alguns dos poemas mais engajados, como os que
escolhi, de propósito, como “Tzares, tzares tremiam”, de
Khliébnikov; e, de Maikóvski, “Black and White” (sobre os
maus-tratos infligidos aos negros de Cuba pelos alvos “reis”
do açúcar e dos charutos), que assim termina: “Como saberia
/ que com tal questão / deveria dirigir-se / ao Komintern
em Moscou?”); “Hino ao Juiz”, onde usei com intenção o verbo
“cassar”: “Os juízes cassam os pássaros, a dança / A mim,
a vocês e ao Peru”. E ainda por cima, o epigrama “Come ananás
/ mastiga perdiz / Teu dia esta prestes, burguês.”, no qual
embuti, sibilinamente, o nome de Prestes.
‘As nossas traduções
foram
mais longe do que se pensa’
Nunca
pertenci ao “Partidão”, e desde sempre detestei Stálin e
Jdânov, mas a ditadura militar me indignava, e eu provocava.
Em 1962, eu tinha publicado o suspeito “Greve” e o explícito
“Cubagramma”. Em dezembro de 64, havia exposto na Galeria
Atrium, Avenida São Luiz, no centro de São Paulo, os meus
“popcretos”, entre os quais “Olho por Olho” e “SS”, que
denunciavam e satirizavam o golpe militar. Mais ainda: em
setembro do mesmo ano, no famoso Times Literary Supplement
de Londres, saíra o não menos satírico “Brazilian Football”
(jogando com as palavras GOAL e GAOL (variante de “Jail”).
Eu não tinha defesa, caso os milicos lessem poesia ou os
mais famosos jornais literários do mundo. Não liam, apesar
de estarem de olho no Ênio Silveira. Com o apoio pardo-eminente
do suposto “gênio” letrado Golbery (como é que não entrou
na Academia Brasileira de Letras?) estavam preocupados só
com o grande público da televisão e dos festivais de música
popular. Mesmo assim, ficávamos à mercê de algum dedo-duro.
Por sorte não aconteceu, salvo incidentes menores.
Por exemplo, a Revista dos Tribunais negou-se a publicar
o segundo número – o vermelho – da revista Invenção (1962),
por causa do meu “Cubagramma” e da “Estela Cubana”, do Décio.
Tendo vencido por maioria no conselho da Invenção, mantivemos
os poemas e nos preparamos para o pior. Fomos convocados
pela direção da Revista dos Tribunais para uma reunião arranjada
por Cassiano Ricardo, que havia conseguido a editora para
nós e era amigo deles. Ao chegarmos, houve uma discussão
acalorada. A certa altura falou-nos um dos diretores, em
tom exaltado: “Nós não publicamos poesias de comunistas!”
Já sabendo contar até dez, tínhamos conversado na véspera
com Masao Ohno, que se prontificou a comprar o miolo, todo
impresso àquela altura. A resposta pronta foi: “Então você
não é mais o nosso editor.” A revista saiu, afinal, com
a rubrica da Masao Ohno Editora. Desculpem a digressão e
o desabafo. “O concretismo é frio e desumano”. A partir
do “Beba Coca Cola” (1957) de Décio Pignatari.
A verdade é que, desde a primeira hora, as nossas traduções
foram muito mais longe do que se pensa, e com o tempo, mais
longe ainda, embora sempre mantendo a marca de antitradição
das “transcriações”. Um crítico afirmou que nós só traduzíamos
poetas que interessavam à defesa do concretismo. Sentimo-nos
honrados. Como se Dante, Shakespeare e Goethe houvessem
sido traduzidos com esse objetivo. Não é que a afirmação
de Haroldo, de que toda a poesia é “concreta”, fazia sentido?
Bem-vindos ao Concretismo, queridos e incomparáveis mestres
da poesia, ”nos semblables, nos frères”…
JU – Um dos traços do Concretismo brasileiro era, ou é,
sua interação com o fluxo das vanguardas internacionais.
O Concretismo foi, segundo suas próprias palavras, um movimento
translingüístico. Em paralelo, o senhor levou a atividade
do tradutor ao paroxismo ao pregar a idéia da tradução como
recriação. Para além da teoria e do campo conceitual, suas
intervenções sempre buscaram a experimentação, como é o
caso da transcriação de The Sick Rose (A rosa doente), de
William Blake, para ficar em um exemplo. Que papel desempenhou
a tradução nas interlocuções culturais do movimento ou mesmo
em seu direcionamento estético?
Augusto
de Campos – Essa pergunta envolve mais de uma questão.
A primeira, a da interação com o fluxo das vanguardas ao
nível internacional. Esta se deu por duas razões principais.
O minimalismo da fase “ortodoxa” e a sua ênfase nos elementos
visuais, que nos permitiam transpor as barreiras do nosso
idioma, escassamente conhecido no exterior. Outra, a inesperada
coincidência estético-ideológica com alguns poetas europeus,
especialmente o suíço-boliviano Gomringer, que aceitou a
nossa proposta de denominar “concreta” a nossa poesia e
a das suas “Constelações”. E à explosão internacional do
movimento que se deu, a seguir, e foi parar até no Japão,
graças aos contactos de Haroldo com o poeta Kitasono Katsue
e à exposição de Poesia Concreta Brasileira, em 1960, no
Museu de Arte Moderna de Tóquio, organizada pelo músico
e poeta Luis Carlos Vinholes. Claro, que poemas mais complexos
como “Estela Cubana” não podiam ser facilmente entendidos.
Quanto às minhas traduções, de cujos critérios já falei
ao responder à primeira pergunta, embora respeite e tenha
até chegado a utilizar uma que outra vez, por mais técnico,
o termo “transcriação”, cunhado por Haroldo, preferi sempre
chamá-las de “tradução-arte”, em homenagem ao nosso “futebol-arte”,
que tanto admiro. Eu me considero um “vocalista” dos poemas
que traduzo. Aliás, isso me lembra que um dos líderes da
“geração de 45” dizia com sarcasmo, que nós, os irmãos Campos
e o Décio, éramos os “trigênios vocalistas” da poesia, comparando-nos,
depreciativamente, aos Trigêmeos Vocalistas, sucesso popular
da época, hoje esquecidos. O que chamo de “intraduções”
(insinuando um ‘in-” e um “intra”), como “A Rosa Doente”,
de Blake, são traduções intersemióticas, nas quais seleciono
um poema ou fragmento que me impactaram e neles intervenho
com elementos icônicos, gráfico-visuais, ausentes no original.
No que diz respeito aos poemas que traduzi, sempre aprendi
muito com todos eles, embora, na minha própria poesia, tenha
procurado seguir o conselho de Hopkins: ”admirar e fazer
outra coisa”.
‘Movimentos surgem
por
necessidade histórica e estética’
JU – “Houve um câmbio de horizonte cultural, uma crise
ideológico-cultural, a partir de meados dos anos 60, que,
a meu ver, não mais tornou praticável “programar o futuro”,
demandando uma poesia do presente, da “agoridade”: o que
eu chamo “poesia pós-utópica”. São palavras de Haroldo de
Campos, ditas em 1996, quando o Plano-Piloto da Poesia Concreta
completou meio século. Nessa mesma ocasião o sr. disse numa
entrevista a O Globo: “A etiqueta “concreto” já não interessa.
Interessa é a nova visão de poesia que resultou da sua interferência
no processo criativo”. O que exatamente significam essas
afirmações: que o Concretismo cumpriu seu papel e virou
história literária?
Augusto
de Campos – Melhor do que a minha é a afirmação de Décio
Pignatari, no seu notável e imprevisível poema “Interessere”
(década de 1970): “no concretismo interessa o que não é
concretismo”. Não perceberam que desde o princípio dos anos
60 o concretismo já não era o mesmo. Como eu disse certa
vez (com todo o respeito a Gomringer), é diferente fazer
concretismo na Suíça e no Brasil. Depois que Décio anunciou
o “salto participante”, descobri, em um número da revista
italiana “L’Europeo”, de 1959, a frase de Maiakóvski: “Sem
forma revolucionária não há arte revolucionária”, que passou
a integrar o nosso Plano-Piloto, desde 1961.
Pouco adiante, em 1963/64, eu estudava russo com Boris
Schnaiderman, na Rua Maria Antonia, principalmente com o
objetivo de traduzir o verdadeiro Maiakóvski, não o locutor
de palanque, em versões ruins, copiadas, até nos seus erros,
da tradução espanhola de Lila Guerrero, mas o poeta oculto,
culto e revolucionário também na sua arte. Não se fazem
movimentos porque se quer, nem é preciso que se participe
de movimentos para ser um poeta digno desse nome. Surgem
por necessidade histórica e estética. Depois de um momento
de coalescência, cada um toma o seu caminho. Foi o que aconteceu
conosco. Décio e Haroldo, com mais lóbo esquerdo do que
eu, investiram na logopéia, em que já eram extraordinários
antes do Concretismo. Eu, menos escritor, incapaz de criar
uma prosa de altíssimo nível como a de Décio (“O Rosto da
Memória”. “Panteros”. “Errâncias”) ou uma “proesia” da altura
das Galáxias barroconcretas do Haroldo, segui o meu próprio
caminho, mais “fanomelopaico”, de acordo com o meu temperamento.
Já contei algumas vezes que, quando éramos crianças, Haroldo,
talento precoce, escrevia contos. Eu, um ano-e-meio mais
moço, fazia desenhos a partir de histórias-em-quadrinhos.
Meu pai, achando graça, mandou fazer um carimbo, “Escritório
Irmãos Campos”, com o qual registrávamos as nossas “criações”,
que vendíamos às nossas vítimas – os parentes próximos,
de preferência os tios. Mais tarde, Oswáld (e não Ôswald
como dizem agora horrorosamente) nos deu, em 1949, a Haroldo
e a mim, que tinha 18 anos, um dos últimos exemplares da
1ª edição do “Serafim Ponte-Grande”, com a dedicatória:
“Aos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, firma de poesia”…
Também gostava de música. Uma das lembranças menos obscuras
que eu tenho da infância é a de um garoto de 4 ou 5 anos,
num canto do jardim, cantando “o orvalho vem caindo / vai
molhar o meu chapéu…” Todo mundo achava engraçadinho. Se
em vez de harmônica-de-boca (ah! quem me dera ser um Sonny
Boy Williamson ou um Toots Thielemans…), tocasse saxofone
como Coleman Hawkins e Charlie Parker, ou piano como Art
Tatum e Thelonious Monk, provavelmente nunca teria escrito
uma linha de poesia. Toquei, amadoristicamente a minha velha
gaita, por insistência do meu filho, Cid Campos, na faixa
6 [Flor da Boca] do seu CD independente, No Lago do Olho,
que vem de ser muito elogiado por Midani.
Cerca de 90% das capas de meus livros, sem contar as capas,
folhetos e bolachas dos CD e CDR, meus ou do Cid, foram
feitos por mim, e os considero melhores do que muitos dos
meus poemas. Não sendo um teórico, no estrito sentido da
palavra, como Haroldo, confesso que não sei direito o que
é “agoridade”. Quando Haroldo publicou o seu artigo sobre
o tema da “pós-modernidade”, coincidiu de sair na mesma
época (bons tempos aqueles, do saudoso Folhetim!) o meu
“Pós-tudo”, que suscitou polêmica, talvez porque pensassem
que era uma ilustração do texto do meu “irmão siamesmo”.
Diziam, pelas costas, que “os concretistas” tinham tomado
conta dos cadernos culturais da Folha. Alguém tinha que
pagar essa “conta” e eu parecia ser o mais vulnerável dos
três. Nem eu conhecia previamente o que Haroldo tinha escrito,
nem ele sabia do meu poema… E, como é evidente para quem
saiba ler, não tinham o mesmo sentido. Meu irmão era exuberante
e otimista. Já se irritava muito quando se referiam a ele
como o “poeta concretista” Haroldo de Campos… “Há pelo menos
vinte anos não faço mais poesia concreta” — exclamava, sem
ser ouvido.
O meu poema, apesar dos “misunderstandings” que despertou,
era autocrítico e pessimista, além de pretender ser uma
gozação do ecletismo diluente chamado de “pós-moderno”,
expressão que tanto encantou os críticos mais atualizados
quanto os mais retardados, como Jameson, que não sabiam
explicar de forma convincente o que significava. Em arquitetura
– claro –fazia sentido. Em literatura, foi uma justificativa
muito bem recebida pelos mais conservadores ou mais complacentes,
inimigos das “vanguardas”, para darem o seu salto para trás.
Recentemente, apareceu no YouTube um “rap” amador de alunos
da periferia (quem quiser ver, que acesse http://uk.youtube.com),
na “interpretação livre de james martins e ilu(diamante)MiNA!
em ensaio aberto p/ estudantes de letras e amigos”. Sem
querer abafar ninguém, foi a melhor crítica que recebeu
“that goddamn poem”…
JU – Desde a década de 80 o sr. vem usando recursos tecnológicos
e mais recentemente os meios digitais e a Web como plataformas
para a sua poesia, inclusive com o aproveitamento de recursos
sonoros. Acredita que há uma revolução da linguagem poética
em marcha na Internet?”
Augusto de Campos – Para mim, “computers are beautiful”,
embora estejam sempre à beira de um ataque de nervos e nem
sempre correspondam à minha afeição. “Las computaddoras”
também são muito ingratas, e quanto aos ”upgrades”, que
anacronizam nossos hardwares e softwares a cada seis meses,
elas sabem ser cruéis. “They’re bad, man. Very bad.” Os
macmaníacos, como eu, sofrem mais ainda pelo seu amor mal-correspondido…
“Meu preço é alto”, sussurram elas, girando as bolsinhas
dos seus “I-s”, apesar de toda a admiração que tenho por
Steve Jobs, o maior “designer” da era digital. Acho – é
evidente – a linguagem da informática muito propícia e inspiradora
para o desenvolvimento de novas formas de fazer poesia.
Mas como tenho dito e repetido, o domínio das novas tecnologias,
por si só, não assegura poesia de alta qualidade.
O próprio Décio, precursor conceitual da arte digital no
Brasil, sempre disse: “Pra fazer poesia basta um lápis”…”
De acordo. Questão de “duende”. No entanto, se as ferramentas
virtuais e os inumeráveis recursos da tecnologia digital
nada garantem, não é mais fácil encontrar os lápis capazes
de deixar duradouramente impressos na página branca os seus
estiletes de grafita. Muitas vezes os procurei e não achei.
Estava em falta na praça… Em termos de informação, e apesar
das resistências acadêmicas, a Internet já é uma revolução.
Você pode ouvir, e até baixar em MP3 para o seu computador,
todas as leituras encontradas de Pound – as gravadas em
LP e as jamais divulgadas, disponibilizadas pelos herdeiros
do poeta. Nunca vi-ouvi nada igual. No popular YouTube,
você assiste a muita porcaria (“Salve-se quem souber!”,
dizia o nosso microtonalista, o suíço-baiano Walter Smetak).
Mas pode “ouver” até a uma versão robótica do Ballet “Mécanique”,
de George Antheil…
JU – Com freqüência as vanguardas do século 20 vieram na
esteira das mudanças dos modos de produção. Apesar da forte
mudança de matriz tecnológica nas últimas décadas, não há
sinais visíveis de novas vanguardas. Faz sentido a afirmação
de que as vanguardas chegaram a seu ponto de esgotamento?
Isto é irremissível? Ou as vanguardas seguem existindo e
apenas não são percebidas como antes? Naquela mesma entrevista,
há doze anos, Haroldo dizia que “os netos da geração de
45 parecem estar de volta, mais retrógrados e reacionários
do que nunca”. É possível qualificar a poesia que se pratica
hoje no Brasil, isto é, a poesia que tem mais livre curso
entre nós? A volta à discursividade é necessariamente um
retrocesso?
Augusto de Campos – Para mim, o sentido da palavra ”vanguarda”
não está necessariamente ligado a grupos e movimentos, embora,
sim, as mudanças tecnológicas afetem a poesia. Mas as questões
sociais, também. E muitas outras coisas. Prefiro o conceito
atemporal de ”invenção”, que tem como emblema o trovador
provençal Arnaut Daniel, do qual só restaram 18 canções.
No entanto, embora desgastada, a palavra “vanguarda” pelo
menos não engana ninguém. Quem teria a coragem de dizer
que Jorge Amado ou Paulo Coelho (“no offense”) são escritores
de ”vanguarda” como se pode ainda dizer de Joyce ou Apollinaire?
Essa história de que “as vanguardas” já cumpriram o seu
papel histórico é argumentação defensiva dos que não souberam
ou não puderam conversar com a sua época.
Discordo do eminente crítico Antonio Candido, quando quer
atribuir caráter de efemeridade às vanguardas. Se assim
fosse, o que seria da obra de um Joyce, um “Oswáld”, um
Duchamp, um Khliébnikov ou um Schoenberg? Ninguém precisa
ser “inventor” para ser um bom ou um grande poeta. Consciente
do seu valor, dizia Mário Faustino com generosa auto-ironia:
“Eu não sou um inventor. Gostaria de ser um mestre. Mas
se acaso for apenas um diluidor, tudo bem, espero ser dos
úteis“. Os nascidos com a ingrata função de “make it new”
são uma espécie, entre outras, de artistas. Certamente a
menos aplaudida, se o sucesso popular é o que se almeja.
O compositor mais insultado de todos os tempos, já com escandalosa
má-reputação como artista, convocado para o serviço militar
na guerra de 1914, respondeu à pergunta do oficial atônito
que registrava o seu nome: “O sr. é o compositor Arnold
Schoenberg?” Resposta: “Sim, alguém tinha que sê-lo, e como
ninguém o quisesse ser, eu resolvi assumir esse encargo.”
JU – De uma entrevista sua: “Quem o quiser praticar hoje
o soneto tem que se medir com Dante, Camões, Shakespeare,
Mallarmé, Rimbaud, Hopkins, Fernando Pessoa, Augusto dos
Anjos etc. etc. etc.” – isto dito num contexto de exaustão
das formas. Poetas de linhagem concreta hoje não estariam
diante de desafio parecido, que é o de se medir com Augusto,
Décio e Haroldo?
Augusto de Campos – Eu aludia aos versos de pé-quebrado
que rolam, impunes, por aí, e também à tentativa de reabilitação
do soneto por poetas de novas gerações. No mínimo pé-quebradíssimo
e no máximo competentíssimo, mas reincidindo em todos os
clichês “sonotológicos” (sic), embora de temática atual.
De Camões a Cummings, o soneto foi explorado de todas as
maneiras e está mais exaurido que a poesia concreta. Não
dou conselhos aos poetas mais jovens porque, como disse
Pound, os velhos tendem a gostar dos que se parecem com
eles… Instado, nos últimos anos, já quase-mudo, a dar um
conselho aos poetas novos, EP, aposentado da sua “Ezuversity”
disse apenas: ”Curiosity, curiosity”. Quanto aos “trigênios”
– “bright Brazilians blasting at bastards”, como os saudou
ele em uma de suas cartas – é verdade que tornaram mais
difícil fazer poesia, mas isso é saudável para os poetas
e os realmente bons, que eventualmente os apreciarem, saberão
“admirar” e ”fazer outra coisa”.
JU – Que projetos o sr. tem para o futuro no campo da poesia,
da tradução ou da crítica?
Augusto de Campos – A curto prazo, um livro de traduções
intitulado Byron e Keats — Entreversos, já acolhido pela
Editora da Unicamp. A médio prazo, outro, também de traduções,
August Stramm — Poemas-Estalactites, já anunciado pela Perspectiva.
Gostaria muito de reeditar as traduções de Cummings e a
antologia da poesia de Pound, que organizei, ambas fora
de circulação, mas problemas com direitos autorais e outros
entraves burocráticos impediram a republicação desses livros,
há muito esgotados. Teriam até alguns acréscimos. Mas os
editores originais não se interessaram em reimprimi-los.
Há ainda uma proposta para republicar o esgotadíssimo A
Serpente e Pensar, contendo a tradução do poema “Esboço
de uma Serpente” e extratos dos “Cadernos” de Valéry. A
longo prazo, 50 novos poemas de Rilke, à espera de que se
esgote a 2a edição de Coisas e Anjos de Rilke, para incluí-los
na 3a, já que pertencem, quase todos, ao mesmo período do
“Livro de Imagens” e dos “Novos Poemas”.
Enquanto isso, vou publicando na Internet, já que os cadernos
culturais de grande circulação expulsaram os poetas da república
das letras. Mas as edições de poesia levam anos para se
esgotar… Como vêem, continuo cada vez mais “vocalista”.
Novos poemas? Muito poucos… e duvidosos. Considerando a
distância que medeia entre Viva Vaia (1979) e os dois últimos
livros, Despoesia (1994) e Não (2003) e a minha idade avançada,
a perspectiva mais plausível é a de reabilitar o soneto
camoniano (“começou a servir outros sete anos…”). Pode bem
ser que eu já tenha ido para o espaço quando tiver poemas
suficientes para um novo “folhetim de versos” (grande Cesário!).
“Poemas esparsos” me parece um nome pós-razoável. Mas confesso
que acho mais bonito terminar com um Não e um Sem Saída,
partindo do livro para os cibercéus do futuro.
Emily & Augusto
A sepal, petal, and a thorn
Upon a common summers’s morn —
A flask of Dew — A Bee or two —
A Breeze — a caper in the trees—
And I’m a Rose!
(c. 1858)
Sépala, pétala e um espinho —
Nesta manhã radiosa —
Gota de Orvalho — Abelhas — Brisa —
Folhas em remoinho —
Sou uma Rosa!
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
• • • • • •
We lose — because we win —
Gamblers — recollecting which
Toss their dice again!
(c. 1858)
Um perde — o outro ganha —
Jogadores jogados —
Lançam de novo os dados!
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
• • • • • •
I’m Nobody! Who are you?
Are you — Nobody — Too?
Then there’s a pair of us?
Don’t tell! they’d advertise — you know!
How dreary — to be — Somebody!
How public — like a Frog —
To tell one’s name — the livelong June —
To an admiring Bog!
(c. 1861)
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste — ser — Alguém!
Que pública — a Fama!
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as palmas da Lama!
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
• • • • • •
Some such Butterfly be seen
On Brazilian Pampas —
Just at noon — no later — Sweet —
Then — the License closes —
Some such Spice — express and pass —
Subject to Your Plucking —
As the Stars — You knew last Night —
Foreigners — This Morning —
(c. 1862)
Algumas Borboletas há
Nos Campos do Brasil —
Voam ao meio-dia só —
Depois — cessa o Alvará —
Alguns Aromas — vêm e vão —
À tua Escolha, uma só vez —
Estrelas — que à Noite entrevês —
Estranhas — de Manhã —
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
• • • • • •
Drab Habitation of Whom?
Tabernacle or Tomb —
Or Dome of Worm —
Or Porch of Gnome —
Or some Elf’s Catacomb?
(c. 1864)
Mansão malsã de Quem?
Tabernáculo ou Tumba —
Domo de um Verme —
Grota de um Gnomo —
Ou Elfo em Catacumba?