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Pesquisas do IQ detectam propriedades
farmacológicas em substâncias naturais
Pesquisador constata,
por meio de testes,
atividades antiparasitária, citotóxica e analgésica
ISABEL
GARDENAL
A
tese de doutorado de Manoel Trindade Rodrigues Júnior, defendida
recentemente no Instituto de Química (IQ) da Unicamp, apontou
o grande potencial das substâncias beta-carbolínicas como
estruturas privilegiadas para o desenvolvimento de fármacos.
Estas substâncias, estruturalmente relacionadas a outras presentes
em alguns chás alucinógenos como o ayahuasca (ver nesta página),
empregados em rituais religiosos e por tribos indígenas da
Amazônia, apresentaram uma variedade de propriedades farmacológicas,
como atividade antiparasitária contra leishmania e atividade
citotóxica contra células de linhagens de câncer humano, além
da atividade analgésica sobre o Sistema Nervoso Central (SNC).
Uma destas substâncias mostrou uma atividade analgésica comparável
à da morfina, o que deve gerar um pedido de patente. A pesquisa
– orientada pelo professor Ronaldo Aloise Pilli, do IQ – apresentou
duas vertentes: a busca pela atividade farmacológica das beta-carbolinas
e o esclarecimento sobre como esta atividade é produzida.
Algumas beta-carbolinas já são substâncias naturais reconhecidas
por sua destacada atuação sobre o SNC como a reserpina, droga
indicada para pessoas hipertensas.
Os ensaios realizados até
aqui, comenta Manoel Trindade, apesar de significativos, são
ainda preliminares e sugerem uma série de outros ensaios in
vivo antes que a propriedade analgésica observada possa levar
à produção de um novo medicamento. Estes testes, esclarece
Pilli, em geral demoram entre cinco e dez anos. Dependendo
dos resultados, este período pode ser maior ou menor também
em razão do interesse e da inovação para o estabelecimento
de uma nova terapia.
No trabalho de Manoel Trindade,
foram desenvolvidas várias metodologias de síntese dessas
substâncias, em continuidade a trabalhos anteriores do grupo,
quando as bases metodológicas para a preparação dessa família
de compostos foram estabelecidas. Na ocasião, foi esboçada
uma rota de síntese para preparação de compostos naturais
isolados de fontes marinhas. “O nosso interesse era confirmar
a estrutura química desses compostos, uma vez que eles tinham
sido isolados em pequenas quantidades e a sua estrutura tridimensional
ainda não havia sido perfeitamente estabelecida”, explica
Pilli. Esta mesma rota, revela ele, foi aproveitada nesta
pesquisa de doutorado.
Desenvolver essas rotas de
síntese assimétrica eficientes permitiu a preparação de um
conjunto de substâncias naturais, dentre as quais se incluem
a tripargina, deplancheína, debromo arborescidina, harmicina,
cantin-6-ona e 10-metoxi-cantin-6-ona e dois análogos da harmicina.
Posteriormente, houve uma avaliação farmacológica que incluiu
a avaliação da atividade citotóxica, leishmanicida e sobre
o SNC que foram realizados em colaboração com o grupo do professor
João Ernesto de Carvalho, do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas
Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da Unicamp, e do
professor Sergio Albuquerque, da Universidade de São Paulo,
de Ribeirão Preto. Somado aos efeitos analgésicos visivelmente
pronunciados que foram encontrados para algumas das substâncias
sintetizadas, também observou-se que uma das substâncias se
destacava pelas suas atividades citotóxica e leishmanicida.
Os ensaios biológicos deverão prosseguir, segundo o seu autor,
com a ampliação do número de substâncias a serem preparadas
e testadas em razão dos resultados já alcançados.
Síntese
“Estima-se
que aproximadamente 25% das novas substâncias farmacologicamente
ativas descobertas nos últimos 25 anos são produtos naturais
ou derivados de produtos naturais. Esse número sobe para mais
de 50% se incluirmos produtos sintéticos que mimetizam produtos
naturais ou cujo grupo farmacofórico é inspirado em produtos
naturais”, informa Pilli. “Daí a importância de estudar os
compostos naturais e desenvolver novas metodologias para alcançar
a síntese destes compostos com bons rendimentos, amparando-se
na síntese orgânica catalítica e assimétrica. Afinal, ao longo
da evolução, esses metabólitos secundários foram selecionados
de modo a interagir com alvos biológicos, garantindo vantagem
adaptativa aos seus portadores. Trata-se portanto de estruturas
pré-validadas do ponto de vista de atividade biológica.”
O grupo do IQ vem acenando,
há algum tempo, na direção de aproveitar substâncias que são
encontradas na natureza e que possam se constituir plataformas
para o desenvolvimento de substâncias com propriedades farmacológicas
relevantes. “A natureza tem sido a principal fonte de busca
de um grande número de fármacos que foram e estão sendo desenvolvidos.
A nossa contribuição está em aproveitar algumas destas substâncias,
desenvolver um método de síntese em laboratório que eventualmente
possa ser aproveitado em escala industrial e, ao mesmo tempo,
prover a preparação de análogos de substâncias naturais”,
resume Pilli. “Isso muitas vezes colabora para melhorar a
performance de uma determinada substância farmacologicamente
ativa, já que a ideia é minimizar os efeitos indesejados simultaneamente
à manutenção da atividade terapêutica desejada.”
Manoel Trindade acredita que
estudos futuros precisarão ser realizados com a síntese de
outros análogos, a fim de se alcançar uma clara correlação
entre estrutura química e atividade farmacológica, além de
poder avançar no entendimento do modo de ação dessas substâncias
no que se refere à atividade contra parasitos, contra células
de câncer humano e atividade analgésica. O que ele sequer
imaginava era que a vida que levava em Aparecida de Goiânia,
na região metropolitana de Goiânia, quando trabalhou como
vendedor de picolés, office-boy e marceneiro, algum dia lhe
traria a versatilidade necessária para atuar como pesquisador
e lançar luz sobre temas ligados à Síntese Orgânica.
Ayahuasca, da planta à
bebida
Ayahuasca, nome quíchua
de origem inca, refere-se a uma bebida sacramental produzida
a partir da extração de duas plantas nativas da floresta
amazônica: o cipó Banisteriopsis caapi (caapi ou douradinho),
que serve como IMAO (classe de fármacos que inibem a
ação da monoamina oxidase), e folhas do arbusto Psychotria
viridis (chacrona), que contêm o princípio ativo dimetiltriptamina.
É também conhecida por yagé, caapi, nixi honi xuma,
hoasca, vegetal, Santo Daime, kahi, natema, pindé, dápa,
mihi, vinho da alma, professor dos professores, pequena
morte, entre outros.
O nome mais conhecido,
ayahuasca, significa “liana (cipó) dos espíritos”. A
ingesta de yagé permite aos xamãs sonharem e se transportarem
ao mundo espiritual ancestral. O chá é utilizado ainda
pelos incas e também por pelo menos 72 tribos indígenas
diferentes da Amazônia e em países como Peru, Equador,
Colômbia e Bolívia.
O uso dessas plantas
pelos mestiços em geral acontece dentro do contexto
da etnomedicina e segue os princípios gerais do emprego
tradicional dos nativos (uso xamanista) com modificações
e acréscimos pertinentes aos diversos sistemas de crenças
religiosas importados com a colonização. A sua utilização
se expandiu para outras partes do mundo, com o crescimento
de movimentos religiosos como o Santo Daime, A Barquinha,
Natureza Divina e a União do Vegetal. Muito do que se
pratica e conhece sobre ayahuasca vem da observação
e do conhecimento empírico acumulado pelos indígenas.
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