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HISTÓRIA
A
capoeira escrava e outras tradições rebeldes
Ao estudar a prática dos negros, historiador
encontra aspectos desconhecidos das relações entre
escravos, senhores e Estado
ÁLVARO
KASSAB
O
historiador carioca Carlos Eugênio Líbano Soares
não tem dúvidas: a capoeira nasceu na América,
apesar de articulada por elementos comuns na cultura africana
entre eles a dança e a língua e
é uma resposta dos escravos a um novo ambiente urbano,
que começou a ser formado no início do século
18. A tese está no livro A capoeira escrava e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850),
publicado pela Editora da Unicamp. Soares vasculhou arquivos
em Portugal, Angola e no Brasil para fundamentar sua obra.
Não
foi a primeira incursão do pesquisador pelo tema. Em
A negregada instituição: os capoeiras na
corte imperial, 1850-1890 (Editora Access), livro premiado
pelo Arquivo Municipal do Rio de Janeiro e sua dissertação
de mestrado defendida na Unicamp em 1993, Soares promove uma
leitura inédita da capoeira, ancorada na literatura e
numa vasta documentação política e policial.
Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, por exemplo, foram
fontes de pesquisa. A obra de Plácido de Abreu, escritor
português pouco conhecido na chamada época de ouro
da literatura (final do século 19 e começo do
20), foi da mesma forma objeto de análise. Abreu foi
capoeira, assim como muitos imigrantes de várias nacio-nalidades
na época. Depois acabou denunciando-a como algo marginal
e perigoso.
Em
geral, lembra o pesquisador, a capoeira era estudada como tema
antropológico. Falava-se muita bobagem da mais
importante manifestação de rua do século
19 no Brasil, testemunha Soares, que privilegiou a abordagem
historiográfica da capoeira ligada à escravidão,
sua área de pesquisa na Unicamp. A inserção
do tema numa perspectiva histórica fez surgir até
uma linha de estudo que vem conquistando adeptos, além
de revelar aspectos até então desconhecidos.
Um
deles, abordado em A negregada..., revela as ligações
políticas dos escravos com a elite, sobretudo após
a Guerra do Paraguai, que foi um divisor de águas na
segunda metade do século 19. Os capoeiras eram uma espécie
de esteio eleitoral de um grupo do Partido Conservador, que
acreditava na negociação política do fim
da escravidão. Conhecido como Grupo do Visconde do Rio
Branco, seus integrantes promoveram a Lei do Ventre Livre e,
depois, a Lei Áurea. Nesse contexto de apoio eleitoral,
os capoeiras atacavam os membros do Partido Liberal e do Partido
Republicano, garantindo a vitória dos conservadores nas
urnas. Não era o capanguismo clássico do
meio rural, havia uma troca de favores, diz Soares, que
manteve em A capoeira escrava a mesma linha investigativa
e de rigor na pesquisa de seu primeiro livro. A seguir, trechos
da entrevista concedida pelo historiador.
Jornal
da Unicamp O que levou o senhor a voltar à primeira
metade do século 19, depois de abordar um período
posterior em seu primeiro livro?
Carlos Soares Há
todo um debate envolvendo a origem da capoeira, de onde ela
veio etc. Fala-se muita bobagem, muita asneira. Como a capoeira
do século 19 passou por um período fortemente
escravista, com uma população africana muito grande,
meu objetivo era palmilhar essa coisa da origem. Mas sabendo
que a origem não está no século 19, e sim
no século 18. Está nos primórdios da sociedade
urbana. A capoeira é um fenômeno urbano, que anuncia
uma leitura de negros africanos e crioulos para o mundo urbano
colonial.
P
O senhor poderia precisar quando a capoeira surgiu?
R Você tem,
a partir do início do século 18, a formação
de uma sociedade urbana colonial pela primeira vez, em Minas
e no Rio de Janeiro. A grande cidade do ciclo do ouro era o
Rio de Janeiro, para onde convergiam todas as remessas de ouro
que iam para a corte. A cidade cresceu muito, tanto que virou
capital da colônia. Houve ali uma espécie de revolução
urbana durante o século 18, que com certeza trouxe os
africanos, já que até 1700 a população
escrava no Rio era quase toda indígena.
P
- O senhor cita, em seu livro, a união entre grupos diferentes
de capoeiras. Como vê a chamada organização
de rua dentro desse contexto?
R De um lado você
tinha africanos vindos de um ponto distante do continente e
que não se conheciam originalmente. Eles estavam num
ambiente novo, tenso, de concentração, porque
a cidade colonial era pequena, mas concentrava uma população
densa. Os africanos traziam bagagens culturais diferentes, mas
alguns elementos eram mais ou menos articuláveis, a língua,
por exemplo. Acredito que também a dança foi importante,
já que os povos se articularam nesse sentido. A capoeira,
então, era uma forma de união desses diversos
grupos. Agora, é importante colocar que o termo capoeira
foi dado pela ordem policial. Eles eram identificados assim.
Isso cria um problema, já que de certa forma você
tem uma identificação grupal que não parte
do grupo, mas sim do seu rival.
P
E como eles chamavam a dança?
R Os termos da documentação
são o jogo do capoeira. Agora, da dança
é o seguinte: todos esses povos trazem uma bagagem cultural
com diversas danças e artes marciais. Eu estive em Angola
pesquisando em 1995 e, no Museu Etnográfico de Luanda,
pude perceber que essas danças, por mais diferentes,
tinham um ponto comum. Possivelmente essas semelhanças
fossem articuladas na América. Quer dizer: capoeira,
na minha hipótese, nasceu na América. Ela não
nasceu na África. Ela foi formada com elementos africanos
e articulada de forma inédita no território escravista.
P
Como as nações étnicas se relacionavam
com a capoeira?
R Eles criaram uma
coisa nova em cima de elementos já tradicionais. Foram
muitos os elementos. A capoeira nunca foi uma prática
de um grupo ou nação determinada. Ela sempre foi
um pólo de união de diversos grupos. É
um espaço mais ou menos aberto. Você tem os grupos
com diversas origens: os benguelas, os cabindas. Isso aponta
que ela era um ponto de união de grupos diferenciados,
e não uma coisa étnica, determinada. Ela foi transformada
pelas interações africanas.
P
Muitos estudiosos relacionavam a capoeira aos meios de
resistência dos escravos no mundo rural. Como se originou
essa teoria?
R No início
do século 20, sobretudo na Semana de Arte Moderna, quando
há uma tentativa de se resgatar a história do
negro, não mais como inferior e perigoso, mas como pertencente
à nacionalidade, nasce também o estereótipo
da resistência. Isso era novo para a época. E nesse
mito da resistência, o principal era o quilombo, numa
visão até idílica. Tornou-se até
mais idílica depois. Estudiosos estavam naquela época
presos ao modelo da escravidão rural que durou
mais tempo e que, por isso, seria o modelo principal ,
a escravidão agrária, da senzala, onde estava
a maioria quando houve a Abolição.
P
E a escravidão urbana?
R Estava um pouco
esquecida. Aí colocaram a capoeira dentro desse modelo
da escravidão rural, que plasmou mesmo a memória
da Abolição, com a fazenda, a senzala, o cafezal
e tudo o mais. Então se criou uma versão da história
da capoeira no século 20 ligada ao quilombo, à
história da resistência. Fora isso, o movimento
negro pegou esses elementos também e os trabalhou meio
que embolados. Durante muitos anos foi passada essa coisa de
que a capoeira era não sei o quê do quilombo, que
era uma espécie de panacéia para todos os elementos
da cultura negra. As fontes de época, tanto na primeira
como na segunda metade, são muito claras: a capoeira
é urbana. Aliás, cheguei nela através da
escravidão urbana. Quando comecei a pesquisar, antes
mesmo de entrar no mestrado, meu objetivo era mostrar a escravidão
urbana. Em geral, a nossa academia está muito presa a
esse modelo do quilombo, da questão rural. E há
poucos trabalhos sobre escravidão urbana.
P
Nesse contexto, a capoeira passa também a ser
um elemento de resistência?
R A capoeira é
uma resposta de escravos urbanos a um novo ambiente. O quilombo
é importante, mas não se misturava muito. Havia
uma visão idílica de que o capoeira queria fugir
para o quilombo, distante, nas montanhas. E ali que se criava
um reino isolado. Os escravos do quilombo têm contato
com os escravos da senzala; então, não é
uma coisa isolada. Muito menos a fuga é uma coisa da
liberdade, abstrata. O capoeira não é um escravo
que vai fugir. Ele vive dentro do ambiente urbano e tem ganhos
dentro desse ambiente. Existem casos, lógico, ligados
à fuga, mas em geral isso é raro, porque, invariavelmente,
é uma forma de luta adaptada a esse meio urbano.
P
Como os capoeiras transitavam nesse meio urbano?
R A cidade colonial
era repleta de becos, de vielas, de ruas estreitas, uma cidade
congestionada. Uma cidade de pequenas fachadas e grandes quintais,
com toda uma ordenação labiríntica. A capoeira
é uma forma de luta adaptada a esse ambiente. O objetivo
não é destruir o inimigo, mas sim possibilitar
que ele fuja daquela cena em que foi agredido. É uma
forma de defesa.
P De certa forma, eles se prevaleciam da topografia
da cidade?
R Esse mundo urbano
era um mundo violento. Sendo assim, era preciso dominar uma
forma de luta para se manter nele. O escravo não era
só atacado por policiais brancos, mas sim por outros
escravos também. Para usufruir as regalias da cidade,
ele precisava de uma forma de defesa. Quando um senhor colocava
um escravo na rua como artesão ou até para
buscar água , esse africano tinha que ser safo,
tinha que se livrar, ser esperto, se não ele era roubado
facilmente. E aí o senhor perdia mercadoria. O próprio
senhor estimulava o escravo a se defender. A capoeira não
era uma coisa contra o senhoriato. Era uma forma até
de maximizar os lucros, já que o capoeira era um escravo
que se defendia.
P
Como se estabeleciam as relações entre
polícia e senhores?
R Os senhores reclamavam
das prisões porque, bem ou mal, os escravos geravam lucros.
Havia fuga é lógico, mas dentro da cidade. Ele
sabia que se chegasse na casa senhorial sem o pagamento, seria
castigado. Ele fugia então para conseguir o dinheiro.
Fugia também por causa de mulher, festa etc. Os escravos
tinham muitas relações fora da escravidão.
Eles tinham a figura do padrinho, em geral outro homem branco,
que empenhava a palavra para o senhor em caso de fuga, intermediando
a volta do escravo, conseguindo a garantia de que não
seria castigado. Eles se relacionavam com libertos, com escravos,
com ciganos, com todo o mundo.
continua...
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