| |
Docentes e doutorandos da Universidade ministram curso de formação continuada para professores da região mais pobre do Estado de São Paulo
Unicamp tece a teia do conhecimento no Vale do Ribeira
RAQUEL DO CARMO SANTOS
Fotos: Antonio Scarpinetti
"Como uma roseira
Nasceu essa heroína
Eternamente és lembrada
Por seu valor e sua sina
Sua vida é uma mensagem
Doce e amada Regina"
O poema acima está numa moldura sem retoque pendurada no corredor que dá acesso ao saguão da Escola Estadual Professora Regina Dias Antunes da Silva, no centro do município paulista de Apiaí, a 330 quilômetros de Campinas. Trata-se de um dos muitos escritos de autoria de alunos em homenagem à professora que dá o nome à escola. Além dos poemas, redações e mensagens, um vaso com flores artificiais foi colocado ao lado de um retrato da homenageada. Um desavisado poderia ver ali um pequeno altar. É quase isso. Para dar aulas em escolas rurais, a professora Regina Dias Antunes da Silva cumpria uma rotina diária de longas caminhadas mata nativa adentro. Numa de suas idas e vindas, ficou no meio do caminho em 1968, foi assassinada numa trilha.
Passados 36 anos da tragédia, seria razoável imaginar que muita coisa mudou. Não foi o que aconteceu. O crime não foi esclarecido e o exercício do magistério na região continua a ser, na maioria dos casos, um sacerdócio. “Cerca de 50% das escolas ficam na mata. São estradas abandonadas e precárias. Professoras saídas da adolescência, com 22 anos em média, fazem sozinhas o trajeto. É preciso coragem, vocação e ousadia. É a outra realidade do Estado de São Paulo”, atesta o diretor de ensino de Apiaí, Pedro Paulo de Almeida Galvão.
Apiaí é conhecida como o “Portal da Mata Atlântica”. Exuberâncias naturais à parte cavernas cinematográficas, por exemplo , a cidade é também a porta de entrada do Vale do Ribeira, região que concentra os municípios mais pobres do Estado mais rico do país. Não deixa de ser emblemático que, na escola cujo nome evoca uma mulher tratada como heroína na cidade, funcione o QG do Projeto Teia do Saber.
Desde julho, o estabelecimento recebe docentes e doutorandos da Unicamp. A missão: ministrar cursos de formação continuada, até dezembro, para 356 professores da Rede Estadual de Ensino. Na verdade, o papel da Unicamp no projeto financiado pela Secretaria Estadual de Educação é bem mais amplo. Docentes da Universidade integram o projeto em outras regiões do Estado ao todo, são 13 diretorias de ensino, atingindo quase 2.500 professores (veja quadro abaixo) , mas é em Apiaí e em outras sete cidades vizinhas que a tarefa ganha contornos humanitários (leia texto na página 8).
Depoimentos dos personagens locais revelam que, ali, o exercício do magistério é uma profissão de fé. Cícero Martins Vieira é um desses abnegados. Era de se imaginar que bastariam para ele suas tarefas à frente da Paróquia “Bom Jesus”, em Ribeira cidade com quatro mil habitantes, margeada pelo rio Ribeira de Iguape. Vieira, porém, quis mais. Divide seu tempo exercendo dois ofícios que, garante, se complementam: o de padre e de professor. “Minha missão é formar cidadãos. Fazer as pessoas se sentirem gente, importantes e amadas. Tudo isso posso conciliar no atendimento às famílias e em sala de aula”.
Para completar a jornada obrigatória de 27 horas semanais, ele dá aulas de História em Ribeira e em outras duas cidades da região Guapiara e Itapirapuã Paulista este tido como o município mais pobre do Estado, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Um dos trajetos percorridos por Vieira é cercado de armadilhas. “Em Guapiara, por exemplo, a escola fica próxima a uma mineradora e a estrada não é asfaltada. O fluxo intenso de caminhões é um perigo para os motoristas”, conta.
Realidade semelhante é vivida pelas professoras Marina Corrêa Camargo Santos, Elisabete dos Santos Lima Mendes e Débora Prado de Almeida Pereira. A precária estrada que liga os 22 quilômetros entre Apiaí e Itaoca segunda cidade mais pobre do Estado, segundo o IDH é o caminho obrigatório das professoras. Apiaí é o local mais próximo para se lançarem na empreitada de recolher revistas e jornais em consultórios médicos da cidade a fim de municiar a Escola Estadual Professora Nésia Morim Martins de material de consulta. “Os alunos não têm acesso a livros e jornais. São poucos os que possuem televisão”, diz Débora.
Para as aulas de Biologia, Elisabete não conta sequer com uma lupa ou microscópio. Seus alunos, a maior parte oriunda da zona rural e de comunidades quilombolas, aprendem apenas com o conteúdo dos livros didáticos. “Não tenho condições de mostrar ao menos uma levedura ou fungo”, reclama. Na falta de material para ensinar alguns conceitos básicos da sua disciplina, Elisabete recorre à diversidade natural da região.
Aos sábados, quando os professores da Unicamp estão em Apiaí, as professoras deixam de lado os afazeres domésticos e os momentos de lazer. Um sacrifício que, de acordo com elas, “vale a pena”. Para Marina, os assuntos ensinados reforçam a segurança em sala de aula. “Como moramos em um lugar carente de conhecimento, temos que agarrar a oportunidade”, diz.
Encomendas “Ser professor nesta região é ser herói”, desabafa Valter Martins de Oliveira, que sente na pele a falta de recursos para ensinar Filosofia, disciplina que exige acesso à bibliografia atualizada. “Caso eu precise de um livro, tenho de encomendá-lo ou viajar até Sorocaba ou São Paulo para obtê-lo”, afirma. Para o professor, seus alunos são os maiores prejudicados com a falta de acesso ao material adequado. Outro problema colocado por Oliveira, um ex-padre, é a falta de cursos de atualização na região, vista por ele como “nitidamente discriminada”. “Por isso o programa está sendo fantástico. Ele abre um espaço para tirar nossas dúvidas, além de nos revelar novas metodologias”. Também é um momento importante de analisar a prática das atividades e aproveitar a assessoria oferecida pela Unicamp. Com isso, os alunos ganham. “Eles terão o privilégio de ter professores bem-preparados e mais seguros em sala de aula”.
O padre Vieira é outro que elogia a dedicação dos professores da Unicamp em levar o que chamou de “educação para libertar”. O professor valoriza os encontros na Teia que, segundo ele, têm proporcionado uma abertura em relação a temas ligados à diversidade. “Temos aprendido a conviver com o diferente. Essa novidade tem sido reforçada”, comemora. A sociedade como um todo, em sua opinião, vive uma fase de indefinição que acaba refletindo nas salas de aula. “Os alunos não têm claro o caminho do futuro, o amanhã. Cabe ao professor dar a orientação necessária”.
O preço a pagar “Os professores da Unicamp falam o que queremos ouvir”, declara Lúcia de Souza Machado de Ribeirão Branco. Professora de Língua Portuguesa, Lúcia tinha dúvidas quanto a colocações comuns na região em que dá aulas. “Eu não sabia, por exemplo, se era correto falar ‘obrigada eu’. Um professor da Unicamp [Wilmar D’Angelis] disse que é normal essa regra”. Neste primeiro momento, Lúcia diz que está no processo de “ingerir” o conteúdo; acredita que o “digerir” virá nos próximos meses. Como já está na finalização dos programas de aula, Lúcia irá empregar todo conhecimento adquirido na Teia do Saber já no próximo ano letivo. Garante, sem vacilar, que está valendo a pena ter que percorrer 90 quilômetros para enriquecer sua bagagem. “Conhecimento não tem preço. Você paga de uma maneira ou de outra, em dinheiro ou em cansaço”.
Criatividade Leila Julieta Barbosa Salturato deixou a filha de um ano e oito meses em casa com familiares para poder freqüentar os cursos. “Está valendo estar aqui”, diz. Leila está matriculada no curso de Matemática e sabe bem o quanto deve usar a criatividade para ensinar. Para ela, as práticas têm enriquecido bastante. A professora está “tirando o máximo” dos conceitos passados pelo pessoal da Unicamp. “Vou melhorar cada vez mais”. Ela percebe um efeito positivo no modo de enxergar as coisas. “Isto terá um efeito sobre meus alunos, pois torno o aprendizado mais fácil”.
|
Total de Diretorias de Ensino Interior São Paulo
|
60
|
Diretorias Atendidas pela Unicamp
|
13
|
Percentual em relação ao Total
|
21,67%
|
Total de Módulos
|
175
|
Total de Turmas
|
79
|
Número de Alunos Matriculados
|
2462
|
Carga Horária Total
|
7000
|
Devoção O esmero com as plantações de couve, berinjela, repolho, alface e outras hortaliças e os enfeites na parede demonstram o zelo dos dirigentes da escola rural Professora Júlia Ribeiro Bretas, localizada no bairro Encapoeirado, distante 15 quilômetros de Apiaí. A quadra feita por mutirão de alunos é outro indício de que o lugar é bem-cuidado. “A grande maioria dos alunos sobrevive da safra de tomate. Trabalham na lavoura até tarde e estudam à noite. Muitos conseguem chegar apenas na segunda aula”, conta a diretora, professora Elizabeth de Lourdes Martinez.
Uma das cinco salas da escola de Encapoeirado teve que ser aberta este ano para abrigar estudantes do ensino médio que estavam fora da sala de aula. Eles têm entre 20 e 37 anos e chegam dos mais diversos bairros da região. “Quando termina a safra, o pessoal migra para outros locais e depois retorna para a plantação. Isso impede que freqüentem as aulas o ano inteiro”, explica a diretora.
A escola não tem linha telefônica, e as atribuições dos professores muitas vezes transpõem os muros da escola. Histórias de alunos com várias necessidades são comuns. “Visitamos as famílias de muitos deles para saber os problemas enfrentados em casa. Existem casos críticos”, conta a auxiliar da direção, Maria José Pedroso dos Santos. Adilson Rosa, um garoto de 14 anos, matriculado na 7a série, é um dos exemplos. O jovem não apresentava comportamento adequado e tinha muitas dificuldades no aprendizado. A perseverança da diretora fez com que o garoto se animasse a representar a escola nas competições de atletismo da região. Ele venceu e participará da rodada regional. “Se não tiver amor, você não faz o trabalho. Temos que nos empenhar, colocar a mão no bolso para ajudar em alguma coisa. É assim”, ressalta Elizabeth.
Mesmo com tantas tarefas na escola, Elizabeth e Maria José não hesitaram quando surgiu a oportunidade de participar da Teia do Saber. Elizabeth, inclusive, já pôde aplicar alguns dos ensinamentos do curso de Letramento nas reuniões com sua equipe. Houve muita procura pelos cursos e a escola de Encapoeirado, segundo elas, foi uma das instituições que mais enviou professores. “No curso de Letramento, por exemplo, participaram todos os 10 professores da escola”, festejam.
Abrindo as portas
A chegada da Unicamp em Apiaí é um marco na história da educação da região. Não foram poucas as tentativas realizadas pela Diretoria de Ensino para que os professores tivessem acesso a uma formação continuada. A iniciativa é inédita e abre as portas para que os profissionais não precisem se deslocar para outras regiões em busca de atualização. “Eles nunca haviam tido um curso de formação na região. Era uma luta antiga”, destaca o assistente técnico da Diretoria de Ensino de Apiaí, José Manoel Costa Hernandez.
A Diretoria consegue oferecer apenas oficinas pedagógicas. Neste caso, aqueles professores que se destacam por sua atuação na região são convidados a participar do projeto. “Os profissionais viajam para São Paulo, passam por treinamento e depois retornam. São pessoas que tiveram a mesma formação que os outros”, afirma Hernandez.
Desde julho, o programa Teia do Saber tem permitido aos professores o contato com novas metodologias de ensino e conteúdos atualizados, que dificilmente conseguiriam sem viajar mais de uma centena de quilômetros. “Quando surgiu a possibilidade de se trazer a Unicamp para o Ribeira, ficamos entusiasmados. Queríamos uma universidade de excelência”, lembra Hernandez. O sucesso foi tão grande que, dos 800 professores ligados à rede de ensino local, 45% estão participando do programa.
Segundo o dirigente de Ensino de Apiaí, Pedro Paulo de Almeida Galvão, os problemas na formação dos educadores são inúmeros. Desde a graduação, os professores da Rede de Ensino enfrentam vários obstáculos para atuarem no mercado. “Em primeiro lugar, temos uma lacuna na formação desses professores por conta da qualidade do ensino nas universidades mais próximas. Muitos professores universitários não são mestres”, afirma o dirigente. Este fator faz com que os conteúdos sejam dados de forma superficial, prejudicando o desempenho em sala de aula.
A distância é outro problema enfrentado. “Muitos saem de Apiaí para Itapetininga cidade que possui uma das universidades mais próximas , onde chegam às 19h30, retornando por volta de meia-noite. No dia seguinte, precisam trabalhar às 7 horas. É assim que se faz a formação por aqui”. Apenas cerca de 2% dos professores, justamente aqueles que possuem um padrão de vida melhor, conseguem estudar em Sorocaba, São Paulo ou Curitiba.
Topo
|
|
|