Divulgar
ciência nunca foi tarefa fácil. Num país que investe menos
de 1% do PIB em C&T, não valoriza o ensino fundamental
e tem uma história acadêmica tardia, a causa parece ainda
mais inglória. Nada disso, porém, intimida o jornalista
e escritor Marcelo Leite, que há três décadas busca reduzir
o aparente fosso entre ciência e cultura. Parte desse trabalho
acaba de ser reunido pela Editora da Unicamp no livro Ciência:
use com cuidado. Publicada na série de divulgação científica
Meio de Cultura, dirigida pelo físico Marcelo Knobel, a
obra reúne 80 textos selecionados entre os cerca de 280
publicados desde 2002 na coluna Ciência em Dia, da Folha
de S.Paulo, onde Leite instalou o seu radar, depois de ter
atuado como repórter especial, editor e ombudsman.
Este é o segundo título da série coordenada por Knobel.
Em julho, a Editora da Unicamp já havia lançado O Sol Morto
de Rir, do físico e divulgador Mexicano Sérgio de Regules.
“O objetivo é fazer uma coleção abrangente de divulgação
científica, onde possam ser discutidos diversos assuntos
sobre a ciência, suas conseqüências e a sua importância
na sociedade”, explica Knobel. A idéia, segundo ele, é trazer
autores brasileiros, consagrados e jovens, além de estrangeiros,
fugindo do eixo anglo-saxão. O próximo lançamento será A
Extinção dos Tecnossauros, do italiano Nicola Nosengo.
José Reis, que em 1948 deu a largada para a divulgação
científica no Brasil, inaugurando, na mesma Folha de S.Paulo,
a coluna No Mundo da Ciência, aplaudiria de pé a iniciativa.
No caso de Leite, os textos caem como uma luva. Simples,
mas não superficiais, precisos sem serem cientificistas,
seus artigos constituem, antes de tudo, um filtro crítico
sustentado pela maturidade intelectual. Como ele mesmo esclarece,
a idéia não é tornar importante o que só é interessante,
mas tornar interessante o que realmente tem importância
para a vida pública. Com isso, seu trabalho vai além da
mera tradução científica e não se limita a uma vitrine de
curiosidades acadêmicas. Na entrevista que segue, o autor
faz um balanço da divulgação científica no Brasil e aponta
caminhos para conectar a ciência à cultura.
Jornal da Unicamp – Certa vez, José Reis disse
que a ciência é bonita, profundamente estética e que, portanto,
deveríamos exibi-la à sociedade. Essa afirmação reflete
o espírito da coluna Ciência em Dia, cuja essência está
reunida em seu novo livro?
Marcelo Leite – Sim e não. Sim, porque é exatamente a razão
apontada por José Reis que me levou ao interesse pela ciência.
Sempre tive essa paixão. Consigo perceber essa beleza que
ele atribui à ciência. E não, porque em minha coluna procuro
ir um pouco além disso. Assim como, em minha opinião, a
arte não serve apenas para o deleite do público, mas também
para levá-lo a pensar, a beleza da ciência está na possibilidade
de levar as pessoas a pensarem sobre o mundo e sobre a própria
ciência. A escolha do nome da coluna, Ciência em Dia, partiu
justamente da preocupação em manter um vínculo com a atualidade
e com uma visão crítica do mundo. Ou seja: acho que devemos
usar o entusiasmo provocado pelos resultados científicos
para pensar criticamente sobre o mundo, tanto no sentido
físico e natural quanto no sentido social, ético e político.
JU –Isso ainda não acontece de maneira satisfatória
no Brasil?
Marcelo Leite – Sinto uma deficiência no jornalismo científico.
Certamente não da mesma maneira como há mais vinte anos,
quando comecei a fazer jornalismo científico. Naquela época
ainda predominava uma vertente que fazia do jornalismo científico
ou um compêndio de curiosidades ou um posto avançado do
ensino de ciências. Acho que esses dois objetivos são válidos,
mas também acho que é preciso ir além disso.
JU – Por que ainda há essa lacuna?
Marcelo Leite – Por várias razões. Uma delas é que nem sempre
os profissionais têm a formação necessária para adotar uma
postura suficientemente crítica em relação às fontes ou
ao establishment da ciência. Os assuntos são complicados
e os profissionais não têm o conhecimento necessário que
permita ir além da mera reprodução ou tradução do que a
fonte está dizendo. Mesmo assim, houve um progresso significativo
na área.
JU – Levando em conta esse contexto, até que
ponto o jornalismo científico praticado no Brasil tem contribuído
para a consolidação de uma cultura científica?
Marcelo Leite – Tem contribuído muito, embora certamente
não seja o único responsável por esse processo. Quando comecei
a fazer jornalismo científico, além dos próprios pesquisadores,
pouquíssimas pessoas sabiam da existência de periódicos
especializados como Nature e Science. Embora ainda não possamos
chamá-las de populares, hoje em dia um público bem maior
já conhece essas publicações. O público também já percebe
que, quando uma pesquisa ganha destaque nas publicações
de prestígio internacional, trata-se de algo relevante para
a sociedade como um todo. Além disso, vários temas de impacto
social, como energia nuclear, transgênicos, biocombustíveis
e células-tronco, foram levantados pelo jornalismo científico
antes de migrarem para outras editorias. Boa parte do espaço
ocupado pelas discussões sobre esses temas deve-se a uma
meia dúzia de nerds que atuam no jornalismo científico e
acreditam na relevância dessa atividade.
JU – O jornalismo tem conseguido abordar corretamente
os temas relacionados à ciência que geram grande impacto
social?
Marcelo Leite – O jornalismo tem dado sua contribuição,
embora não da maneira como seria desejável. Isso varia de
veículo para veículo. De maneira geral, o jornalismo científico
no Brasil tem deficiências, mas não é só o científico. Caminhamos
muito, oferecemos grandes contribuições, mas ao mesmo tempo
também tropeçamos muito em conseqüência de fatores internos
e externos ao próprio jornalismo. Do ponto de vista interno
existem as dificuldades habituais, como por exemplo equipes
pequenas. Isso inviabiliza a especialização, mas podemos
caminhar na complementação da formação profissional por
meio de cursos, congressos, simpósios, etc. Além disso,
ainda há uma incompreensão por parte de algumas redações
sobre a relevância do jornalismo científico. Muitos jornais
ainda não têm equipes especializadas em ciência. Em minha
opinião, deveriam ter, justamente pelo impacto social, político
e econômico de vários temas relacionados à ciência.
JU – Esse despreparo compromete a discussão
pública sobre temas relevantes?
Marcelo Leite – Temos temas de interesse público com enormes
raízes no conhecimento científico. Para debatê-los democraticamente
e de maneira qualificada, precisamos de um razoável grau
de conhecimento científico. Daí a importância de os veículos
de comunicação de massa conseguirem disseminar um pouco
mais desse conhecimento e suas implicações éticas, políticas,
sociais e econômicas. Veja, por exemplo, esse entusiasmo
todo com o pré-sal. Virou solução para tudo, mas ignorando-se
o custo do investimento, que será diretamente proporcional
à complexidade tecnológica da operação. De onde vamos tirar
os recursos antes de explorar o petróleo que está sob a
camada de pré-sal?
JU – Na introdução de seu novo livro, você
diz que ao criar a coluna Ciência em Dia, o objetivo era
tornar interessante o que é importante (para a vida pública),
e não tanto tornar importante (pelo destaque jornalístico)
o que só é interessante. Isso significa que o jornalismo
científico estaria dissociado do que realmente interessa
às pessoas?
Marcelo Leite – Depende do veículo. A televisão,
por exemplo, vai mais na linha do que só é interessante,
embora muitos telejornais já estejam dando uma atenção maior
a essas questões. Ainda assim, a não ser na forma de grandes
documentários, a televisão é um meio ingrato para tratar
de temas científicos. Isso porque a brevidade é inimiga
da complexidade. De um modo geral, porém, houve progressos
nesse sentido. Atualmente, os jornalistas que cobrem ciência
são profissionais não apenas bem informados, mas também
passaram a conhecer melhor questões relacionadas às políticas
públicas. Isso resultou especialmente da cobertura sobre
mudanças climáticas e desmatamento na Amazônia. O mesmo
ocorre na área de saúde. Estamos caminhando, embora ainda
falte um longo percurso a ser vencido para atingir um nível
de excelência.
JU – Parece haver um certo desprezo da imprensa
pela cobertura sobre políticas públicas voltadas para
ciência e tecnologia. É mais uma lacuna a ser preenchida?
Marcelo Leite – A política sobre C&T não
está sendo abordada adequadamente, mas tenho dúvidas se
essa cobertura caberia especificamente ao jornalismo científico.
Quando entrei na Folha, em 1986, era muito comum a cobertura
sobre política científica. Talvez metade da nossa cobertura
fosse voltada para isso. O país estava se redemocratizando,
a política tinha um peso importante nas questões científicas
e as reuniões da SBPC tinham uma relevância pública que
acabou se perdendo ao longo do tempo. Creio até que houve
exagero de nossa parte naquela época. O jornalismo científico
era muito permeável aos interesses da comunidade científica,
havia uma proximidade, talvez excessiva com os formuladores
das políticas públicas. Era uma cobertura quase corporativista.
A gente escrevia para os gestores do CNPQ, da Fapesp, da
Capes e para os pesquisadores das universidades e centros
de pesquisa. Acho que houve um avanço quando nos afastamos
desse tipo de cobertura e nos aproximamos mais do público
em geral. Falar de ciência para o público. Isso foi positivo,
mas ignorar a cobertura sobre política para C&T, como
acontece atualmente, também não é uma boa saída.
"Ainda dá uma incompreensão por
parte de algumas redações sobre e
relevância do jornalismo científico"
JU – Além do jornalismo, outras áreas têm abordado
temas científicos, embora de maneira tardia. Entre as quais
os documentários e os museus de ciência. Em que medida essas
iniciativas têm contribuído para a consolidação de uma cultura
científica?
Marcelo Leite – Contribuem muito. Pessoalmente, gostaria
de ver mais documentários produzidos no Brasil. Já há alguns
trabalhos produzidos na televisão, mas gostaria de ver produtoras
independentes investindo nessa seara. O meu interesse por
biologia e ecologia tem muito a ver com documentários que
assisti na televisão durante a infância. Claro que isso
ainda depende de toda uma política de audiovisual, e nesse
aspecto não são apenas os temas científicos que não decolam
no Brasil. Para ser sincero, no que diz respeito à cultura
científica no País, acho que o buraco é mais embaixo.
JU – E quais são as raízes do problema?
Marcelo Leite – É a má qualidade do ensino de ciências nas
escolas de ensino fundamental e médio. É um problema sério.
Se a educação já sofre uma crise terrível como um todo,
na educação científica, em particular, a situação é ainda
mais grave. A questão pedagógica nesse aspecto se torna
mais aguda. Todos precisam aprender a ler, escrever e fazer
contas. Mas penetrar nos conceitos da ciência exige algo
mais, que a formação dos professores não oferece. Quando
existe, é deficiente. O déficit existe nos dois aspectos:
na quantidade e na qualidade dos professores. Faltam professores
de física, química, matemática e biologia. E os que estão
na ativa não se sentem suficientemente motivados ou preparados.
Tem muito biólogo dando aula de matemática e vice-versa.
JU – Nesse ponto, voltamos então à questão
das políticas públicas.
Marcelo Leite – Sim. A questão da formação dos professores
é uma questão aguda. O país tem de encontrar meios para
formar melhor estes profissionais em todas as áreas, mas
em particular no ensino de ciências. É preciso pagar melhor.
Na rede pública os salários são ridículos. O país vem melhorando
nesse aspecto, mas o processo está muito lento. Além disso,
é preciso investir na reciclagem daqueles que já estão na
ativa. É possível ensinar uma pessoa a ensinar bem. Mas
é preciso políticas que façam esse conhecimento chegar aos
professores que estão nas escolas públicas das cidades mais
afastadas. Enquanto não tivermos a massa de alunos exposta
à ciência ensinada de maneira interessante, não conseguiremos
avançar. A cultura científica deve começar nas salas de
ensino fundamental, mesmo que seja lendo jornal em sala
de aula.
JU – De que maneira as universidades podem
participar desse processo?
Marcelo Leite – Isso já entrou na agenda das universidades.
Recentemente o governo de São Paulo assinou o decreto que
oficializa a criação do Programa de Expansão do Ensino Superior
Paulista através da Universidade Virtual do Estado de São
Paulo (Univesp). São cinco mil vagas para pedagogia, mas
também 700 vagas para licenciatura em Biologia e 900 para
licenciatura em Ciências. Isso mostra que as universidades
paulistas estarão diretamente envolvidas no processo que
tem potencial para iniciar um salto de qualidade na formação
de professores.