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Sob a mira da metralhadora audiovisual


O filósofo alemão Christoph Türcke, professor da Universidade de Leipzig, não deixa barato. Para o intelectual, a força imagética da alta tecnologia fez do homem de hoje refém de um estado que é, ao mesmo tempo, inescapável e paralisante: a distração concentrada. Passamos a ser alvos, compara o pensador, da metralhadora audiovisual. A tese está em seu último livro, Sociedade Excitada (Editora da Unicamp), lançado no último dia 15 de setembro no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). A obra desvela a gênese e os desdobramentos da "filosofia da sensação", conceito cunhado pelo pensador e que, para além de sintetizar um complexo arco teórico tributário da Escola de Frankfurt, da qual Türcke é herdeiro, revela como o espetacular passou a ditar o comportamento da sociedade - excitada e anestesiada pela "compulsão à emissão". "Com cada mudança de foco da câmera, a máquina audiovisual emite um pequeno choque no sensório humano, mesmo sendo quase imperceptível. Tal choque tem o caráter de uma injeção diminuta de adrenalina. A injeção singular instiga a atenção. Bilhões delas, porém, têm o efeito contrário. Absorvem-na, corroem-na a ponto de sugá-la", afirma o filósofo na entrevista que segue.

Jornal da Unicamp - Seu livro inicia com uma boutade dos anos 70 ["O Bild foi o primeiro a falar com o cadáver"] para mostrar como a piada caiu na obsolescência diante da enxurrada de "pontos culminantes" despejada por mídias "altamente tecnologizadas". Essa espetacularização, em sua opinião, é um caminho sem volta? Conteúdos reflexivos tendem a ser coisa do passado?
Christoph Türcke - A resposta seria sim. Quanto ao caminho sem volta, não necessariamente. O que se observa atualmente é um processo de reforço - ou até de autorreforço - de tendências dominantes da sociedade da sensação. A palavra sensação to-mou um caminho semântico que significa inicialmente percepção banal, comum - em última instância, a sensação de qualquer coisa. E isso foi, ao longo do tempo, assumindo um signi-ficado cada vez mais denso e intenso. Esse fenômeno espelha um processo real na sociedade. Essa intensificação está ocorrendo e encontra-se numa estrutura sistêmica de autorreforço.

JU - De que maneira?
Christoph Türcke - O sensacionalismo implica a necessidade de ultrapassar a si mesmo em todos os momentos.

JU - Ele se retroalimenta.
Christoph Türcke - Mais do que isto - todos que reclamam atenção têm que superar os outros. A mídia moderna, portanto, está assentada sobre uma estrutura concorrencial. Assim, ela instiga o processo de autorreforço ao qual me referi. Trata-se de uma observação em termos sistêmicos e é difícil intervir contra isto; não vejo, ao menos em curto prazo, uma possibilidade de "desligá-lo". Não acho que ele será eliminado sem afetar as estruturas básicas da sociedade capitalista. As estruturas sensacionalistas nada mais são, digamos, do que ransformações de estruturas básicas da sociedade capitalista no que diz respeito ao cam-po estético, ao campo da percepção.
Por outro lado, todo esse processo do autorreforço é impelido e fomentado por seres humanos. São, portanto, seres que têm uma vontade - e quem tem vontade, obviamente, pode alterar esse estado de coisas. O que vivemos não é um destino. Ou, dito de outra maneira, trata-se de destino enquanto não percebemos que nós estamos dentro dele e que desencadeamos o processo social em sua integralidade - em graus diferentes, obviamente. A estrutura social não é exógena, nós não ficamos fora dela. Somos aqueles que fazemos as coisas para o bem ou para o mal.

JU - Gradação à parte, o homem tem capacidade de reverter esse processo?
Christoph Türcke - Capacidade, sim. Mas trata-se de uma capacidade paralisada. Não vejo uma saída imediata para o impasse. Mas, por outro lado, tudo isso só é destino enquanto mal-entendido e enquanto não for levado em conta o fato de que uma sociedade é formada por indivíduos que podem agir. A autorreflexão, embora exercitada por poucos, é um resíduo contra o determinismo histórico. Ele só parece determinado porque nós fazemos com que assim se pareça.
A mídia está totalmente integrada nesse processo, daí vem o fato de ela não ser uma coisa neutra. O estado no qual a mídia seria neutra, seria de certa maneira um estado utópico. Trata-se de um estado que poderíamos alcançar, mas, infelizmente, não é o caso atualmente. Temos que trabalhar para neutralizar a mídia.

JU - Paradoxalmente, blogs e redes sociais vêm sistematicamente cumprindo um papel importante nesse âmbito. O senhor acha que essas ferramentas virtuais podem ser vistas como antídotos a esse poder midiático?
Christoph Türcke - Pode ser usada dessa maneira, só que, atualmente, isso não acontece simetricamente. Um dos grandes problemas no discurso é a avaliação que fala de vantagens e detrimentos da nova mídia, sugerindo que os dois lados se comportam na relação um a um. Não é o caso. A assimetria é uma realidade. Por outro lado, há a possibilidade de, digamos, termos nichos virtuais de resistência.

JU - O senhor poderia exemplificar?
Christoph Türcke - Temos o caso da China, onde a resistência não tem um espaço que não seja o virtual, enquanto em outras partes do mundo e em outras relações se desenvolve o poder catastrófico dessa mídia e desses meios eletrônicos, causando uma forma de pu-blicidade que destrói os indivíduos. Trata-se de uma ofensiva invasiva na esfera privada, distraindo as pessoas totalmente. É uma das grandes forças do que chamo de metralhadora audiovisual. Denominei esse processo de distração concentrada.

JU - No que ela consiste?
Christoph Türcke - Não sou contra a distração quando ela significa lazer, descanso. Isto é ótimo. Ocorre que a distração concentrada é resultado de um regime de atenção que penetra no mais profundo interior da pessoa, decompondo-a, causando, por conseguinte, estados psíquicos de desassossego e inquietação. Trata-se de um novo tipo de sofrimento psicossomático que não mais se manifesta diretamente.

JU - Quais são seus efeitos mais deletérios e visíveis?
Christoph Türcke - Os psicanalistas observam que os clientes não mais mostram as doenças clássicas, mas vivenciam um processo de distração até mesmo dos sintomas ditos sólidos. Qual o resultado disto? É cada vez mais difícil intervir e eles - os especialistas - são forçados a forjar novos métodos de tratamento, por exemplo.

JU - Ou seja, o componente orgânico acaba também sendo atingido.
Christoph Türcke - Isto. Entra até no tratamento psicofísico. Como eu disse em outro livro, Filosofia do sonho [Editora Unijuí], tenho a impressão de que a metralhadora audiovisual afeta o que Freud chama de processo primário, que consiste em três mecanismos básicos: a condensação, o deslocamento e a inversão. São processos psicofísicos básicos que fazem, como analisou Freud, com que os homens tenham capacidade de sonhar. O crucial da psicanálise freudiana era entender esse triplo mecanismo para desvendar o conteúdo imagético da vida onírica.
Minha suspeita é que esse processo tenha muito mais alcance do que o próprio Freud achou. Considero-o, na verdade, o motor da gênese da cultura humana e suspeito também que a metralhadora audiovisual está afetando esse processo primário, interferindo em sua dinâmica, dando início àquela concentração distraída. Por isso me interesso tanto pelo encontro dos extremos, que são a alta tecnologia e o paleolítico.

JU - Por que a comparação?
Christoph Türcke - O paleolítico é a época na qual, por meio desse processo primário, a cultura humana - o culto, o sacrifício e tudo que distinguia a humanidade dos outros primatas - se formou. Essa base da vida humana, que parecia por mil milênios um fato natural e imutável, se mostra à luz da nova tecnologia como sendo uma coisa bem mutável. Mais do que isto: é uma coisa que está ameaçada e, quando isto ocorre, ela busca refúgio na luz... Começamos a nos interessar pelo ameaçado, por aquilo que não se subentende mais a si mesmo. Isto, me parece, aconteceu com a chamada metralhadora audiovisual em relação ao processo primário.

JU - Essa metralhadora teria então a capacidade de mimetizar esse componente onírico do ser humano?
Christoph Türcke - Está há tempos fazendo isso. De certa maneira, a realidade virtual não forma senão o que Freud chamava de conteúdo manifesto do sonho. Só que esse conteúdo manifesto é aperfeiçoado pelos padrões de uma estética mais ou menos refinada, chegando às vezes a resultados fantásticos. Não quero negar que foram produzidos grandes filmes, que merecem sem dúvida o título de grandes obras de arte. O problema não são esses filmes, não são os highlights.

JU - Qual seria?
Christoph Türcke - O problema é o dia a dia. Trata-se de um conteúdo manifesto de sonho que é sonhado por uma grande máquina. Ela substitui os sonhos das próprias pessoas, fornecendo-os prontos, como se eles fossem comida encontrada no supermercado. No fundo, trata-se de um processo de desapropriação das capacidades básicas mentais das pessoas. É um grande problema se pensarmos no dia a dia.
Seria ótimo se, exclusivamente, tivéssemos os highligths; foi nessa condição que surgiu o cinema. As pessoas esperavam por semanas o próximo filme, e a capacidade de produzir e receber esse novo tipo de entretenimento era nutrida por outros mecanismos. Produtores, diretores e o próprio público eram esteticamente formados por outros meios - teatro, literatura etc -, para além dos filmes.

Já o recipiente midiático, inserido num mundo que "efetua" 24 horas por dia, está dirigido por um impulso voltado para alguém que vive sistematicamente distraído. Essa pessoa não é mais capaz, por exemplo, sequer de fazer uma resenha sobre um filme inteiro. Todas as programações da televisão supõem um espectador incapaz de acompanhar uma obra do início ao fim. De certa maneira, um resenhista que sabe escrever um artigo inteiro sobre um filme é uma figura atrasada, obsoleta...

JU - Em compensação, aquele que faz a sinopse em duas linhas...
Christoph Türcke - Está up to date... Isso faz com que a pessoa que vê algo na tela sempre tenha a impressão de que está dentro do filme errado. Essa desconfiança ao atual e o olhar de soslaio para outra atração estão sistematicamente vinculados ao controle remoto. Sempre que a tensão diminui um pouco no filme - o que deve acontecer em toda boa obra - é uma ameaça à emissora. O dedo do clique passa a ditar o jogo. Talvez seja este o impulso humano atual...

JU - O senhor recorre a Roma antiga para afirmar que a notícia que merece ser dada está umbilicalmente vinculada àquilo que diz respeito a todos - a res publica. Porém, essa mesma res publica até pouco tempo atrás pautava editores e intelectuais - sobretudo da área de humanidades - preocupados em tocar em pontos nevrálgicos do funcionamento - ou distorções - do Estado. Muitos intelectuais, porém, foram seduzidos por essas novas ferramentas. As coisas mais relevantes tendem a ser cada vez mais ignoradas?
Christoph Türcke - Concordo. Tudo o que eu falei em relação ao "dedo clique" pode ser descrito em termos de desvio. Sempre há alguma coisa que me desvia das coisas das quais tomo conta. Isto representa uma ameaça ao próprio "tomar conta" enquanto dedicação a alguma coisa a ou a uma pessoa. As coisas e as pessoas, em última instância, não podem ser separadas. Dedicação e concentração são quase sinônimos. O autorreforço do sistema no qual vivemos pertence a essa perda contínua de espaços de concentração, de dedicação e de reflexão.

Por isso, gosto muito da famosa colocação de Walter Benjamin de que é preciso entender a revolução - que Marx considerava a locomotiva do processo social - como um agarrar o freio de emergência do trem da história. O que me interessa é desenvolver o que poderia ser esse agarrar o freio de emergência hoje em dia. Em todos os campos sociais, ou seja, na educação, no meio ambiente, na política, na arte. Tudo isso está relacionado - ou ao menos traçado, já que nem tudo está desenvolvido - com esse frear. Ele pode ser entendido ou praticado. Isto tem muito a ver com encaminhar processos de retardamento ou consistir em criar ilhas de sossego, de silêncio e de concentração que podem começar no quarto da criança, hoje impregnado de apelo visual e de parafernálias de toda ordem.

JU - Qual o efeito desse apelo?
Christoph Türcke - Impede o desenvolvimento do carinho da criança em relação a dois, três brinquedos. O cavalo de madeira ficou na saudade. É possível isto, basta que cada um dê início a esse movimento. E não basta lamentar o processo global. Claro que eu também lamento, mas de nada adianta apenas se queixar e deixar as coisas como estão.

JU - A alta tecnologia alijou do mercado milhões de trabalhadores e fez com que os remanescentes/sobreviventes abraçassem várias funções até então desconhecidas. Qual foi o efeito dessa mudança brusca na composição da sociedade?
Christoph Türcke - Para uma minoria que tem projetos próprios ou ao menos um emprego interessante, isso abre novos espaços de aprendizagem e desdobramento individual. Que bom sentar em casa diante da tela com o apoio imediato de dicionários e enciclopédias do alcance da Wikipedia e do Google! Mas a maioria que carece de tais projetos e independência devida não aproveita tanto disso. Ela está, na verdade, ameaçada de se perder no mundo virtual, desorientada por uma quantia descomunal de dados, sem que os recursos materiais e intelectuais melhorem decisivamente. Por exemplo, a busca de emprego se transforma cada vez mais, para a internet, mas a internet não fornece cada vez mais emprego. E para todos, o estresse se intensifica. Sempre tem de ser up to date, tem de conferir novos emails, novas ofertas de emprego, novas chances de venda, etc. Em resumo, só para os já privilegiados essa mudança social pode ganhar um caráter de bênção.

JU - O senhor afirma que a irradiação etérea dos monitores se converte não apenas em fantasma da pessoa, mas também em seu vampiro. Por quê?
Christoph Türcke - Com cada mudança de foco da câmera, a máquina audiovisual emite um pequeno choque no sensório humano, mesmo sendo quase imperceptível. Tal choque tem o caráter de uma injeção diminuta de adrenalina. A injeção singular instiga a atenção. Bilhões delas, porém, têm o efeito contrário. Absorvem-na, corroem-na a ponto de sugá-la. Eis o seu vampirismo.

JU - Como o senhor vê os que estão excluídos desse processo? Esse universo tende a crescer? E a invisibilidade desse contingente?
Christoph Türcke - Quem está, hoje em dia, sem a trindade de celular, email e website está excluído: cada vez mais incapaz de fazer compromissos, a ponto de perder qualquer visibilidade social. Por outro lado, os próprios gadgets se barateiam. Cada vez mais pessoas conseguem acesso a eles. Mas o próprio acesso, por si mesmo, não adianta muito. Não passa de uma condição elementar de vida atual. No entanto, não sou profeta, e a história continua em aberto. As contraforças que o processo social vigente desencadeia são imprevisíveis, mas também um arsenal de esperança em tempos que não instigam um grande otimismo.

Quem é

Christoph Türcke, nascido em 1948, é professor de filosofia na Hochschule für Grafik und Buchkunst em Leipzig. Além de Sociedade Excitada - Filosofia da sensação, recém-lançado pela Editora da Unicamp, destacam-se entre suas principais publicações: Der tolle Mensch. Nietzsche und der Wahnsinn der Vernunft (4a ed., 2000), livro que foi traduzido para a língua portuguesa com o seguinte título: O louco: Nietzsche e a mania da razão (Vozes, 1993); Sexus und Geist: Philosophie im Geschlechterkampf (3a ed., 2001), Rückblick aufs Kommende: Altlasten der neuen Weltordnung e Filosofia do Sonho (Unijuí, 2010).

Publicação: Filosofia da Sensação
Autor: Christoph TürckeTradução: Antonio A. S. Zuin, Fabio A. Durão, Francisco C. Fontanella e Mario Frungillo
Editora: Unicamp
Páginas: 328
Preço: R$ 88




 
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