Sandra Brisolla
Eu teria uns 12 anos e estava no segundo ano do ginásio (hoje equivale à sexta série) quando tive minhas primeiras aulas de inglês com Dona Lucy. Era uma professora competente e orgulhosa de sua função, em um colégio estadual da periferia de São Paulo. Volta e meia trazia visitas do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos ou da Cultura Inglesa, ocasiões em que gostava de exibir os conhecimentos de seus melhores alunos. Fingia escolher a dedo na lista de presença, fazendo cair o indicador sobre um nome qualquer na folha, mas invariavelmente chamava as mesmas pessoas, algumas descendentes de ingleses ou americanos, mas muitas delas apenas alunas aplicadas, mais entusiasmadas com a possibilidade de entender as letras dos "rocks", que desejosas de utilizar o idioma para uma futura carreira. Isso nos fazia rir e gozar especialmente as visitas de Dona Lucy.
Sendo solteira e com um salário que na época era razoável, nossa professora de inglês tinha seu automóvel - um Ford inglês, um luxo para a época. Dirigia com pouca perícia, para dizer pouco, o que fazia com que muitas vezes se desculpasse conosco por não ter parado no ponto de ônibus para oferecer-nos carona, pois vindo pela mão esquerda, não teria conseguido passar para a direita.
Foi Dona Lucy - além dos bailes em que se tocavam blues e rock'n roll - quem me despertou a curiosidade e o desejo de aprender inglês, e quando era sua aluna conseguimos, eu e minha colega Ivete Pereira, entrar diretamente no terceiro e último estágio, de seis meses, do curso de inglês do Yázigi, que surgia no Brasil na época, em meados dos anos 50. Esse aprendizado me foi muito útil para ser aceita em meu primeiro emprego como jornalista, pois a revista onde trabalhei por quase dois anos utilizava muitos artigos traduzidos diretamente do inglês.
Muitas décadas mais tarde, fiquei sabendo - que mundo pequeno! - que Dona Lucy era tia de minha amiga e colega Leda, a quem conheci no Chile, em minhas andanças pela América Latina!
Mas não param aí minhas lembranças do tempo do Colégio Estadual Alberto Conte. Havia o Teixeira, professor de matemática que aterrorizava os alunos com seu rigor, mas tinha reconhecida capacidade didática, dando aulas também para os estudantes de Engenharia da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. E que dizer de Dona Ivete, professora de português, que chegava a dar nota negativa, pois descontava nas redações meio ponto por erro de acentuação, um ponto por erro de grafia e um ponto e meio por erro de concordância! No curso colegial do Alberto Conte as aulas de filosofia eram dadas pelo Emir Sader, hoje professor da USP, na época aluno da Faculdade de Filosofia dessa Universidade.
Era esse o segredo da qualidade do ensino público primário e secundário durante meus anos de colégio: salários decentes, identificação com a profissão e recrutamento entre os melhores alunos das melhores universidades do país. Qualquer semelhança com a situação atual do ensino público de primeiro e segundo grau só pode ser engano!
O aumento da cobertura do ensino público se fez em grande parte à custa da queda da qualidade, mas a abertura do leque salarial que acompanhou o famigerado "milagre econômico" teve boa dose de responsabilidade nesse processo de deterioração salarial e da imagem dos professores primários e secundários no país.
Assim, já nos anos 70 - em apenas 20 - o ensino público de primeiro e segundo grau passou a ser sinônimo de baixa qualidade e as escolas particulares - antes refúgio de maus alunos - multiplicaram-se, principalmente nos centros de maior desenvolvimento econômico relativo, como o estado de São Paulo. Nessas, a qualidade não foi sempre a marca registrada, mas a demanda da universidade pública - que continuou a ser a de melhor nível - exigiu que parte dessa oferta de instituições privadas correspondesse a suas necessidades.
Esse processo histórico foi o responsável pela atual situação: são principalmente os bons alunos das melhores escolas particulares de primeiro e segundo grau os que conseguem ser aprovados nos vestibulares para as boas universidades públicas do país. Contradição que não se resolve deteriorando o nível das últimas, e sim dotando as escolas públicas de qualidade.
Na contramão dessas necessidades sociais, no entanto, o progressivo comprometimento da estrutura econômica brasileira com o capital financeiro internacional está prestes a dar o golpe de misericórdia no que resta de qualidade, salvo honrosas exceções, no ensino público brasileiro: o ensino superior! E esse resultado será apenas o subproduto de um processo de reforma previdenciária que irá comprometer a eficiência de todo o setor público. E o pior é que se faz em nome de uma pretensa "justiça social"!
É preciso décadas de investimento para criar uma comunidade científica com padrão internacional como se fez no Brasil a partir dos anos 70, e apenas uns poucos anos de más políticas para destruir tudo que se construiu através do excelente programa de pós-graduação e pesquisa da Capes e do CNPq.
A invejável situação da ciência no Brasil, dentro da América Latina, tem sido responsável pela elevação da produtividade agrícola em vários produtos essenciais, para consumo interno e exportação, recriando climas e solos favoráveis a cereais antes importados, melhorando geneticamente o gado, aumentando a competitividade de vários setores econômicos no mercado internacional, substituindo a importação de insumos essenciais para a atividade industrial, e reduzindo a importação de petróleo de dois terços para 20% do consumo interno, devido ao desenvolvimento de tecnologias de prospecção em águas profundas.
O mais triste é que para que o país possa ser resgatado dessa profunda desigualdade social, dessa terceira década consecutiva de estagnação, é fundamental ampliar o conhecimento necessário para a transformação das relações humanas, no sentido da quebra desse círculo vicioso. E esse conhecimento só se constrói com o aumento do investimento em educação, em saúde e em ciência e tecnologia. Algo que a reforma tributária também ameaça reduzir, pela desvinculação de receitas dos estados e da União de suas aplicações obrigatórias (pelo menos por lei) no investimento social.
O Brasil de meu tempo de colégio não era necessariamente melhor que o Brasil da juventude de meus filhos, mas nós ainda podíamos sonhar com uma sociedade mais justa e tínhamos um projeto de país, pelo qual muitos de nós perderam sua vida ou parte dela. Hoje nos sentimos impotentes e frustrados por nos terem sido roubadas, uma a uma, quase todas as bandeiras!
Ainda resta, no entanto, uma esperança! Resgatar os sonhos das muitas donas Lucys que existem no país! Nem que tenhamos que escolher a dedo, fingindo que aleatoriamente, as pessoas com condições de se sobressair em suas tarefas de resgate da cidadania - como foi o caso de minha colega de ginásio Yara Spadini, amiga inseparável na época, que eu não suspeitei nunca ser companheira de lutas, pois dela só tive notícias mais tarde pelos jornais -, que possibilitem a necessária mudança do curso da história. Esse será o verdadeiro espetáculo que queremos assistir!
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Sandra Brisolla é professora livre-docente aposentada, e voluntária do Departamento de Política Científica e Tecnológica, IG, Unicamp.
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