"A história a fazer é sempre uma história indeterminada"
Jornal da Unicamp - A polarização esquerda/direita atravessou o século 20. Há quem diga que as utopias ideológicas morreram. A afirmação procede?
Boaventura - A clivagem esquerda/direita vai continuar, sem dúvida nenhuma. Ela transfigura-se na medida em que emergem problemas que até agora não eram contabilizados nessa dicotomia. Não quero dizer, no entanto, que essa dicotomia possa cobrir tudo. Temos muitos movimentos que lutam por um mundo melhor, mas que se recusam a reconhecer-se nessa polarização esquerda/direita, sobretudo movimentos que vêm da África e da Índia. Esquerda/direita é um modo de clivagem muito cunhado pela própria política ocidental. Mas vai perdurar a clivagem daqueles que estão a favor de formas de inclusão e de formas de exclusão. Entendo que as clivagens ideológicas estão aprofundando-se, ao contrário do que se pensou. O neoliberalismo apostou no pensamento único, na idéia de que a história chegou a fim. Ao contrário, hoje as ideologias voltam, mas de outra forma, não como grandes sistemas. Voltam através de experiências sociais e de iniciativas que ocorrem em toda parte do mundo. Elas são interligadas pela Internet, vão aprendendo umas com as outras sem, no entanto, terem uma categoria única, sem terem um manifesto que una todas essas formas de resistência. De alguma maneira, significam a idéia de que é possível sim uma utopia crítica. Nós estamos num mundo onde é mais importante afirmar a idéia da utopia do que defini-la. Precisamente porque estamos num mundo que pura e simplesmente pôs fim - ou quis pôr fim - a toda idéia de utopia crítica. É preciso agora tentar ver se esta utopia precisa de um conteúdo mais rico.
Zolo - Seguramente, hoje a polarização esquerda/direita é menos significativa do que no passado. Na Europa em particular, e nos Estados Unidos também, os partidos políticos são muito pouco identificados com bases ideológicas específicas. Em geral, a convergência dos partidos para o centro é uma tendência, já que uma posição moderada tem mais apelo eleitoral, havendo portanto uma certo esvaziamento dessa polarização. Mas não há dúvida de que se pode dizer que a esquerda diz mais respeito àqueles que sustentam valores de cooperação social, de paz e de respeito pela vida. E a direita, como é caso de Berlusconi e Bush, está associada ao poder da mídia, ao poder econômico e ao poderio militar.
Oliveira - As grandes utopias experimentam transformações. Mesmo utópicas, são construções sociais. A grande utopia do comunismo, por exemplo, veio do século 19 e projetou-se largamente no século 20, com as tentativas conhecidas de criar sistemas utópicos. Essa grande utopia foi muito abalada pelas experiências do século 20, o que a torna um pouco anacrônica no século 21. Mas ela se repõe e se refaz num outro registro - na solidariedade, uma das matrizes do próprio movimento socialista. Agora, por exemplo, para lutar contra a globalização hegemonizada pelos centros, para lutar contra essa tendência de mercantilização geral, temos a utopia que se dá em registros como o da economia solidária. Não terminou o tempo das grandes utopias. Elas se atualizam constantemente. Mesmo quando toda miséria mais material for varrida da terra, o que está longe de acontecer, certamente os homens criarão outras utopias. A maior delas é a utopia do homem feliz.
Laymert - Nós vivemos um momento que se poderia qualificar como horizonte negativo. As utopias de certa maneira aconteceram, mas estamos vivendo as utopias de uma maneira negativa. O futuro chegou, mas em negativo. No momento, não há nenhuma utopia para colocar no lugar. Temos de atravessar essa fase para ver quais são os sinais do que vem por aí, que não sejam apenas os catastróficos.
Leila - Não concordo. Inclusive alguns autores encaram o ecologismo como uma nova ideologia, como opção ao neo-conservadorismo e à perspectiva neo-socialista. Seria, para esses autores, uma terceira opção ideológica. Na verdade, vejo como uma nova roupagem para as velhas ideologias. Não acho que as ideologias morreram, de forma alguma.
Ridenti - Evidentemente existem aqueles que advogam essa tese da diluição das posições de esquerda e de direita, o que em parte indica que o mundo de hoje é muito complexo e às vezes certas simplificações não têm cabimento. Existem sim no mundo sociedades de classe e posições que vão no sentido da manutenção desse status quo e de crítica a este status. Isso aponta para posições que genericamente poderíamos chamar de direita e de esquerda, associando a direita à conservação do status quo, mesmo com as mudanças dentro da ordem, do ponto de vista da manutenção do poder político e econômico, e existem aquelas idéias muito diversificadas de crítica ao poder político e econômico hoje hegemônico, não só no Brasil, mas também no exterior. Existe sim a continuidade e a pertinência em se falar em esquerda e direita.
Pochmann - Não concordo. Ao mesmo tempo, acredito que estamos vivendo um certo mal-estar social em que alguns modismos surgem, mas têm um ciclo de vida muito curto. Idéias surgem como capazes de responder a determinadas situações, mas perdem importância muito rapidamente. Isso também não é nenhuma novidade. Hobsbawn chama atenção para o fato de que em determinados momentos do capitalismo, como foi o caso do século 19, você tem o questionamento de interpretações clássicas sobre determinados fenômenos e aí há um espaço em que surgem idéias que não têm durabilidade. Isso faz com que haja uma reação do ponto de vista do conhecimento que permite o ingresso em outro patamar. O conhecimento é uma espécie de onda em que se têm momentos em que há uma certa crise de percepção e de identificação. Isso gera o surgimento de várias formas de ver parcialmente que não se sustentam ao longo do tempo.
Maria Arminda - Vivemos num mundo pós-utópico, o que não quer dizer que essas distinções esquerda/direita tenham desaparecido. O problema é que se estabeleceram algumas identidades que são discutíveis entre socialismo e socialismo realmente existente, como na União Soviética. O socialismo como concepção de mundo, como uma possibilidade de projeção de mundo, não ocorreu. O que ocorreu é que houve essa identificação. Isso tem efeitos na construção das visões utópicas. O século 20 todo foi perseguido fundamentalmente por essa distinção entre a grande utopia socialista na medida em que o socialismo soviético entra em crise. Com isso estabeleceu-se a falsa identificação de que o socialismo desapareceu do mundo. É uma identidade falsa. O mundo é pós-utópico, até porque temos uma grande perplexidade. Sempre há uma aposta na utopia, ao mesmo tempo numa construção que seja abrangente. Não vivemos num mundo onde isso seja claramente posto no horizonte. Um mundo sem utopia é um mundo triste.
Ortiz - Não creio nem que a oposição direita/esquerda tenha desaparecido, como tampouco creio que os significados de direita e esquerda sejam os mesmos hoje. Se eu ler nessa chave, diria que a posição direita/esquerda permanece como uma conotação diversa em função de uma abertura, de uma transformação das sociedades contemporâneas. De uma coisa tenho certeza: que primeiro não existe o fim nem das ideologias nem das utopias. Esse tema que foi bastante debatido no século 20 por vários autores e a mim me parece um falso problema. Em que sentido? A história que se abre é uma história que se abre para o futuro. E o interrogante de como será o futuro é permanente de toda a sociedade. Portanto, tanto as ideologias como as utopias florescem nesse terreno. Por outro lado, é importante entender que, enquanto existir capitalismo, existirá crítica do capitalismo. E a crítica do capitalismo abre uma janela para o futuro, para uma outra coisa. Quem sabe, irrealizável, mas ela é permanente à própria existência do capitalismo. Daí a abertura da imaginação e de utopias que necessariamente são críticas ao capitalismo. Digamos que o êxito do capitalismo não enterra as utopias. Ele apenas revela novas contradições e novas aberturas. A história a fazer é sempre uma história indeterminada. E, nesse campo de indeterminação, as utopias ocupam um lugar.
Adorno - Os termos em que o debate político tem sido colocado num certo sentido envelheceram. Ao mesmo tempo em que você diz que não há mais uma maneira de falar em direita/esquerda, também não temos mais como discutir aquela velha alternativa, reforma ou revolução. Acho que temos que retomar o velho axioma do Marx: a sociedade não se propõe problemas que ela não possa resolver. E os problemas que a sociedade está resolvendo são problemas que ela mesmo propôs. A luta política não se encaixa mais naquela imagem em que se tem uma direita com a sua concepção muito clara do que é mercado e poder, e de outro lado a esquerda que se opõe a esses interesses. Hoje, o trânsito entre essas posições está evidentemente embaralhado. Certamente surgirá disso uma recomposição de relações. É preciso evitar a armadilha das dualidades, das polarizações. E, ao mesmo tempo, enfatizar as diferenças, as nuances, a multiplicidade. No momento em que isso passa a ter maior relevância, é evidente que essas polarizações tendem a ser amainadas. Isso não significa que uma nova significação dos momentos atuais não possam repensar talvez uma recomposição de uma outra ordem.
Jornal da Unicamp - Qual o impacto das novas tecnologias no cenário mundial?
Boaventura - O impacto das novas tecnologias é dúbio e ambivalente. Por um lado, trata-se de um impacto negativo na medida em que a tecnologia é uma das responsáveis pela exclusão social no mundo. Aliás, a divisão digital é hoje talvez das mais tenazes na medida em que 93% dos circuitos da Internet ocorrem nos países desenvolvidos, o que significa que estamos assistindo a uma forma de exclusão extremamente dura e difícil. Por outro lado, também temos que dizer que toda a movimentação de luta contra a globalização neoliberal se assenta nas novas tecnologias. Sem Internet, não seria possível fazer todo esse movimento. As novas tecnologias vão estar exatamente de um lado e de outro, são instrumentos que podem ser usados em vários sentidos. Podem ser obviamente também sistematizadas por outras tecnologias intramédias e populares, que são velhas mas que cada vez mais vão ser importantes para que haja uma relação entre tecnologia e bem-estar das populações.
Zolo - O núcleo fundamental do processo de globalização está identificado com a intensificação da aplicação das tecnologias, seja na mídia, seja na informática. Este núcleo é aquele que dá a contração do espaço e do tempo e é um aspecto irreversível da globalização. E é justo que existam movimentos internacionais que combatam tudo isso.
Oliveira - Os impactos são muito fortes. As novas tecnologias estão mudando as raízes fundamentais da sociabilidade, da convivência entre as pessoas. Elas mudam tudo, radicalmente. Mudam o modo de produzir, toda a compreensão do mundo. A produção hoje exige menor esforço físico, quase não há contato com máquinas. Esse impacto está apenas no começo e pode ser desvastador se não for democratizado de uma forma radical. A gente pode se aproximar de um mundo à la Huxley. Vejo como um impacto decisivo, que não dá para ser subestimado. O mundo da vida e o mundo da ciência são hoje quase a mesma coisa. Mudará a nossa percepção do que é o mundo, do que é o outro.
Laymert - Os impactos são muito grandes, sobretudo nas tecnologias de informação digital e na genética. A aceleração tecnológica é um fato que precisa ser reconhecido em todas as suas dimensões. E as conseqüências dessa aceleração são que existe um trem-bala que leva alguns países e algumas populações; outras estão sendo cuspidas e já estão do lado de fora. O problema agora é saber o que fazer com aqueles que já perderam o trem-bala.
Leila - Trata-se, também, de um dos grandes temas da sociologia contemporânea. Acho que existem alguns autores que nos mostram cientificamente que as novas tecnologias na verdade são o grande problema da sociedade contemporânea. Ulrich Beck, por exemplo, mostra, em “A Sociedade de Risco”, o que seria a seu ver uma sociedade da ciência e da tecnologia, se configurando num problema. Por outro lado, existem autores que mostram que o buscar de novas tecnologias pode minimizar os nossos problemas sociais e, particularmente, os nossos problemas ambientais. Diria que estamos na fase intermediária, entre essa perspectiva mais negativista da realidade que está em “A Sociedade do Risco”, e essa perspectiva otimista de só pensar em novas tecnologias. Acho que o componente político faz a mediação entre essas duas perspectivas.
Ridenti - O impacto é enorme. O fim da União Soviética é um exemplo. Em grande parte estava ligado à incapacidade de o sistema soviético incorporar novas tecnologias para dar um novo salto. Eles não conseguiram dar, já que investiram pesadamente em armamento por conta da Guerra Fria, não conseguindo acompanhar a capacidade de investimento do capital que deu o salto tecnológico da era da informática. No Brasil, temos pessoas vivendo quase na idade da pedra, não conseguindo sequer arrancar da terra o que precisa para sobreviver, e temos pólos tecnológicos extraordinariamente desenvolvidos. Diria que esse acesso às novas tecnologias acrescenta elementos a essa profunda desigualdade e a essas profundas contradições que cimentam as sociedades contemporâneas. Uma das lutas sociais importantes é que a população tenha acesso a essas inovações.
Pochmann - O impacto já foi identificado há duas décadas. No meu modo de ver, os países que mais investem em tecnologia são os que convivem com menos desemprego, ao contrário dos países que menos investem, que hoje possuem o maior número de desempregados e ao mesmo tempo geram ocupações muito precárias. O futuro do emprego está justamente associado à capacidade que os países têm de investir em tecnologia, o que tem permitido, de um lado, gerar vagas com maior qualidade e com maior nível de renda. De outro lado, permite que a expansão das atividades de novas tecnologias possa ser capturada pelo estado através de fundos públicos e, com isso, permitir um novo segmento de transferência de renda.
Maria Arminda - Vai mudar tudo. Não tenho dúvida que a chamada sociedade da informação tem um impacto brutal. Mudam as formas da convivência. Há também um imenso desconforto. Não há saída, você tem que estar o tempo todo conectado. Talvez seja possível usar a informação de uma maneira que não estamos explorando.
Ortiz - É um tema que incide desde na esfera do trabalho até na esfera cultural. Sem o desenvolvimento de uma tecnologia digital, dificilmente nós teríamos uma agilidade dos chamados bens culturais transnacionais. É uma pergunta que envolve uma série de questões - desde a alfabetização digital até a democracia. É um elemento a mais e muito importante nesse contexto. A questão da democracia não pode ser exclusivamente vinculada à problemática da técnica. Se não, caímos às vezes numa visão idílica de vários autores que querem resolver os problemas políticos em função de questões técnicas, por exemplo, a ciberdemocracia, como se tudo estivesse resolvido se caminhássemos nessa direção. Evidentemente, as técnicas e as tecnologias são decisivas no mundo contemporâneo. Sem elas, muito do processo de globalização não existiria. Porém, é necessário ter também a precaução de não embarcarmos numa "canoa furada". A questão política da democracia, da esfera pública, do bem-estar, da justiça, não são questões que coincidam inteiramente com a tecnologia. São questões que extrapolam e que tocam vários campos da vida social.
Adorno - Não é uma questão nova. Na verdade, estamos tendo uma história de impacto bastante acentuada. Às vezes faço um esforço em pensar com a cabeça do cidadão comum do século 18. A revolução industrial era coisa do demônio. O problema é o significado desse impacto. Temos de estudar o efeito disso nos padrões de sociabilidade contemporânea, que circula no espaço público, onde as pessoas de alguma maneira se mostram para serem mostradas. Com essas novas tecnologias, se tem cada vez mais uma volta para si, na verdade um desprezo pelo cuidado do outro. Isso pode ter um impacto nas futuras gerações em termos de perfil de identidade, em termos de interesse de solidariedade social. Não temos condições de prever o alcance dessa mudança. Certamente você formará gerações de profissionais e de trabalhadores muito diferentes das velhas gerações. Talvez sejam comprometidos muitos valores construídos na ética do trabalho e numa sociedade que preservava a justiça social.